Estado da Economia

Precisamos de um empréstimo compulsório para combater a pandemia?

Autores

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

  • Leonardo Ogassawara de Araújo Branco

    é conselheiro titular e vice-presidente de turma do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais doutorando mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP professor de Direito Tributário na graduação da Faculdade de Direito da USJT na pós-graduação da FGV do IBET do IBDT da APET e de cursos preparatórios CFP/Anbima da FK-Partners.

19 de abril de 2020, 14h28

Os tempos de pandemia trouxeram aos brasileiros a renovação de sua fé em duas expressões humanas que andavam sob ataque: a ciência e o Estado. A ciência, nem sempre portadora de boas notícias, informa sobre a necessidade de isolamento para que se achate a curva de contaminação, sob pena de uma crise sem precedentes para a saúde pública. Ao Estado, tantas vezes criticado e conclamado a se retirar do processo econômico, cabe, como sempre, a difícil tarefa de atenuar os sintomas da crise.

O momento é bastante sensível e demanda do Estado a necessidade de manter recursos financeiros circulando na economia. Para esse desiderato, contudo, surge a tarefa de injetar dinheiro, por meio de créditos de todos os tipos (diretamente à população de baixa renda; aos bancos para que esses concedam empréstimos a terceiros; por meio da postergação de tributos) e, ao mesmo tempo, de realizar gastos diretos urgentes e de elevada monta (custos com medicamentos, kits de teste da doença; leitos hospitalares).

O outro lado do desafio, contudo, é que ao injetar recursos na economia e ao estimular a permanência de recursos no mercado, com a postergação de tributos, por exemplo, o Estado adia o recebimento de suas receitas, que devem permitir a sua atuação.

Daí não ser incomum a sugestão de que o Estado deve aumentar tributos, rever isenções, criar o imposto sobre grandes fortunas e até mesmo criar algum empréstimo compulsório, conforme previsto no artigo 148 da Constituição Federal de 1988[1].

Do ponto de vista objetivo, a pandemia relacionada ao coronavírus seria uma típica justificativa para a instituição de um empréstimo compulsório, já que serviria para “atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública”. Todavia, cabe um questionamento: as despesas poderiam ser consideradas “extraordinárias” para fins de cumprimento do texto constitucional? O auxílio federal não pode ser atendido com os recursos orçamentários disponíveis? A resposta demanda um estudo mais embasado até mesmo para que os parlamentares possam formar a sua convicção ao votarem o texto, que exige maioria absoluta para aprovação.

Agora, tão ou mais importante do que essa abordagem de cunho exegético é saber se essa seria a melhor decisão econômica por parte do governo e do Congresso Nacional.

Momentos de crise e de carestia jamais são propícios para grandes decisões ou reformas na área tributária, uma vez que não oferecem a suficiente placidez que o debate demanda; nestas horas, surgem propostas açodadas e oportunismos fiscais. Não parece já terem sido esgotados todos os instrumentos extrafiscais e orçamentários para enfrentar a calamidade, e o texto do projeto sequer busca enfrentar a questão, que seria a condição necessária para se cogitar um tributo jungido pelo óleo da excepcionalidade, de matiz marcadamente extraordinária.

O próprio artigo 15 do Código Tributário Nacional impõe o dever de se demonstrar que o auxílio federal necessário seria impossível de atender com os recursos orçamentários disponíveis, lembrando que o decreto de calamidade pública aprovado já produziu efeitos fiscais, já que o artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal permite a dispensa do atingimento de metas fiscais e as limitações de empenho.

Especificamente quanto ao Projeto de Lei Complementar 34/2020, apresentado pelo Partido Liberal, é necessário que o Congresso Nacional discuta se a base de cálculo escolhida é realmente a mais adequada: qual será o impacto sobre o mercado e sobre os empregos de se retirar, do dia para a noite, 10% do total do lucro líquido obtido ao longo de 2019 do caixa das maiores companhias do país?

