Opinião

Contra a Covid-19 não há direitos?

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18 de abril de 2020, 10h46

O título é provocativo. Trata-se de um trocadilho de uma frase que estava escrita numa placa na entrada do Doi-Codi de São Paulo, nos anos de chumbo, que tinha os seguintes dizeres: "Contra a pátria, não há direitos". A redemocratização do Brasil trouxe consigo a consagração do constitucionalismo e a teoria dos direitos fundamentais, que, segundo aprendemos, é o núcleo intangível da constituição, que representa os valores mais caros da sociedade, não sendo passíveis de supressão ou alteração sequer por emenda constitucional. É um limite ao arbítrio, tão cobrado para a superação do período anterior.

A referência, no título do ensaio, ao governo dos militares, tido como revolucionário por uns ou como golpistas por outros, é também outro assuntos que voltou a ser revisitado na academia, seja pela tentativa de implementar uma Justiça de transição no Brasil, obstada por decisão do STF, na ADPF nº 153, ou seja pela eleição democrática de 2018, que consagrou, como mandatário máximo, um representante que, entre suas virtudes, tem a transparência de suas posições e opiniões, gostemos delas ou não, inclusive sobre o período militar que cessou com a Constituição de 1988, a que agora se submete.

O presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, na Sexta-feira da Paixão, passeou pelas ruas da Capital Federal, sendo massivamente criticado pela imprensa, que o classificou como delinquente social e irresponsável [1] diante das regras de governadores de estados que limitam a liberdade das pessoas e a atividade econômica.

Mas, apesar da crítica ferrenha, chamou a minha atenção a frase do presidente: "Ninguém vai cercear meu direito de ir e vir". No particular, a Constituição, na qual se devem buscar as soluções sobre a crise, estava ao seu lado.

O gesto do presidente, evidentemente, tem significados políticos. Mas sua frase, sob o ponto de vista jurídico, que é o objeto de minhas reflexões, ampara-se na tradição jurídica secular, da Carta Magna de João Sem Terra às Revoluções Francesa e Americana, bem como na nossa Constituição Cidadã. Do ponto de vista jurídico, portanto, o comportamento do presidente é protegido pelo artigo 5º, XV, da Constituição, direito fundamental, como diversos outros conflitos que têm surgidos nos estados, que, certamente, passarão por uma análise futura.

Embora se diga, sem maiores reflexões, que situações excepcionais devem ser tratadas de forma excepcional, não se pode perder de vista que a solução para a crise e os desafios jurídicos que ela provocou devem ser encontrados na centralidade da Constituição.

A liberdade de ir e vir e as obrigações de fazer ou deixar de fazer determinado comportamento são uma proteção secular, do princípio da legalidade, contra o arbítrio. Segundo o professor André de Carvalho Ramos[2], "essa sintonia entre liberdade e, legalidade é fruto da consagração do Estado de Direito. Fica superada a submissão de todos à vontade dos monarcas, substituída pela vontade da lei".

Na crise brasileira de 2020, decorrente da pandemia, a vontade do monarca foi substituída pela vontade dos governadores. A Lei da Quarentena, a Lei nº 13.979/2020, permitiu o isolamento e quarentena no Brasil. Mas a lei permite apenas, no isolamento, "separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus" e, na quarentena, "restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus".

Não há lei federal que impeça a liberdade ambulatorial das pessoas, a limitação ao direito de reunião a dez pessoas, ou intervenção da propriedade e interrupção de atividades econômicas, matéria relativa ao Direito Civil, comercial, desapropriações, requisições civis, que são assuntos de competência da União (artigo 22, I à III, da Constituição), que podem ser delegadas aos estados, em questões específicas, mediante leis complementares, que não existem, conforme parágrafo único do artigo 22 da Constituição.

