Opinião

A voluntariedade do colaborador preso e a nova Lei Anticrime

Autores

  • Rafael Araripe Carneiro

    é doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim professor e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Improbidade Administrativa do IDP. Sócio-fundador do Carneiros & Dipp Advogados.

  • Pedro Victor Porto Ferreira

    é advogado criminalista do escritório Carneiros e Dipp Advogados e mestrando em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).

  • Igor Suassuna de Vasconcelos

    é advogado criminalista sócio fundador do Suassuna de Vasconcelos Advocacia LL.M. em Compliance e Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e professor.

19 de abril de 2020, 6h03

A edição da denominada Lei Anticrime (Lei nº 13.964/19) trouxe importantes alterações ao ordenamento legal brasileiro, principalmente no que diz respeito aos contornos dos acordos de colaboração premiada. Entre os dispositivos alterados pelo novo estatuto, destaca-se o artigo 4°, §7°, inciso IV, da Lei 12.850/13, que passou a consignar a necessidade de o magistrado analisar a "voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares" [1].

Diante de tal opção legislativa, surge o imediato questionamento: quais as balizas a serem observadas pelo julgador para compatibilizar a necessária voluntariedade do acordo de colaboração premiada com a imposição de medidas cautelares, notadamente com a prisão?

No ano de 2014, essa discussão ocupou fortemente o espaço de debate após o Ministério Público Federal, no bojo de habeas corpus impetrados perante o Tribunal Regional da 4ª Região, [2] ter ofertado pareceres nos quais defendia a manutenção da prisão preventiva diante da "possibilidade real de o infrator colaborar com a apuração penal". [3]

Em face desse entendimento, a legalidade dos acordos passou a ser severamente questionada, posto que os réus devem ser livres de qualquer coação, física ou psicológica, na negociação. Segundo Geraldo Prado, a posição do órgão ministerial ofende a ordem constitucional, que presume inocente o acusado e "o protege contra iniciativas que visam a constranger a produzir confissões", concluindo que: "o MPF prega o emprego da prisão provisória como método destinado a burlar a garantia que tem o dever de resguardar". [4].

A questão chegou a ser enfrentada, em 2015, pelo Supremo Tribunal Federal, oportunidade em que o ministro Teori Zavascki afirmou o seguinte: "Seria extrema arbitrariedade (…) manter a prisão preventiva como mecanismo para extrair do preso uma colaboração premiada, que, segundo a Lei, deve ser voluntária (Lei 12.850/13, artigo 4º, caput e §6º). Subterfúgio dessa natureza, além de atentatório aos mais fundamentais direitos consagrados na Constituição, constituiria medida medievalesca que cobriria de vergonha qualquer sociedade civilizada". [5]

Ainda assim, no ano de 2016 já haviam sido estabelecidos 13 acordos de colaboração premiada com réus presos no bojo da nomeada Operação Lava Jato. [6] A propósito, importante levantamento feito pelo jornalista Pedro Canário demonstrou que, durante o período de março de 2014 até janeiro de 2017, as prisões preventivas decretadas no âmbito da referenciada operação tiveram a duração média de 281 dias. Ainda segundo o estudo, dos 58 colaboradores com acordos não protegidos pelo sigilo firmados no aludido intervalo temporal, 25 tiveram sua liberdade cerceada e restabelecida logo após celebrar o acordo de colaboração. [7]

Mais recentemente, em dezembro de 2019, no âmbito da denominada Operação Calvário, deflagrada na Paraíba, todas as colaborações premiadas foram realizadas com pessoas que se encontravam presas durante a negociação dos seus respectivos acordos, o que foi observado por Lênio Streck em interessante artigo sobre a apropriação moral e política do Direito, publicado pela ConJur. [8]

Durante todo esse período, propostas legislativas foram apresentadas para que fosse preservada a voluntariedade dos acordos de colaboração premiada, tais como a do deputado Wadih Damous (PT/RJ), a qual estabelecia como condição para homologação judicial do acordo o estado de liberdade do colaborador. [9]

