Opinião

Reflexões jurídicas sobre alimentos e a pandemia da Covid-19

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17 de abril de 2020, 20h54

As crises, segundo Manuel Castells, servem para revelar situações conflituosas da sociedade e apontam para soluções diferentes daquelas usualmente tentadas [1]. O atual cenário experimentado de pandemia da Covid-19 já dispensa maiores digressões e explicações introdutórias. Diante da situação excepcional vivenciada, o Ministério da Economia, observando um panorama mais extremo, inclusive ressalvando que os "efeitos são transitórios e devem ser revertidos após a contenção da pandemia", chegou a indicar que o impacto no crescimento do PIB pode ocasionar uma queda de 0.66% [2]. Em um quadro extraordinário, diversas relações jurídicas serão impactadas. No presente ensaio, convidamos à reflexão dos impactos da pandemia sobre os alimentos.

Antes de mais nada, é necessário ter em mente que qualquer análise jurídica em tal conjuntura deve ser feita com serenidade e coerência, de modo a impedir que, premidos pelos eventos e o escoar do tempo, sejam tomadas decisões que violem os princípios e garantias constitucionais. É sempre bom relembrar que a Constituição Federal de 1988 permanece vigente, mesmo em tempos de exceção.

À vista disso, variadas indagações emergem quando o assunto é pensionamento alimentar, seja ele destinado aos filhos, ou até mesmo ao antigo cônjuge e companheiro. O viés principal do debate gira em torno do valor a ser arbitrado/ajustado. Na literatura especializada, por exemplo, há quem sustente que "o calvário das ações de alimentos no Judiciário está na busca incessante da prova do binômio necessidade-possibilidade"[3], nos moldes do artigo 1.694, §1º, do Código Civil. Ou seja: dispensadas maiores divagações sobre o assunto, que fogem ao escopo do presente trabalho, o quantum alimentar, ao passo em que deve satisfazer as necessidades do "recebedor", também deve estar inserido nas condições financeiras do "prestador".

Seguindo tal tracejado, soa evidente que incontáveis demandas serão aviadas, como providência necessária quiçá indesviável a reacomodar a cifra alusiva à pensão alimentícia. É que os alimentos, como sabido, estão sujeitos à cláusula rebus sic stantibus, de modo que, sobrevindo eventual modificação no binômio alimentar, é factível postular redução, majoração ou exoneração da rubrica.

Em tempos de pandemia, e consignando os generalizantes efeitos derivados da recessão sobre todos os setores, sobeja coerente admitir a ocorrência do suporte fático a justificar o enquadramento nas hipóteses do artigo 1.699 do Código Civil. Sem sofismas, o quadro econômico instaurado reclama por precavida atenção. E mais: ao interessado provido de boa prova (probabilidade do direito), e instado pela iminência de prejuízo (perigo de dano), é assegurado o manejo de pleito de tutela de urgência, com esteio no artigo 300 do Código de Processo Civil.

A propósito, ressalvas à parte, curial anotar a tramitação do Projeto de Lei nº 1.627/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito de Família e das Sucessões) junto ao Senado Federal, cujo teor, retocando algumas orientações do Código Civil no que tange à alteração do binômio alimentar, especificamente em seu artigo 8º, autoriza a concessão de decisão judicial para o fim de suspender parcialmente a prestação, em limite não superior a 30% do valor devido, pelo prazo máximo de 120 dias, desde que provada a regularidade dos pagamentos até 20 de março de 2020. E mais: o parágrafo único do aludido dispositivo dispõe que a diferença a ser encontrada, proveniente do resultado da matemática de diminuição, como corolário da suspensão, deverá ser quitada no limite de seis prestações, devidamente acrescidas de correção monetária, com vencimento em 1º de janeiro de 2021. Tal ideário, que certamente terá tramitação preferencial nas casas legislativas e muito em breve adentrará no ordenamento jurídico pátrio, convida a algumas reflexões.

De pronto, apenas para não deixar passar em branco, quem sabe conduzindo a discussão ao epicentro, não parece salutar exigir para concessão da medida a atualizada adimplência. De igual sorte, tampouco ecoa apropriada a fixação de um percentual aleatório, suscetível de desvairada aplicação, tendo em vista a probabilidade de caracterização da revisão de alimentos nos trejeitos já consolidados na ordem jurídica.

Lado outro, insta também questionar quais são as medidas processuais adequadas para atingir o objetivo traçado no projeto de lei. Como visto, aduz o projeto que será possível a suspensão parcial da prestação mediante decisão judicial. Logo, conveniente perquirir qual seria a medida judicial cabível. Inexistem maiores dificuldades quando se pensa em ações de alimentos ainda em curso, que permitirão a denominada suspensão parcial por intermédio de simples peticionamento, independentemente da fase em que o processo se encontrar, para que possa o magistrado competente analisar o pedido com a urgência que a situação reclama.

