Opinião

O fundo eleitoral e a Covid-19

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19 de abril de 2020, 17h51

O fundo eleitoral (FEFC – Fundo Especial de Financiamento de Campanha) tem sido alvo de constrições judiciais visando ao redirecionamento de seus recursos ao combate local dos efeitos da pandemia da Covid-19. Em especial, chamam a atenção duas decisões proferidas pela Justiça Federal, uma no Rio de Janeiro e outra no Distrito Federal, analisando — e concedendo tutelas provisórias em ações populares.

Os argumentos veiculados nos referidos pronunciamentos judiciais são dignos de nota. Em um deles constou que: a) os mais poderosos — aqueles que controlam o orçamento da União não podem ser poupados neste momento de crise e, pois, devem dar o exemplo; b) desse modo, "a manutenção de fundos partidários e eleitorais incólumes, à disposição de partidos políticos, ainda que no interesse da cidadania (Artigo 1º, inciso II, da Constituição), afigura-se contrária à moralidade pública, aos princípios da dignidade da pessoa Humana (Artigo 1º, inciso III, da Constituição), dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (Artigo 1º, inciso IV, da Constituição) e, ainda, ao propósito de construção de uma sociedade solidária (Artigo 3º, inciso I, da Constituição)”;  e c) com efeito, haveria "inconstitucionalidade transitória" da previsão do fundo eleitoral, razão suficiente para a "suspensão da eficácia" do artigo 16-C, § 2º, da Lei nº 9.504/97.

Para alcançar a mesma conclusão, outros foram os alicerces da segunda decisão examinada. Em síntese, o juiz aduziu que: a) o momento de crise exige a "ponderação" entre os direitos à saúde e à vida em relação ao direito de financiamento de campanhas eleitorais; b) ademais, existiria "flagrante possibilidade de não utilização dos recursos" em vista do risco de não realização das eleições; c) isso não bastasse, considerou que as medidas orçamentárias do Poder Executivo até o momento são extremamente tímidas, representando a alocação de apenas 2% do Produto Interno Bruto (PIB) ao combate da pandemia, enquanto o Reino Unido e a Espanha destinaram 17% dos seus PIBs, os EUA, 6,3%, podendo chegar a 11,3%, a Alemanha 12% e a França, 13,1%; e d) desse modo, não se justificaria a reserva dos recursos, que poderão somar R$ 2 bilhões, "apenas para futura e incerta utilização para patrocínio de campanhas eleitorais".

As duas decisões foram suspensas pelos presidentes dos respectivos Tribunais Regionais Federais. Não sendo o caso de demonstrar eventual desacerto na apreciação dos enunciados de fato e de direito (errores in iudicando), por ora interessa refletir como elas ultrapassaram os limites da atividade jurisdicional e, pois, malferiram o texto constitucional.

Um dos julgadores teve o cuidado em "procurar" alicerces constitucionais em suporte de sua conclusão, asseverando que a manutenção do fundo macularia a moralidade pública, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e, ademais, a construção de uma sociedade solidária. Curiosamente, a menção aos "princípios" veio desacompanhada da construção de regras aplicáveis ao caso, é dizer, eles (princípios) foram invocados como razões suficientes ao bloqueio do fundo eleitoral, passando-se ao largo da identificação de seus antecedentes (hipótese de incidência) e consequentes (efeitos jurídicos). Não se justificou como a manutenção do fundo eleitoral poderia ocasionar a violação de tais institutos.

Trata-se de verdadeira "decisão slogan", cuja motivação poderia ser replicada à "solução" de outros casos. Tais razões seriam facilmente direcionáveis para atacar quaisquer dotações orçamentárias que se julgue, ao juízo do magistrado, desimportantes frente ao estado pandêmico. Que se recorde: decisões alheias às características e nuances fático-jurídicas do caso são repelidas pelo artigo 489, § 1º, II e III, CPC.

A rigor, os dois pronunciamentos padecem do mesmo mal, o ativismo judicial, consistente no desrespeito à legalidade posta (=Constituição + lei) em virtude da nítida invasão sobre o núcleo essencial de funções que, constitucionalmente, são atribuídas a outros poderes [1]. Na contramão do Direito e em prejuízo da democracia, o ativismo não pode ser tolerado.

Os limites funcionais vertidos no texto constitucional impedem que o Judiciário, ainda que no aparente exercício do controle de constitucionalidade (em si, legítimo), substitua-se ao Executivo ou ao Legislativo. Do contrário, ele deixaria de proferir decisões jurídicas e passaria a tomar escolhas políticas, que, conquanto não sejam de todo livres de limites jurídicos, gozam, por sua natureza, de margens de discricionariedade expressivamente maiores do que as primeiras. Precisamente isto é o ativismo judicial: a invasão de um poder na esfera do outro, sem autorização constitucional para tanto [2].

