Opinião

Cinco alterações significativas a partir do pacote "anticrime"

Autor

  • Arthur Marchette Fernandes

    é advogado criminalista pós-graduando em Direito Penal Lato Sensu e em Direito Processual Penal Lato Sensu pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade (IBMEC/SP) e membro da Comissão de Direito Penal da 9ª Subseção da OAB/RJ.

18 de abril de 2020, 9h05

A Lei 13.964/19, conhecida como lei do "pacote anticrime", foi sancionada em 24 de dezembro de 2019 e entrou em vigor em 23 de janeiro de 2020 Com a nova lei, diversos dispositivos do Código Penal (CP) e do Código de Processo Penal (CPP), além de outras leis, como a Lei 7.210/84 (LEP), foram revogados, alterados ou acrescentados.

Destarte, nosso CPP sofreu alterações significativas no que diz respeito à prisão e às medidas cautelares, às quais me dedicarei no presente artigo.

Começando pelo artigo 282, parágrafo 2º, do CPP. Agora, de acordo com a redação dada pela Lei 13.964/19, as medidas cautelares podem ser decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. Note bem: Agora, o juiz não pode mais decretá-la de ofício. Portanto, caso o magistrado assim venha a fazer, verificar-se-á ilegalidade, podendo a defesa requerer o afastamento da medida aplicada.

O parágrafo 3º do CPP do mesmo dispositivo legal traz também novas regras importantes a se observar. Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária e, agora, de acordo com a redação dada pela Lei 13.964/19, deve abrir prazo de 5 dias. Não obstante, a nova lei determina ainda que, nos casos de urgência ou de perigo, deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional. Dessa forma, caso o juiz deixe de abrir o prazo determinado pela nova lei ou deixe de justificar e fundamentar a decisão nos casos de urgência/perigo, a decisão será manifestamente nula. E, aqui, vale um parêntese: a Lei 13.964/19 acrescentou o inciso V ao artigo 564 do CPP, que, agora, expressamente prevê que é nula toda decisão carente de fundamentação.

Ainda tratando do mesmo dispositivo legal (artigo 282 CPP), a Lei 13.964/19 acrescenta no parágrafo 6º que o não cabimento de aplicação da medida cautelar em substituição à decretação da prisão preventiva deve ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada. Essa determinação vai de encontro à nossa CRFB/88 (artigo 93, IX). A prisão, como é cediço, é excepcional, ultima ratio, e, agora, como prevê expressamente o parágrafo 6º do artigo 282 do CPP, a sua decretação exige fundamento de acordo com o caso concreto, de forma individualizada, sob pena de nulidade (CPP, artigos 315, parágrafo 2º e 564, inciso V).

E agora uma alteração não menos importante das acima citadas, mas à qual se deve dar especial atenção. A Lei 13.964/19 revogou o parágrafo único do artigo 312 do CPP que trata da decretação da prisão preventiva e, acrescentou dois parágrafos. Quero me ater ao parágrafo 2º, que dispõe da obrigatoriedade da motivação e do fundamento da decisão que decretar a prisão preventiva em decorrência de receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada. Essa questão já havia sido analisada pela jurisprudência do STJ, em especial no HC em que figurou como paciente Michel Temer (HC 509.030 RJ, 30.05.2019. relator ministro Antonio Saldanha Palheiro). Agora a regra está prevista expressamente em nosso CPP.

Por último, registro aqui a quinta alteração essencial introduzida pela Lei 13.964/19. Antes da sanção do Pacote Anticrime, não havia em nosso ordenamento jurídico um prazo máximo de prisão cautelar. Assim, não era fácil demonstrar, por exemplo, um excesso de prazo da prisão para se requerer um relaxamento da cautelar. Todavia, a jurisprudência de nossos tribunais superiores apreciaram a questão. STJ: HC 384.660 PE, de 11 de janeiro de 2017, ministra Laurita Vaz; e STF: HC 94.292 SP, de 27 de fevereiro de 2011, ministro Marco Aurélio. Agora, com a sanção da Lei 13.964/19, foi introduzido o parágrafo 6º ao artigo 316 do CPP, que determina ao órgão emissor da decisão que decretou a prisão preventiva revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90  dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. Vale lembrar que a necessidade em que trata o legislador deve ser atual, na forma do artigo 312, parágrafo 2º, do CPP aqui já vislumbrado. Imperioso ressaltar ainda que essa decisão deve ser proferida de ofício pelo juiz, sob pena de ilegalidade, e, logo, relaxamento da prisão, quer seja se não for proferida dentro do prazo, quer seja por ausência da devida fundamentação. Por fim, por se tratar de norma processual, a sua aplicação é imediata e, dessa forma, o prazo em questão conta-se desde a decretação da prisão preventiva.

O acordo de não persecução penal de acordo com a Lei 13.964/19
Entre as inovações trazidas pela Lei 13.964/19, está o acordo de não persecução penal, incluído em nosso CPP, notadamente na alínea "a" do artigo 28, além de retificar o conteúdo contido no caput do referido dispositivo.