Em regras gerais, "quando se fala em voluntariedade, refere-se a uma forma de proteção dada à vontade do indivíduo em realizar determinado ato; no caso da colaboração premiada, ato de cooperar com as investigações, na forma da lei". [10] Nessa linha intelectiva, a vontade deve decorrer da autodeterminação do sujeito, sendo necessário, portanto, que exista "a priori, uma vontade de manifestar o desejo de cooperar uma construção voluntária deste desejo". [11]

Tais ponderações revelam que na realização dos acordos de colaboração premiada é preciso garantir standarts mínimos para que ambas as partes efetivamente formalizem um encontro de vontades e não um contrato de adesão.

Nos acordos de colaboração, a uma das partes — o Ministério Público — assiste todo o aparato de investigação e acusação do Estado, sendo o principal responsável por propor e acatar, ou não, a proposta de acordo a ser homologado judicialmente. [12] Embora o agente colaborador possa se negar a fazer acordo, não há colaboração sem que o Parquet esteja integralmente satisfeito com os elementos trazidos pelo colaborador.

Para suplantar esse desequilíbrio entre as partes, alguns autores [13] remetem à evolução legislativa referente às prerrogativas do colaborador, principalmente àquelas previstas na parte final do parágrafo sétimo [14] e no parágrafo 15º [15], ambos do artigo 4° da Lei 12.850/13, quais sejam, o direito de ser ouvido sigilosamente pelo juiz, que avaliará os aspectos relacionados a regularidade, legalidade, adequação e voluntariedade do acordo, e o direito de sempre ser acompanhado por seu defensor.

Contudo, nenhuma dessas garantias concretiza verdadeira paridade de armas. Ainda que respeitadas essas previsões legais, esquecem-se que a outra parte — o agente colaborador — encontra-se, muitas vezes, com seu direito fundamental à liberdade tolhido, de modo que o não acordo pode implicar encarceramento a ser mantido por período indeterminado. Não há como contrabalancear isso. O dano ou a ameaça a direito fundamental recai eminentemente sobre quem já se encontra em posição de vulnerabilidade.

Nesse sentido, Gustavo Badaró defende a incompatibilidade semântica entre a voluntariedade e a prisão, visto que o primeiro significa "agir voluntário é, portanto, um ato que se pode optar por praticar ou não. (…) o agir que não é forçado. Por outro lado, que prisão é coação, é o que traduz a própria Constituição". [16] Somado a isso, ao investigado ou acusado nada é mais importante do que retomar sua liberdade o quanto antes, de forma que está em constante tensionamento a acatar todos os mecanismos que lhe propiciem tal benesse[17].

Diante da notória complexidade e da sensibilidade do tema, a nova Lei Anticrime optou pela solução intermediária: reconheceu a possibilidade de coexistência entre a "voluntariedade da manifestação de vontade" do agente colaborador e a submissão a medidas cautelares, porém exigiu-se controle especial pelo magistrado nessas hipóteses. Em outras palavras, a aplicação das medidas cautelares não implica, obrigatoriamente, a mácula do acordo, contanto que o magistrado efetivamente analise a voluntariedade e a situação especial em que se encontra o colaborador.

Assim, a Lei Anticrime, embora de modo tímido, assentou a necessidade de maior cautela e responsabilidade do órgão julgador ao avaliar a voluntariedade da manifestação de vontade do colaborador, especialmente quando estiver submetido a medidas cautelares. E quais são os critérios para esse controle especial da voluntariedade?