As duas decisões compartilham idêntica premissa: o fundo eleitoral é menos importante que o combate à pandemia da Covid-19. A par de constituir um juízo moral dos decisores de turno e nada obstante seja possível afirmar que essa opção corresponda à opinião da maioria dos cidadãos , a conclusão de que o fundo eleitoral deve ser aplicado no combate da Covid-19 implica em intromissão do Judiciário em competência do Legislativo.

Cada uma das funções estatais tem sua dignidade — a do Legislativo é a legislação; a do Executivo, sua autoridade; e a do Judiciário, sua independência — e elas devem atuar de modo articulado: primeiro, o Legislativo cria lei geral e abstrata que fornece os critérios para, depois, o Executivo realizar políticas públicas e o Judiciário decidir imparcialmente os casos a ele submetidos. [3].

Tirante especificidades de ordem constitucional positiva como nos casos do mandado de injunção , entre nós as funções legislativa e executiva são majoritárias, enquanto a jurisdicional é contramajoritária; elas devem ser exercidas em "governança articulada" [4], sem invasão das competências de uns pelos outros.

É necessário dizer que o "império da lei” representa o limite sobre os nossos desacordos morais e políticos. A dignidade da legislação assenta na necessidade de agirmos do mesmo modo sobre determinados assuntos ou de coordenar o nosso comportamento em várias áreas em direção a uma “estrutura comum”. O fato de discordarmos da "justiça" de uma lei não é motivo idôneo para que a dignidade da legislação seja negligenciada pelo Judiciário [5].

Não compete ao Judiciário proceder a "reponderações" das soluções parlamentares [6] com vistas a fazer prevalecer uma solução "melhor", segundo os critérios subjetivos da autoridade judiciária de turno [7]. A legalidade existe, em grande parte, para evitar que "juízes maus" façam "coisas ruins", mas também para evitar que "juízes bons" façam o que consideram "coisas boas", pois o que assim se apresenta a curto prazo pode implicar em corrosão da autonomia do direito no longo prazo [8]. Portanto, decisões supostamente "bem fundamentadas" não compensam questões de competência, sendo imperiosa a adoção de uma postura de autocontenção [9].

Uma das decisões analisadas invocou a "ponderação" de valores constitucionais para autorizar o uso do fundo eleitoral para o combate da pandemia. Conquanto deveras sofisticada e impossível de ser aqui escrutinada em pormenor [10] neste curto espaço, quer nos parecer que a teoria da ponderação de Robert Alexy mesmo quando corretamente aplicada não oferece respostas ao problema da transgressão funcional do Judiciário.

Em primeiro lugar, ela promove a desdiferenciação do sistema jurídico. No modelo alexyano, à base da ponderação está a distinção estrutural entre regras e princípios. Regras são mandamentos de determinação aplicáveis por subsunção, já princípios são mandamentos de otimização aplicáveis por ponderação. A ponderação visa à otimização fática (via adequação e necessidade) e jurídica (via proporcionalidade em sentido estrito) dos direitos fundamentais em casos de colisão entre dois ou mais princípios constitucionais. Princípios são padrões normativos de aplicação gradual: no exame da adequação, o Judiciário verifica se as estratégias de ação previstas na norma são adequadas para alcançar o seu fim; no da necessidade, o Judiciário analisa um hipotético rol de meios dos quais o legislador teria lançado mão para definir se o eleito é o menos gravoso; e no da proporcionalidade stricto sensu, o Judiciário submete a escolha legislativa a um filtro axiológico [11].

Mesmo se valendo de uma complexa teoria da argumentação, o próprio Alexy afirma que ela serve para reduzir a irracionalidade decisória, mas não define qual resposta pode ser considerada correta para o caso [12]. Contudo, para ter autonomia, o Direito deve possuir um jogo de linguagem especial e impedir o livre trânsito de argumentos de outros jogos para ele. A ponderação despreza isso. Não são argumentos estritamente jurídicos que definem qual é o fim da norma, o meio menos gravoso e o sopesamento que estabelece o custo-benefício ótimo. Como a forma de argumentar e os argumentos admitidos no jogo do Direito operam em bases pragmático-utilitaristas e axiológicas, a ponderação alexyana se afasta do código binário lícito/ilícito e desnatura o caráter deontológico do Direito, que deixa de existir enquanto tal [13].