Há de se salientar que dito acordo de não persecução penal já existia em nosso ordenamento jurídico a partir da Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). No entanto, o tema era mitigado, isso porque, por um lado, entendia-se que apenas mediante lei seria possível a inclusão desse mecanismo de acordo, pois ele relativiza o princípio da obrigatoriedade da ação penal previsto no artigo 24 do CPP. Questionava-se, ainda, a competência do CNMP em editar norma jurídica de caráter abstrato, equivalente à lei. Por outro lado, entendia-se que o dispositivo era constitucional, com escopo no entendimento do STF que reconheceu que os Conselhos Nacionais do Ministério Público e da Justiça podem elaborar normas jurídicas primárias, cuja fonte imediata é a Constituição, uma vez que a Carta Magna os autorizaria a tanto.

Pois bem, agora com a sanção da Lei 13.964/19, essa questão encontra-se superada, abrangido o acordo em questão diversos delitos que, antes da lei, não eram agraciados por outras espécies de Justiça Negocial como a transação penal ou a suspensão condicional do processo. A título de exemplo, o crime tipificado no artigo 312 do CP (peculato).

O acordo de não persecução penal, de acordo com o artigo 28-A do CPP, beneficiaria o investigado que tenha cometido o delito com pena inferior a quatro anos (consideradas as causas de aumento ou diminuição) com ausência de violência ou grave ameaça, devendo, ainda, confessar a prática do delito.

Nesse toar, é importante que o advogado se atente ao andamento do inquérito policial até a sua conclusão (relatório), já que o IP é posteriormente encaminhado ao Ministério Público, que, por sua vez, pode acabar oferecendo denúncia. Para que isso não ocorra, o advogado diligente pode se dirigir ao Parquet e requerer ao promotor a elaboração da proposta do acordo de não persecução penal, se preenchidos todos os requisitos.

Questiona-se: e se o promotor de Justiça se negar a oferecer o acordo? A Lei 13.964/19 já resolve essa questão. O §14º do artigo 28-A já determina que, no caso de recusa por parte do Ministério Público, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do artigo 28. Ou seja, se, por exemplo, tenha sido negado o oferecimento do acordo pelo promotor de Justiça Estadual, deve-se requerer a remessa dos autos para o Procurador Geral de Justiça (PGJ). Defendo que trata-se de um direito público subjetivo do investigado, portanto, não é opção o seu oferecimento, mas, sim, regra. Uma vez preenchidos os seus requisitos, deve ser formulada a proposta.

Suas condições estão previstas nos incisos I, II, III e IV do artigo 28-A do CPP. São elas: reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do artigo 46 do CP; pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do artigo 45 do CP, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito. Pode o Ministério Público ainda, de acordo com o inciso V, indicar outra condição, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Por derradeiro, é importante trazer à baila as hipóteses de não cabimento do acordo de não persecução penal (artigo 28-A, §2º, incisos I a IV CPP). São elas: na hipótese em que o delito comportar oferecimento de transação penal; investigado reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

O crime de estelionato de acordo com a Lei 13.964/19
Antes da vigência da lei anticrime, o estelionato era ação penal pública incondicionada. Ou seja, não havia dependência de representação do ofendido, bastando que o Ministério Público tomasse ciência do delito para oferecer denúncia. A única exceção a esta antiga regra era a chamada "imunidade relativa", prevista no artigo 183 do CP.

Agora, o delito de estelionato passou a ser ação penal pública condicionada à representação do ofendido (§5º). Isto é, para instaurar-se a persecução penal, faz-se necessário que a vítima represente em face do suposto autor dos fatos. Vale registrar que essa é a regra, tendo por exceção quando a vítima for Administração Pública direta ou indireta, criança ou adolescente, deficiente mental ou pessoas acima de 70 anos ou incapazes (nesses casos a ação será pública incondicionada).

Destarte, estamos diante de uma norma penal híbrida, pois trata de condicionalidade da ação penal pública, bem como trata-se da representação atrelada ao prazo decadencial, à qual a vítima poderá renunciar. Assim, tratando-se de norma penal híbrida, poderá retroagir-se em favor do réu (Novatio Legis in Mellius), tendo em conta que a vítima poderá renunciar ou não representar e, com isso, a ação penal não poderá ser iniciada, visto a ausência de requisito de procedibilidade ou, até mesmo, caso já iniciada, pode o réu ter sua punibilidade extinta por ausência de representação do ofendido na fase processual.

Nesse diapasão, entendo que a alteração trazida pela Lei 13.964/19 aplica-se a todos os casos que não transitaram em julgado. Assim, deve a vítima ser notificada para informar, no prazo de 30 dias (analogia ao artigo 91 da Lei 9.099/95), se deseja representar criminalmente, para que, assim, o inquérito ou processo prossigam, ou, caso contrário, prevalecerá a extinção da punibilidade do agente por decadência (se decorrido o prazo de 6 meses artigos 38 do CPP e 103 do CP). Vale aqui registrar também que, em caso de não representação, pode-se entender, ainda assim, pelo prosseguimento do feito, caso em que o investigado/réu poderá utilizar a via do habeas corpus objetivando o trancamento do inquérito policial ou da ação penal.

Há, contudo, respeitável entendimento diverso, como o do professor Rogério Sanches, que diverge da questão quando já oferecida a denúncia, já que nesse caso teríamos um ato jurídico perfeito, não sendo possível convalidar a condição de procedibilidade para prosseguibilidade.

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    é advogado criminalista, pós-graduando em Direito Penal Lato Sensu e em Direito Processual Penal Lato Sensu pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade (IBMEC/SP) e membro da Comissão de Direito Penal da 9ª Subseção da OAB/RJ.

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