Há também, no nosso momento, um conflito federativo, decorrente da inexistência de lei federal sobre esses assuntos, permeada de inúmeros decretos que tratam desses temas, a pretexto de cuidarem de matéria da competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

Tomando como exemplo o Rio de Janeiro, notei que houve o cuidado, no primeiro decreto, de recomendar condutas, as chamadas sanções premiais, diante da impossibilidade de cominar crimes ou multas sem prévio amparo legal. O Decreto nº 46973/2020, em seu artigo 5º, inciso VI, recomendou, por exemplo, restrições de "frequentar praia, lagoa, rio e piscina pública", bem como restringiu, no inciso V, o “funcionamento de bares, restaurantes, lanchonetes e estabelecimentos congêneres no interior de ‘shopping center’, centro comercial e estabelecimentos congêneres, com redução em 30% (trinta) do horário do funcionamento”.

Mesmo apenas recomendando uma conduta sobre um bem da esfera federal, as praias, duas mulheres, na Zona Pul, foram presas por não se retirarem na faixa de areia, o que elas não estavam obrigadas a fazer. Uma atitude, a meu ver, arbitrária, antijurídica e passível de reparação.

O mesmo decreto proibiu (e não apenas recomendou) a realização de eventos e atividades com a presença de público, ainda que previamente autorizados, que envolvam aglomeração de pessoas, tais como: evento desportivo, show, salão de festa, casa de festa, feira, evento científico, comício, passeata e afins, que envolvem o direito fundamental de reunião (artigo 5º, XVI, da CF) e o direito social ao lazer (arigo 6º da CF), entre outros.

Em Pernambuco [3], foram proibidas reuniões com mais de dez pessoas. No Estado de São Paulo [4], o governo fechou acordo com as operadoras de celular para monitorar o cumprimento do isolamento, que, segundo a lei, permite apenas "separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus". O estado avançará sobre a intimidade do cidadão, ao ponto de saber por onde circula, como no admirável mundo novo de "1984", de Adolf Huxley.

Na experiência internacional, a pretexto do combate à pandemia, na União Europeia, na Hungria e na Eslovênia cerceiam a liberdade de imprensa [5]. Os Estados Unidos [6], negando o direito internacional, simplesmente deixa de processar os pedidos de asilo dos centro-americanos que batem à porta de seus territórios.

Assim como no 11 de setembro viu-se o discurso pela segurança assediando as liberdades, durante a pandemia do coronavírus vê-se que, a pretexto do combate à pandemia do coronavírus, direitos fundamentais são sacrificados em todo mundo.

O presidente ficou impedido, pela decisão na ADPF nº 627/DF, de suspender os decretos estaduais por decreto federal, o que seria, é verdade, uma inconstitucionalidade dando lugar a outra, num verdadeiro estado inconstitucional de coisas difícil de se prever em tempo mais serenos. Esqueceram-se da lei. A decisão do Supremo, contudo, já mostrou que essa balbúrdia jurídica pode ser consertada, diante da competência geral da União para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário e sem prejuízo da análise desses decretos, nos conflitos que advierem.

Apesar dos pesares, vai passar. É o bordão repetido. Mas as medidas da pandemia terão um custo jurídico, especialmente na responsabilidade civil por ato lícito.

Portanto, não se menosprezam as recomendações da Organização Mundial da Saúde, nem as necessidades decorrentes da emergência do novo patógeno, que vem exigindo de governos de todo o mundo a adoção de medidas urgentes e eficazes, fundamentadas em evidências científicas e protocolos aprovados por autoridades sanitárias. Mas a segurança jurídica e a pacificação social devem ter amparo na Constituição, e não na "curva da doença". A curva precisa ser achatada. O Estado Democrático de Direito, não.

O presidente tem em suas mãos a iniciativa de lei que pode suprir a omissão reconhecida pelo Supremo e organizar o Estado Democrático de Direito que o elegeu, sob as regras da Constituição, que, agora, é ameaçada por um patógeno invisível, que desarruma das finanças às liberdades públicas e ameaça a vida das pessoas.

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