É preciso destacar que este tributo poderia passar a ser cobrado de imediato até o fim da calamidade pública que, segundo o Decreto Legislativo 6/20, deve ser reconhecido ao menos até o dia 31 de dezembro deste ano, pois este é um tipo de tributo que só pode perdurar enquanto existir a situação calamitosa.

O projeto prevê, ainda, a possibilidade de parcelar em até três vezes aqueles valores que superarem R$ 1 milhão, mas em nenhum momento se preocupa em responder quantas empresas seriam afetadas, se foram esgotadas todas as alternativas para evitar a instituição de um tributo tão excepcional como este, ou mesmo se a expectativa de arrecadação de fato supera os efeitos negativos que a medida terá não apenas sobre a desaceleração da economia, que certamente já estará em recessão, mas também sobre a arrecadação dos demais tributos.

O aspecto quantitativo da exação proposta adota uma técnica pré-numerando que se volta a captar uma capacidade contributiva pretérita, que não necessariamente existe no momento da imposição, o que remete a um juízo de conveniência e oportunidade econômicos próprio da atividade legislativa. A concepção de um retorno à ideia de ano-base, em detrimento das modernas propostas de tributação voltadas ao ano-corrente, fazem questionar a justificativa da opção por uma sistemática de presunção, tal qual o Brasil conheceu no ano de 1970 com a apuração do PIS a remeter ao sexto mês que antecedia o fato gerador justamente em um momento em que o lucro contábil (base escolhida pelo projeto) é ameaçado pelo mal que o tributo visa combater.

Nesse ponto, quantitativo, tem-se o inconveniente de se buscar resultados produzidos no ano anterior, que já podem ter sido direcionados a outras finalidades, tais como distribuição a acionistas e até investimentos e que, em meio a crise, já podem ter sido alocados para a manutenção de despesas, como a da folha de pagamento.

Uma técnica como essa cria uma tensão normativa com a própria ideia de capacidade contributiva de emprestar (empréstimo compulsório) e a garantia de irretroatividade (não da norma, mas da fixação de sua base de apuração).

Muito embora o empréstimo compulsório tenha sido previsto constitucionalmente para esse tipo de situação, sua criação no momento atual não parece responder de maneira satisfatória a questões elementares, não se parece tratar de um projeto embasado em simulações e extrapolações numéricas a servir de justificativa à sua implementação e não parece avaliar adequadamente seu impacto fiscal de curto e médio prazo.

Caso a proposta vá adiante no Congresso, estaremos diante de empréstimo compulsório vinculado a uma atividade de estado e com destinação específica, cujos valores serão aplicados de acordo com as disposições do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos do Coronavírus, subordinado à Casa Civil, competindo ao Ministério da Economia executar as despesas e prestar contas, e a uma Comissão Mista do Congresso Nacional fiscalizar e acompanhar a execução orçamentária.

Um lado positivo, como se pode perceber, é a preocupação do texto em buscar viabilizar a governança dos recursos arrecadados. Outro é que a liberação de recursos para esta específica finalidade será evidentemente muito bem-vinda, tendo em vista a proporção do problema sem precedentes (para a nossa geração) que o mundo enfrenta, e a ideia deve ser sempre, em primeiro lugar, a de salvar vidas, pois não podemos perder o foco da discussão.

Mas, mesmo diante de uma situação limite como a que atravessamos neste momento, deve-se sempre ter em mente que o ordenamento já prevê mecanismos para responder a situações inesperadas, e é necessário que estes instrumentos sejam utilizados antes de recorrermos a expedientes extraordinários, sob pena de o remédio causar ainda mais estragos que a própria doença que ele visa combater. Neste sentido, exsurge no horizonte legislativo proposta de emenda constitucional que propõe aquele que a imprensa usou chamar de “Orçamento de Guerra”, que exorta a flexibilidade financeira por meio de decisões a serem tomadas por um comitê formado por ampla representação majoritária, deslocando ao Tribunal de Contas da União a tarefa de perscrutar as contas e, ao Superior Tribunal de Justiça, a competência excepcional para apreciar a matéria decorrente das decisões do colegiado.

