Observatório constitucional

Estamos diante de um novo federalismo brasileiro?

Autores

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

  • Ernani Varjal Medicis Pinto

    é procurador-geral do Estado de Pernambuco.

18 de abril de 2020, 8h00

Spacca
O tempo atual é de mudança, transição. Novos tempos, tempo muito difícil. Já há quem veja o momento presente como marco divisor entre os séculos XX e XXI. Assim como o XIX encontrou seu termo final na década de 1920 com a Grande Guerra, o século XX teria enfim descansado com o acontecimento epocal da pandemia do novo coronavírus1 que nos assola.

Mudanças assim profundas na sociedade não passam despercebidas no campo da linguagem, da história, da economia, da política etc. E, claro, do ponto de vista do direito, os impactos são também sensíveis.

Em sua homilia do dia 11 de abril de 2020, na Vigília Pascal da Sexta Santa, o Papa Francisco aludiu a um novo direito fundamental de que já poderíamos nos julgar titulares, o direito fundamental à esperança2. Independente da perspectiva ou natureza desse novo direito, é certo que os sistemas nacionais de direito positivo estão sob intenso questionamento, releitura, discussão e reinvenção.

No campo do direito constitucional, muitas mudanças e tensões estão em curso neste exato momento, em especial no que tange ao tema do federalismo brasileiro; possivelmente, a forma como até então o pacto federativo brasileiro tem sido lido e compreendido não será a mesma. A crise atual enseja uma inversão de tendências das forças operantes em nosso sistema federal.

O federalismo, seguindo a intuição do constitucionalista alemão Konrad Hesse3, expressa “a livre unificação de totalidades políticas diferenciadas, fundamentalmente com os mesmos direitos, em regras regionais que, deste modo, devem ser unidas para a colaboração comum”. O distintivo do conceito, lembra Hesse, é que cada Estado Federal tem sua “individualidade concreto-história”.

Um dos pontos positivos dessa definição reside na argúcia de não pretender uma concepção estática ou universal do federalismo. Existem múltiplas formas de institucionalização do federalismo, é o que reconhece implicitamente.

O federalismo, portanto, muda no espaço e no tempo. O Brasil, ele mesmo, experienciou diversos federalismos, mesmo sob o manto de uma mesma Constituição, eis que a dinâmica do federalismo pode manifestar diferentes tendências a depender do contexto político de cada momento.

No período republicano sob a vigência da Constituição de 1891, recepcionou-se, aqui, o denominado “federalismo dual ou clássico”, de inspiração norte-americana, segundo o qual a então Constituição Federal estabelecia expressamente as competências da União e resguardava para os Estados-membros todas as demais, o que supostamente a eles significaria maior autonomia e descentralização política. Costuma-se dizer que, em momento algum da história constitucional brasileira, os Estados-membros tenham obtido tamanha autonomia4, o que acabou gerando algumas mazelas a exemplo da “política dos governadores” e do arranjo político entre São Paulo e Minas Gerais, o “café com leite”.

Em outros períodos da política nacional, formalmente a estrutura federalista foi mantida na Constituição, mas isso não passou do mero enunciado do texto constitucional, sem que, na realidade política do dia a dia, o federalismo conseguisse se impor. Muitos denunciariam o “federalismo nominalista” mediante o sensível retraimento das autonomias estaduais.

Desde a vigente Constituição Federal de 1988, acredita-se que foi consagrado um novo pacto federal que teria coroado a forma mais aperfeiçoada do federalismo entre nós, o “federalismo cooperativo ou de equilíbrio”, cujo pressuposto parte da igualdade entre os entes federativos os quais têm suas respectivas competências repartidas pela própria Constituição seguindo o critério da predominância do interesse.

Acontece que esse novo federalismo, no qual os Estados-membro e Municípios estariam prontos para enfim exercerem plenamente sua parcela de autonomia em suas respectivas territorialidades, também encontra obstáculos.

Seja de ordem financeira, haja vista a principal fonte de receita do Poder Público – a arrecadação tributária – ser substancialmente retida pelo governo federal ou nele concentrada, de modo que os Estados-membros e Municípios tornam-se material e economicamente dependentes dos condicionamentos da União.

Seja de ordem jurídico-constitucional, já que a centralização excessiva não raro decorre de decisões do STF, a quem toca definir o limite das autonomias dos entes federativos. E, nesse mister, a Corte Constitucional, garantidora do pacto federativo, encontrou um grande aliado em favor da centralização que dificulta a autonomia dos estados e municípios, precisamente o “princípio da simetria”5.