Em segundo lugar, e por consequência do primeiro, ela viola a separação dos poderes e o princípio democrático. Restringindo nosso exame à proporcionalidade stricto sensu, seus defensores soem afirmar que, observadas certas cautelas metodológicas, a ponderação reduz a carga de subjetividade e permite encontrar a melhor forma de harmonização dos direitos fundamentais. Essa operação resulta na modificação do critério de definição da competência para a otimização dos direitos fundamentais, que deixa de ser jurídico (= definido por normas constitucionais) para ser empírico (= definido pelo exame da autoridade dotada de maior expertise para tanto).

O expediente fomenta e blinda o ativismo judicial, pois esvazia a dignidade da legislação e reduz a zero a margem de liberdade de conformação do Legislativo para exercer a democracia representativa. São seríssimos problemas de ordem teórico-constitucional e político-constitucional [14].

Repugnando essa solução e voltando os olhos à Constituição, nota-se que ela não sistematiza hierarquicamente os direitos fundamentais, de modo que inexistem critérios normativos para promover a otimização jurídica dos direitos fundamentais. A contrario sensu, conclui-se que "ponderar em sentido estrito significa tomar decisões políticas, e não jurídicas". Indagando sobre quem detém competência para tomar essas decisões políticas, encontram-se pistas no artigo 2º, CF: dele deriva a conclusão de que a competência para tomar decisões políticas é do órgão tradicionalmente especializado para tanto. Pelos critérios jurídicos dispostos na Constituição (artigos 48 a 51, da CF), a competência para promover a "otimização jurídica" dos direitos fundamentais é do Legislativo, não do Judiciário [15].

O que se pretende demonstrar aqui é que o ativismo judicial consiste na invasão das funções dos demais poderes pelo Judiciário e que a ponderação, mesmo quando escrupulosamente observada, implica, ao menos pela via da proporcionalidade stricto sensu, em violação da separação dos poderes.

Sem dúvida, tende a ser instigante a busca por melhores respostas e, consequentemente, pela identificação da autoridade que tem as melhores condições de oferecê-las. Há de se atentar, porém, para quando essas discussões ingressam num plano ideal, pois aí devem se limitar a propostas de constitutionis ferenda.

Respostas jurídicas de constitutionis lata não se voltam ao ideal, mas ao código binário lícito/ilícito. E, sim, decisões lícitas podem ser "moralmente ruins", assim como decisões ilícitas podem ser "moralmente boas". Contudo, a valoração moral não faz do lícito ilícito, tampouco do ilícito lícito.

Mesmo em tempos de crise, "boas decisões" proferidas por autoridades incompetentes são ilícitas, descaem em ativismo judicial. É o que se passa com os provimentos em apreço. Não se deve contemporizar com elas. A bem da autonomia do direito [16] e do estado democrático de direito, é assim que deve ser.

 


[1] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 117.

[2] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1276.

[3] WALDRON, Jeremy. Political Political Theory. Cambridge: Harvard University Press, 2016, Cap. 3 – Separation of Powers and the Rule of Law –, págs. 45-71.

[4] Sobre demarcar a área de atuação de cada uma das dimensões estatais, a separação dos poderes possui conteúdo normativo que permite exigir correções no caso de sua violação. A ideia de governança articulada reforça a tese de que, em Direito, questões de autoridade (=quem tem competência para decidir sobre X) são preliminares insuperáveis às questões de correção (=qual é a melhor decisão sobre X).

[5] WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Clarendon Press, 2004, p. 7.

[6] TORRANO, Bruno. Pragmatismo no Direito e a Urgência de um “pós-pós-positivismo” no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 134.

[7] WALDRON, Jeremy. A Dignidade da Legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 73

[8] SCHAUER, Frederick F. The Force of Law. Cambridge: Harvard University Press, 2015, pp. 91-92.

[9] DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 8 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 269.

[10] Amplamente: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, passim.

[11] CRUZ, Álvaro Ricardo de. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pp. 213-215.

[12] ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2005, p. 301.

[13] CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. A Resposta Correta. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011, p. 218.

[14] MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional. São Paulo: Atlas, 2012, p. 76.

[15] DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Cit., pp. 260-261.

[16] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 526 e ss.

Autores

  • é juiz no Tribunal de Justiça do Paraná e professor de Direito Processual Civil nos cursos de especialização da UNISUL, CESUL, Toledo-Prudente e UFP e membro-fundador e Diretor de Comunicação Social da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). É doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), mestre em Processo Civil pela Universidade de Coimbra, especialista em Direito Internacional Público e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra e Instituto Ius Gentium Conimbrigae.

  • é advogado, mestrando em direito processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro), parecerista ad hoc da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) e professor do curso de direito da Faculdades Integradas de Aracruz-ES (Faacz)".

  • é professor da Unicap, diretor de Assuntos Institucionais da ABDPro e vice-presidente da Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência da OAB-PE.

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