Assim, é possível apontar medidas prévias à necessidade da instituição do empréstimo e, como se pode perceber a partir de experiências anteriores com tal espécie tributária, tampouco adianta ao governo aprovar um tributo natimorto, cuja cobrança vai ser inviabilizada pelo Poder Judiciário, caso não obedeça ao regime jurídico correto, pois a política pública deve ser consistente com as normas vigentes do país.

Outro ponto que certamente gerará judicialização é sobre o projeto pretender que o Poder Legislativo delegue a fixação da alíquota incidente sobre o lucro líquido ao Poder Executivo. Mesmo em julgados recentes, como no Recurso Especial 1.586.950, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que apenas será possível a delegação nos percentuais delimitados pela própria lei, não sendo possível se passar um cheque em branco como pretende o projeto.

Mas, cabe a pergunta: se o projeto for realmente aprovado, ainda que venha a amealhar recursos em um primeiro momento, e se as empresas obtiverem êxito em suas ações para derrubarem a sua cobrança, esta terá sido uma política pública elogiável? O Brasil já amargou, desde a Constituição de 1988, o exemplo do desastrado Plano Collor I, fruto da engenhosidade da Medida Provisória 168/1990, que determinou o bloqueio dos saldos das cadernetas de poupança, e naquele momento o Poder Judiciário entendeu que enxugamento da moeda não autoriza a instituição desta espécie de tributo. Este, portanto, seria o primeiro empréstimo compulsório instituído desde a redemocratização.

Reiteramos: os momentos de crise e de carestia como este que atravessamos em regra não são apropriados para discutir alterações no sistema tributário. Muito menos mudanças estruturais, e, neste sentido, há hoje quem defenda a rápida aprovação de institutos que teriam profunda repercussão nos próximos anos, tais como a tributação sobre grandes fortunas, a retomada da tributação de dividendos, a suspensão de benefícios e outras propostas que, em que pese serem da maior importância, não devem vir jamais como resposta à pandemia. Até mesmo a retirada de pauta, pelo Supremo Tribunal Federal, de processos que discutem grandes teses tributárias, com ampla repercussão econômica atende à prudência que demanda a aplicação do direito, sob pena de tomarmos decisões de afogadilho e sem a devida reflexão.

A crise, como se pode perceber, traz alguns efeitos importantes, como o reconhecimento do papel do Estado, que deve prover as condições materiais para tornar possível o isolamento a fim de achatar a curva de contágio. Este gasto maior voltado para garantir o bem-estar coletivo, e depois, para sairmos da recessão econômica global que virá, e que não será uma gripezinha, traz duas lições importantes. Uma delas, velha conhecida dos economistas, é a de que o tributo atrapalha a eficiência do mercado, mas é ele que garante a sua existência.

A segunda, que é necessário, de um lado, que haja flexibilidade tributária para que o governo possa se valer da ferramenta da extrafiscalidade para lidar com o inesperado e, de outro, que se revejam as amarras orçamentárias para que seja possível ao gestor público responder com efetividade e rapidez a medidas emergenciais. Não aprendendo essas lições, importantes em tempos de debate sobre reforma tributária e sobre qual sistema tributário queremos, restará apenas ceder a propostas como esta, de empréstimos compulsórios, sob o pretexto de se rezar cegamente o mantra da neutralidade fiscal.

Em momentos de desespero, é necessário que os parlamentares tenham a sabedoria de agir com serenidade fiscal. E o que isso significa? Coordenarem os esforços legislativos em um movimento lógico e harmonioso voltado a salvar o maior número de vidas e, em seguida, de empregos. Isso não é fácil, mas, como diria o Gato de Cheshire, para quem não sabe onde ir, qualquer caminho serve – mesmo aquele que leva ao abismo fiscal.

[1] “Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios:

I – para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;

II – no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, "b".

Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição.

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    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

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    é conselheiro titular e vice-presidente de turma do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, doutorando, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, professor de Direito Tributário na graduação da Faculdade de Direito da USJT, na pós-graduação da FGV, do IBET, do IBDT, da APET e de cursos preparatórios CFP/Anbima da FK-Partners.

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