O federalismo brasileiro de cooperação e equilíbrio, nas últimas três décadas, vem apresentando uma dinâmica centralizadora (“federalismo centrípeto”), oportunizando a hipertrofia do governo federal em detrimento dos governos estaduais e municipais.

Com a pandemia do coronavírus, parece que nova tendência de releitura do federalismo brasileiro tomou seu curso, autorizando que tal conceito fundamental submeta-se a processo de evolução semântica (renovação, reaquisição, ressignificação etc.). As atuais condições sociais e políticas, sabemos pelos historiadores6, interagem com própria forma de interpretação desse princípio fundamental político.

Nesse contexto, dado o preocupante estado de tensão entre os governos federal, de um lado, e estaduais e municipais, de outro, que desde a deflagração da pandemia no Brasil aflora no cenário nacional7, é inegável que o conceito de federalismo parece fluir para uma nova acepção semântica, que se distancia da prefalada noção de federalismo de cooperação ou equilíbrio.

Hoje, falar-se de federalismo, no contexto da política de enfrentamento à pandemia do coronavírus, significa assumir uma postura de contraponto, de limite, de contenção8, quiçá de combate, a algumas das atitudes adotadas pelo governo federal que não são se justificam minimamente perante os consensos e/ou diretivas médicos e sanitários, bem como não se coadunam com aquelas implementadas pelos países que enfrentam o mesmo drama, e ameaçam a saúde de milhares de brasileiros.

No Estado de Pernambuco, por exemplo, com em vários outros da Federação, alguns desses embates podem ser enumerados.

Enquanto o governo federal considerou como atividade essencial as religiosas de qualquer natureza, autorizando-se a celebração de cultos e missas, conforme Decreto Federal 10.292, de 25 de março de 2020, o Governo de Pernambuco editou o Decreto 48.837, de 23 de março de 2020, que suspendeu a realização de eventos de qualquer natureza com a presença de público externo bem como proibiu a concentração de pessoas em número superior a dez, o que acarretou, por consequência, a proibição de celebração dos cultos e/ou missas no Estado de Pernambuco.

Enquanto o governo federal pretendia e, de fato, iniciou campanha publicitária “O Brasil não pode parar”, suspensa liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal (APDF 669), o Governo do Estado decretou a proibição de as pessoas frequentarem praias e parques, que vem sendo sucessivamente prorrogada (Decreto 48.832, de 19 de março de 2020, e sucessivas alterações9), a fim de conter a disseminação do vírus.

Claro, pode-se questionar se tais conflitos, mediante a ideia de que, no condomínio legislativo constitucional, as normas gerais (federais, em regra) não deveriam prevalecer sobre as regionais e/ou locais (estaduais e/ou municipais).

Contudo, a Constituição Federal de 1988 assegurou a competência concorrente no que tange ao dever fundamental de garantir a vida e a saúde de todos os cidadãos. Portanto, aqui não se trata de prevalência, mas de cooperação face ao objetivo constitucional comum. É a saúde pública e a incolumidade da saúde das pessoas que estão em jogo e que legitimam a ação dos Estados e Municípios, além da União.

Nos arts. 23 e 24 da nossa Constituição, está prescrito que esse dever do Poder Público estende-se solidariamente a todos entes federativos, já que todos, sem exceção, podem legislar sobre “proteção e defesa da saúde” (art. 24, XII) e devem “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (art. 23, II). De modo mais específico ainda, o art. 198 da Constituição, estabelece que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada que, dentre outras, deve seguir a diretriz da “descentralização, com direção única em cada esfera de governo”.

Dessa forma, independentemente de o governo federal adotar providências diferentes daquelas dos Estados e Municípios, ainda que frontalmente contraditórias ou até mesmo tentando invalidar normas e medidas estaduais/municipais na área da saúde pública, entendemos que tais determinações não obstam a que esses mesmos Estados e Municípios continuem a adotar medidas específicas necessárias ao combate da pandemia e imprescindíveis em termos de saúde pública.

Deve-se destacar, ademais, que, no dia 24 de março de 2020, o STF, por liminar monocrática, na ADI 6341, cujo objeto versava sobre dispositivos restritivos da MP 926/2020, editada pelo Presidente da República, reafirmou a competência concorrente dos Estados e Municípios, sem prejuízo ou a despeito da União. A decisão monocrática foi referendada no dia 15 de abril de 2020, no qual mais uma vez o STF declarou que o exercício de competência federal sobre normas de proteção à saúde não exclui a dos Estados e Municípios de estipularem diversamente, observado o disposto no art. 198, I, da Constituição Federal, já que, em tal matéria, a competência é concorrente.