Maiores dúvidas, todavia, surgem das situações nas quais os alimentos foram fixados e o processo já se encontra encerrado. Ao que parece, num exame perfunctório, não estamos diante de tutela de urgência satisfativa (cognição sumária), que possui natureza provisória, até o momento de posterior confirmação em sede de tutela definitiva. Na verdade, pela própria natureza da prestação jurisdicional proposta pelo legislador, a decisão judicial que autoriza a revisão da prestação de alimentos tem como elemento a temporariedade, de tal modo que a decisão deixará de ter seus efeitos pelo próprio decurso do tempo [4]. Partindo de tal premissa, parece correto afirmar que se trata, por conseguinte, de tutela de urgência cautelar (artigo 301 do Código de Processo Civil), ou seja, uma medida cautelar de revisão temporária de alimentos. Acrescente-se, por oportuno, que o elemento do perigo de dano, nos moldes do artigo 300, caput, do Código de Processo Civil, está evidenciado pela própria existência da pandemia. 

Ao depois, evocando a lição de Karl Larenz, para quem "a responsabilidade é a sombra da obrigação" [5], cumpre alertar que o coronavírus já desdobra consequências de inadimplência (elemento monetário). E por efeito ricochete (elemento sanitário), o procedimento executório igualmente resta afetado, mormente aquele que prevê a prisão civil. A esse respeito, basta verificar a Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça e a recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus nº 568.021-CE, bem como o artigo 22 do Projeto de Lei nº 1.179/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado), que vaticinam a prisão domiciliar como configuração de responsabilização pela mora alimentar enquanto perdurar a época de calamidade. Verdade seja dita, com exceção dos prestadores de serviços essenciais, a população vivencia uma certa "segregação" na própria residência, pelo que se esvazia a ideia de coerção pessoal.

De toda a sorte, não obstante a relevância do tema acima indicado, o novo enfoque de reflexão é que segue: o acatamento (ou não) da justificativa do devedor que tem por fundamento os prejuízos de fortuna derivados da Covid-19. A indagação advém do fato de que, em tempos ditos como normais,a jurisprudência fortalece a posição de que a "incapacidade financeira ou o pagamento parcial do débito não servem de justificativa para elidir a prisão" [6]. Os casos de acolhimento da defesa ofertada pelo alimentante são diminutos [7], de modo que caberá ao Poder Judiciário, caso a caso, firmar posição.

O certo é que o momento, com sustentáculo no preceito da boa-fé, bem como no dever de colaboração, tem o condão de fazer despertar, de uma vez por todas, o senso comum de estímulo à autocomposição. Sem dúvida alguma, o diálogo serve como firme pedestal, colocando em proeminência uma adequada forma de solução de controvérsias.

Além do mais, estimando – de novo – o coetâneo arquétipo econômico, inviável olvidar o princípio da execução pelo meio menos gravoso ao devedor. A proposição, é digno esclarecer, não tem a pretensão de advogar em prol dos interesses do inadimplente contumaz, mas de franquear um modelo criativo pro solvendo. Em alternativa, mesmo sem previsão legal específica, emerge como aconselhável o aprazamento de audiência de conciliação, a ser realizada mediante a utilização das tecnologias disponíveis para conferências remotas, seguindo os ditames do artigo 3º, §3º, do Código de Processo Civil.

Não bastasse isso, incluída a anuência do Ministério Público nos casos em que exigida a sua efetiva participação, e registrada a flagrante perpetuidade da exigibilidade do pensionamento, nada impede que os envolvidos possam: a) com arrimo no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil, que preconiza o dever geral de cautela, estipular espécies de garantia à quitação do débito, sem incidir em prejuízo ao credor; b) com suporte no artigo 190 do Código de Processo Civil, adotar negócios jurídicos processuais com o intuito de organizar uma espécie de "moratória", alterando o itinerário do procedimento, sem implicação remissiva (liberatória); c) revisar temporariamente a quantia alimentar em valores e prazos diversos daquele estabelecido pelo projeto de lei; d) ter em servidão o "parcelamento legal" instituído pelo artigo 916 do Código de Processo Civil, aplicado em analogia.

Enfim, não custa repetir, é tempo de inovação e madureza! E, como acertadamente dizem, "soluções antigas não resolvem problemas novos".

 


[1] CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 20.

[3] BARBOSA, Águida Arruda. Alimentos. In: Direito de Família. Águida Arruda Barbosa e Claudia Stein Vieira (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, v. 7, p. 232.

[4] Esclarecimento: caso contrário, fosse a tutela de urgência postulada no modelo satisfativo, com pedido revisional exclusivamente formulado com base na pandemia (de caráter temporário), viável conceber do risco de a ação de revisão de alimentos, ao fim e ao cabo, após regular tramitação, ser julgada improcedente, apta a incidir o disposto no art. 13, §2º, da Lei nº 5.478/1968 (efeitos retroativos).

[5] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

[6] TJRS, 8ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 70083339408, Rel. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 13.02.2020.

[7] Exemplos: TJRS, 7ª Câmara Cível, Habeas Corpus nº 70077887081, Rel. Jorge Luís Dall'Agnol, j. 25.07.2018 e TJRS, 8ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 70078478450, Rel. Rui Portanova, j. 04.10.2018.

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