Opinião

Patrimônio de afetação e recuperação judicial dos produtores rurais

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18 de abril de 2020, 14h23

A atividade agropecuária constitui uma das principais fontes de renda para o Brasil, tanto é que o setor agrícola atualmente representa um quinto do produto interno bruto nacional. A potência do setor agropecuário está fortemente atrelada aos financiamentos agrícolas, que contribuem no aumento das operações e redução de seus custos, na realização de investimentos e na otimização dos processos de comercialização de produtos agropecuários.

Com o objetivo de reduzir o custo do crédito rural, em 2019 foi elaborada a Medida Provisória nº 897, mais conhecida como MP do Agro. Em 7/4/2020, a medida foi sancionada pelo presidente da República e convertida na Lei nº 13.986, de 7 de abril de 2020.

Entre diversas providências, a nova lei regulamentou o patrimônio de afetação de propriedades rurais e instituiu a Cédula Imobiliária Rural.

O regime de afetação ao patrimônio rural se difere dos regimes de afetação tradicionais existentes na legislação brasileira, como a afetação patrimonial na incorporação imobiliária.

Enquanto a afetação do mercado imobiliário possui o objetivo de assegurar direitos aos adquirentes de unidades do edifício em construção, em caso de falência ou insolvência civil do incorporador, a afetação do patrimônio rural objetiva efetivar um instrumento de garantia de Cédulas Imobiliárias Rurais (CIR) e Cédula de Produto Rural (CPR).

O proprietário do imóvel rural que optar pela adoção desse regime de afetação terá o terreno, as acessões e as benfeitorias fixados como patrimônio de afetação, os quais serão destinados a prestar garantias por meio da emissão da CPR ou em operações financeiras contratadas pelo proprietário por meio de CIR [1].

Importante consequência desse instituto é a possibilidade de segregação patrimonial da propriedade rural. Os bens e os direitos integrantes do patrimônio rural em afetação não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios rurais em afetação por ele constituído. No entanto, essa incomunicabilidade é limitada as garantias vinculadas às CPRs e CIRs [2].

As Cédulas Imobiliárias Rurais (CIRs) são títulos de crédito nominativo, transferível e de livre negociação. É apto a emitir o título somente o produtor rural que houver constituído patrimônio rural de afetação e realizado uma operação de crédito de qualquer modalidade.

Por sua vez, a Cédula de Produto Rural (CPR) foi instituída no ano de 1994 pela Lei 8.929, como título de crédito representativo de promessa de entrega de produtos rurais (em grãos/sacas). Somente têm legitimidade para emiti-la o produtor rural, a cooperativa agropecuária e a associação de produtores rurais.

Desse modo, ambas as cédulas (CIR e CPR) destinam-se a garantir uma operação de crédito por meio da obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural, ou fração deste, vinculado ao patrimônio rural em afetação.

No entanto, apesar da nova lei objetivar reduzir os custos do crédito rural, há uma medida que está sendo duramente criticada pelos produtores rurais.  

O projeto da Medida Provisória do Agro, antes de ter o seu texto-base finalizado, preceituava que todos créditos originários de CPRs seriam extraconcursais no regime recuperacional, ou seja, não seriam submetidos aos efeitos da recuperação judicial.

Ocorre que, diante de um acordo entre a bancada ruralista do Congresso e lideranças da Câmara dos Deputados, essa disposição original da MP foi totalmente suprimida no texto-base aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados em 11/2/2020 e, posteriormente, pelo Senado Federal em 4/3/2020.

Porém, para a surpresa daqueles que acompanhavam essas discussões legislativas relacionadas ao agronegócio, a MP do Agro, ao ser convertida em lei, regulamentou um novo meio de exclusão da CPR do processo de recuperação judicial.

O artigo 10, § 4º, da Lei nº 13.986/20 dispõe que o patrimônio rural em afetação vinculados a CIR ou a CPR não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural, além de não integrar a massa concursal dos devedores.

É evidente a manobra legislativa realizada após a aprovação do texto-base da referida lei!

Isso porque, no texto-base da Medida Provisória, não era citada a CPR como meio de prestar a garantia da afetação de patrimônio rural, restando suprimida a exclusão da CPR do procedimento recuperacional.

Porém, em meados de novembro de 2019, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que é possível a Recuperação Judicial para o produtor rural, por meio do julgamento do Recurso Especial nº 1.800.032/MT.

No mesmo trimestre dessa decisão emblemática foi sancionada a Lei nº 13.986/20, a qual excluiu do procedimento recuperacional o principal instrumento de garantia oferecida pelo produtor rural aos bancos e tradings.

Cumpre ressaltar que entre os anos de 2018 e 2019 houve um crescimento exponencial dos pedidos de recuperação judicial dos produtores rurais, tendo em vista, principalmente, a quebra da safra de soja neste período.

A exclusão das CPRs vinculadas ao patrimônio de afetação pode ser equiparada à exceção concedida à alienação fiduciária e aos arrendamentos mercantis, os quais são considerados como "supergarantias" não sujeitas ao processo de recuperação judicial.

No que tange à recuperação judicial, essa garantia prestada pela afetação do patrimônio rural poderá ser ainda mais benéfica aos credores, quando comparada a garantia da alienação fiduciária.

No caso da exceção trazida pela alienação fiduciária, os produtores encontram-se protegidos pela parte final do artigo 49, § 3º, da Lei 11.101/2005, que dispõe sobre essencialidade do bem às suas atividades. Isto é, quando é determinada judicialmente a essencialidade dos bens garantidos fiduciariamente para as atividades empresariais do produtor rural, o crédito automaticamente volta a ser concursal, recaindo os efeitos da recuperação judicial a eles.

Todavia, no caso da CIR/CPR vinculada ao patrimônio de afetação, o reconhecimento de essencialidade do bem não poderá interferir na retirada do bem da posse dos produtores rurais.

Resumindo: em que pese podermos equiparar o patrimônio de afetação à alienação fiduciária como uma "supergarantia" aos credores, a afetação do patrimônio rural poderá ser ainda mais prejudicial aos produtores rurais. Visto que em caso de inadimplemento da obrigação o credor estará autorizado a exercer de imediato o direito à transferência do imóvel rural para sua titularidade.      

Diante das disposições dessa nova lei sancionada, é certo que os credores, principalmente bancos e tradings, irão atrelar a emissão de CPRs ao patrimônio de afetação, não se sujeitando ao procedimento recuperacional.

Além disso, do ponto de vista da insolvência, caso os produtores rurais aceitem essa nova modalidade de garantia da CPR (afetação do patrimônio), a sua ruína poderá estar mais próxima, pois, além de oferecerem os frutos de sua produção agrícola em garantia aos contratos, o patrimônio rural em afetação não se comunicará com seu patrimônio geral e não se sujeitará ao processo de recuperação judicial.

Com efeito, a advocacia consultiva preventiva torna-se ainda mais importante para os produtores rurais, bem como para o agronegócio em geral, sendo imprescindível a submissão de todos os contratos, principalmente aqueles relacionados a tomada de créditos, à análise prévia dos advogados especializados em agronegócio e reestruturação.

 


[1] Artigo 7º, parágrafo único, da Lei 13.986/2020.

[2] Artigo 10º, da Lei 13.986/2020.

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