O STF decidiu que, não obstante a inexistência de medida de restrição federal, governos estaduais poderão deliberar em sentido contrário. Isso significa que, a partir das competências constitucionais concorrentes, dada a própria realidade de cada Estado, seus governantes podem opor medidas de restrição ainda que em linha de oposição ao governo federal, de modo a bloquear aqueles atos ou normas federais contrários ao interesse público ou à proteção da saúde.

Essa interpretação é contrária à dinâmica que até então vinha prevalecendo no STF, a do “federalismo centrípeto” e da centralização em de competências em torno da União. Agora, parece o STF acenar ao “federalismo centrífugo”, concedendo maior autonomia para Estados e Municípios.

Se isso é uma ruptura constitucional que prevalecerá não se sabe ao certo. A crise atual ensejou-a. No direito constitucional, há muito constitucionalistas e federalistas vêm defendendo maior empoderamento dos Estados-membros, como nos lembram Robert F. Williams e Alan Tarr10. É fundamental, de um lado, que Estados exerçam o respectivo “espaço de autonomia constitucional” estabelecido na Constituição Federal e, de outro lado, que o STF, instância fiadora do pacto federativo, revisite a tônica de sua interpretação centrípeta e centralizadora do nosso federalismo, formalizada no princípio da simetria, para assegurar o pleno exercício do constitucionalismo estadual e das respectivas competências constitucionais.

Esse desafio que enfrentamos hoje põe o federalismo brasileiro em uma encruzilhada temporal única: ou se reconhece a efetiva autonomia constitucional estadual prevista na Constituição Federal voltada à defesa e proteção de direitos fundamentais, operando-se a releitura do pacto federal e mudando-se sua dinâmica para um federalismo centrífugo; ou, mantendo-se a tendência centralizadora do federalismo centrípeto, dando-se preponderância às decisões do governo federal, corre-se o risco de frustrar a própria Constituição Federal no que ela tem de mais precioso: a defesa da vida e da dignidade da pessoa humana.


1 Cf. SCHWARCZ, Lilia. In: 100 dias que mudaram o mundo. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/reportagens-especiais/coronavirus-100-dias-que-mudaram-o-mundo/ (Acesso em 9 de abril de 2020).

2 Eis as palavras de Sua Santidade: “Stanotte conquistiamo un diritto fondamentale, che non ci sarà tolto: il diritto alla speranza”. Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2020/documents/papa-francesco_20200411_omelia-vegliapasquale.html (Acesso em 11 de abril de 2020).

3 Cf. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 178 e ss.

4 Cf. HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 342 e ss.

5 Cf. ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de. Jurisdição constitucional e federação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

6 Cf; KOSELLECK, Reinhart. Storia sociale e storia concettuale. In: Il Vocabolario della Modernità. Trad. Carlo Sandrelli. Bologna: Il Mulino, 2009, p. 3-25.

7 Muitas são as evidências de que o governo federal vem adotando condutas erráticas, inadequadas e contraditórias no enfrentamento ao coronavírus, conforme vários jornais internacionais têm reportado, dentre outros o The Washington Post: Leaders risk lives by minimizing the coronavirus. Bolsonaro is the worst. https://www.washingtonpost.com/opinions/global-opinions/jair-bolsonaro-risks-lives-by-minimizing-the-coronavirus-pandemic/2020/04/13/6356a9be-7da6-11ea-9040-68981f488eed_story.html;

8 MEDICIS, Ernani. Coronavírus e Federação. In: Jornal do Commercio (Opinião). Recife: 3 de abril de 2020, p. 23.

9 Disponível em: ALEPE. Legislação Covid19 https://legis.alepe.pe.gov.br/covid-19.aspx. Acesso em 16 de abril de 2020).

10 A propósito, vide: WILLIAMS, Robert F. Teaching and Researching Comparative Subnational Constitutional Law. Penn State Law Review: Vol. 115, 2011, p. 1109-1131; TARR, G. Alan and PORTER, Mary Cornelia. Introduction: State Constitutionalism and State Constitutional Law. Publius: Vol. 17, n. 1, 1987, p. 1-12.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!