Aspectos como a necessidade e a adequação da custódia preventiva, o tempo de encarceramento, a pena eventualmente aplicada e a situação psicológica e familiar do colaborador devem ser levados em consideração na sindicância especial da voluntariedade do colaborador preso. Dessa forma, com o fim de resguardar ato verdadeiramente autônomo e garantir o equilíbrio das partes no negócio jurídico, o magistrado pode:

I) Reavaliar, no momento da homologação, os requisitos e a duração das cautelares impostas: essa medida dará mais serenidade e equilíbrio ao candidato à colaboração quando da negociação, pois sua liberdade poderá ser restabelecida pelo magistrado, independentemente dos termos do acordo realizado;

II) Determinar a realização de exame psicológico: assim será possível aferir minimamente as condições emocionais em que se encontrava o colaborador e a sua efetiva voluntariedade para formalização do acordo;

III) Analisar os impactos do acordo sobre terceiros: em certos casos a formalização do ajuste em sendo direcionada a favorecer terceiro, normalmente parente ou familiar, o que também pode gerar dúvidas sobre a voluntariedade da negociação;

IV) Certificar-se de que foram esclarecidas ao colaborador todas as consequências de firmar o acordo de colaboração premiada e que se deu conhecimento tanto dos documentos acusatórios quanto dos exculpatórios: essa medida visa a garantir que o colaborador tenha conhecimento dos riscos e do custo-benefício envolvido na negociação, para que não sofra influências indevidas.

Essas são algumas sugestões que podem ser facilmente apreciadas no momento da homologação do acordo, sendo certo que quanto mais numerosas e drásticas forem as cautelares a que estiver submetido o colaborador, maior deve ser o controle pelo Poder Judiciário. A pressão pela liberdade ou fim do processo [18] não pode ser admitida como forma de aniquilar a voluntariedade da parte e, consequentemente, comprometer a validade do negócio jurídico.

 


[1] §7º Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: IV – voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares.

[2] Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Habeas Corpus nº 5029016-71.2014.4.04.0000.

[3] “A conveniência da instrução criminal mostra-se presente não só na cautela de impedir que investigados destruam provas, o que é bastante provável no caso do paciente, mas também na possibilidade de a segregação influenciá-lo na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes. Acessado em 28 de março de 2020.

[4] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-nov-28/professores-criticam-parecer-prisao-preventiva-lava-jato. Acessado em 28 de março de 2020.

[5] HC 127.186/PR, Relator Ministro Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 28/04/2015.

[6]Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/de-52-acoes-de-delacao-premiada-apenas-13-foram-feitas-com-reus-presos-19394364. Acessado em 29 de março de 2020.

[7] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-fev-07/criticadas-preventivas-lava-jato-duram-media-93-meses. Acessado em 31 de março de 2020.

[8] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-26/senso-incomum-apropriacao-moral-politica-direito-degrada-estado-direito

[9]Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2077165. Acessado em 29 de março de 2020.

[10] COSTA, Leonardo Dantas. Delação premiada: a atuação do Estado e a relevância da voluntariedade do colaborador com a justiça. Curitiba: Juruá, 2017. p. 153.

[11] COSTA, Leonardo Dantas. Op. Cit. p, 156.

[12] Sobre tal questão, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no bojo do Mandado de Segurança n. 35.693, assentou que o Ministério Púbico não é obrigado a firmar acordo de colaboração premiada, independentemente da duração dos processos de negociação. Consoante o Relator, a colaboração é negócio jurídico, cuja conveniência e oportunidade não se submetem ao crivo do Estado-juiz.

[13] MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. São Paulo: Método, 2015. p. 96-97.

[14] § 7º Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação.

[15] § 15. Em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor.

[16] Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/quem-esta-preso-pode-delatar-23062015. Acessado em 29 de março de 2020. No mesmo direcionamento: BORRI, Luiz Antônio. Delação premiada do investigado/acusado preso cautelarmente: quando o Estado se transfigura em criminoso para extorquir a prova do investigado. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 24, n. 285, p. 6-8, ago. 2016.

[17] MENDES, Soraia da Rosa; BARBOSA, Kássia Cristina de Sousa. Anotações sobre o Requisito da Voluntariedade e o Papel do/a Juiz/a em acordos de colaboração premiada envolvendo investigados/as e/ou réus/rés presos/as provisoriamente. In: A delação/colaboração premiada em perspectiva. Brasília: IDP, 2016. p. 85.

[18] ROSA, Alexandre Morais da. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. 2. ed. [S.l.]: Empório do Direito; [S.l]: Rei dos Livros, 2015. p. 113.

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