Direito Civil Atual

Na pandemia, o Direito Sucessório vai dar seu frog jump?

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  • Eroulths Cortiano Junior

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) doutor em Direito pela UFPR e pós-doutor pela Universitá degli Studi di Torino. É líder do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico e da Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. É associado do IAP IBDCIVIL IBDCONT IBDFAM IBERC advogado em Curitiba e procurador do Estado do Paraná.

19 de abril de 2020, 10h56

ConJur
As crises – econômicas, sociais, sanitárias – aceleram processos e tomadas de decisões. Ao mesmo tempo que exigem soluções e adaptações instantâneas, elas permitem enxergar os tempos pós-crise. Basta lembrar Churchill, Roosevelt e Stalin reunidos em Yalta, em fevereiro de 1945, organizando o mundo posterior a uma guerra que ainda não acabara. Nas crises, o Direito também é repensado e reconstruído, seja para dar conta do momento difícil, seja para depois de superada a adversidade. Em tempos de crise, a doutrina aguça seus estudos e propõe soluções, e os juízes dão decisões difíceis com base em legislação de tempos não difíceis.

O Legislativo também deve se movimentar para que o Direito não seja um obstáculo à superação da crise e permita ordenar o mundo que virá depois dela. Isso fica evidente na atual pandemia da Covid-19. O processo legislativo, normalmente cheio de amarras e cuidados (principalmente no que toca aos institutos fundamentais do direito privado: pessoa, família, propriedade e contrato) não pode esperar a sedimentação das ideias, valores e princípios. A evolução da lei, normalmente lenta para apreender bem o que a sociedade quer, precisa ser ágil para dar respostas à crise. Nesses momentos, pode acontecer um frog jump: em direção ao futuro, pulam-se etapas do lento processo legislativo e o legislador, premido pela urgência, toma decisões que levariam muito tempo não fosse a situação de crise. Numa só expressão, as crises aceleram o futuro do Direito.

Veja-se o caso do testamento e de suas formalidades. Tradicionalmente imobilizada, a forma testamentária é rígida em nome de uma pretensa segurança do testador e de sua vontade. Esse extremo apego à formalidade é evidente, por exemplo, no testamento público que há de ser “escrito” e “lido em voz alta a um só tempo” para as testemunhas e o testador. A excessiva formalidade (e tudo o que essa formalidade carrega consigo: burocracia, custo, tempo) gera uma difícil acessibilidade e uso dos testamentos.

Essa construção (romana? moderna?) começa a ceder diante das novas funções que o testamento é chamado a desempenhar: se o Direito quer prestigiar a vontade testamentária e garantir uma melhor administração da herança, há que se rever – ou pelos menos relativizar – a desmedida exigência de formas tabulares seculares.

O Código Civil de 2002 já deu um primeiro passo na superação das formalidades testamentárias, ao permitir o testamento particular sem testemunhas, desde que o testador declare as circunstâncias que o cercavam: trata-se do artigo 1.879 que não tem congênere no Código de 1916.

Os tribunais também têm relativizado a exigência de algumas solenidades, prestigiando a vontade do testador. Desde algum tempo o STJ tem decidido que os vícios “graves” ou “formais-materiais” (aqueles que “transcendem a forma do ato e contaminam o seu próprio conteúdo”) não invalidam o testamento, e que os vícios “menos graves” (aqueles que “não atingem a substância do ato de disposição) não anulam o testamento. Esta posição aparece, por exemplo, no REsp 1.677.931 (3ª Turma, relatora ministra Nancy Andrighi, julgamento em 15 de agosto de 2017), no REsp 1.583.314 (3ª Turma, relatora ministra Nancy Andrighi, julgamento em 21 de agosto de 2018) e no REsp 1.639.021 (3ª Turma, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgamento em 24 de outubro de 2017).

O STJ está evoluindo este entendimento e já aponta que se deve abandonar a prévia distinção (vícios graves e menos graves) e ter como mote a existência ou não de dúvida sobre a vontade do testador, que é o que importa realmente. Se o vício coloca em dúvida o real querer do testador, o ato deve ser anulado; se não, o ato deve ser mentido. É o que o Superior disse em recentíssimo (11 de março de 2020) julgamento, no qual se destaca:

(…) SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA. AUSÊNCIA DE ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO DO TESTADOR. REQUISITO DE VALIDADE. OBRIGATORIEDADE DE OBSERVÂNCIA, CONTUDO, DA REAL VONTADE DO TESTADOR, AINDA QUE EXPRESSADA SEM TODAS AS FORMALIDADES LEGAIS. DISTINÇÃO ENTRE VÍCIOS SANÁVEIS E VÍCIOS INSANÁVEIS QUE NÃO SOLUCIONA A QUESTÃO CONTROVERTIDA. NECESSIDADE DE EXAME DA QUESTÃO SOB A ÓTICA DA EXISTÊNCIA DE DÚVIDA SOBRE A VONTADE REAL DO TESTADOR.

(…)

4- Em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se, sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador.

5- Conquanto a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça permita, sempre excepcionalmente, a relativização de apenas algumas das formalidades exigidas pelo Código Civil e somente em determinadas hipóteses, o critério segundo o qual se estipulam, previamente, quais vícios são sanáveis e quais vícios são insanáveis é nitidamente insuficiente, devendo a questão ser examinada sob diferente prisma, examinando-se se da ausência da formalidade exigida em lei efetivamente resulta alguma dúvida quanto a vontade do testador.

(…)

8- Hipótese em que, a despeito da ausência de assinatura de próprio punho do testador e do testamento ter sido lavrado a rogo e apenas com a aposição de sua impressão digital, não havia dúvida acerca da manifestação de última vontade da testadora que, embora sofrendo com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva.

(STJ, 2ª Seção, REsp 1.633.254, relatora ministra Nancy Andrighi, julgamento em 11 de março de 2020)

Nesse mesmo caminho da simplificação das formas testamentárias vai o Projeto de Lei 1.627/2020 (autoria da senadora Soraya Thronicke) que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito de Família e das Sucessões no período da pandemia da Covid-19. O projeto (cuja elaboração contou com o auxílio luxuoso dos professores Mário Luiz Delgado, João R. B. Aguirre, José Fernando Simão e Maurício Bunazar), talvez permita um frog jump em matéria de testamento. O PL propõe (a) que os testamentos particulares sejam escritos e gravados, com imagem e voz do testador e testemunhas, devendo ser confirmado em até 90 dias após cessada a situação de crise sanitária; e (b) considera, no período da pandemia, desnecessária a prova das circunstâncias excepcionais que autorizam o testamento particular sem testemunhas (artigo 1.879 do Código Civil).

A possibilidade da realização de testamento gravado é um bom passo em direção à desburocratização do testamento e sua adaptação à vida contemporânea. Se o PL for convertido em lei, a validade de testamento gravado será apenas transitória e exigirá posterior confirmação pelo testador. No entanto, essa breve e transitória novidade bem poderia ser permanente, bastando algumas cautelas de segurança. Assim, vai se democratizar o acesso ao testamento, facilitar sua interpretação e permitir uma melhor administração da herança. É disso que se precisa: prestigiar a autonomia testamentária, reservando à sua forma apenas a função de garantir a declaração livre e segura vontade de testar. É dizer: este salto pode fazer com que o testamento escrito deixe de ser um instrumento moderno e passe a ser pós-moderno.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

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    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutor em Direito pela UFPR e pós-doutor pela Universitá degli Studi di Torino. É líder do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico e da Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. É associado do IAP, IBDCIVIL, IBDCONT, IBDFAM, IBERC, advogado em Curitiba e procurador do Estado do Paraná.

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