Opinião

Verdade e solidariedade em tempos de coronavírus

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17 de abril de 2020, 21h32

Nos últimos dias, em razão da decretada pandemia pela OMS, causada pelo coronavírus, experimentamos uma série de sentimentos e de modificações em nossas rotinas. Experimentamos a futura realidade do trabalho, as novidades em matéria de consumo digital, os sentimentos de medo e de tristeza, a dúvida, a solidão, mas ,principalmente, a solidariedade. Outros experimentaram apenas a dúvida, a dificuldade financeira e o medo de não ter em suas casas alimento suficiente para todos [1].

Todos os órgãos públicos de defesa do consumidor têm feito esforços significativos em busca da harmonização das relações de consumo, na preservação dos contratos, mas, em especial, na preservação de direitos. O processo de evolução do Direito Privado possibilita o que se pode chamar de efetivação de um Direito Privado mais social, com uma forte tendência de valorização dos direitos humanos e com respeito às diferenças culturais com o consequente crescimento do valor da solidariedade e, sobretudo, da fraternidade.

A máxima cogito, ergo sum parece ter sido deslocada na atual sociedade pós-moderna para consummatio, ergo sum. O que acontece com a pandemia da Covid-19 é um verdadeiro chacoalho nos modelos econômicos e legais postos. A necessidade premente de consumo é do alimento e do medicamento.

Os cidadãos, entretanto, compreendem que tudo isso será passado em um futuro breve, mas que as consequências financeiras serão graves. Dados do The Economista Intelligence Unit de 28 de março preveem uma queda de 5,5% no PIB. Contudo, todos os setores da economia precisarão contribuir de forma significativa. Não faltam inciativas em âmbito municipal, estadual e federal para incentivar a regulamentação de moratórias [2].

As dúvidas diárias em matéria de consumo têm sido solucionadas pelos Procon, porém novos instrumentos infralegais têm trazido mais dúvidas do que auxiliado de fato na solução dos problemas enfrentados pelos consumidores e cuja resposta se reclama dos órgãos de defesa do consumidor [3].

Não há dúvidas de que as relações contratuais devem ter por base o princípio da boa-fé. Da mesma forma, também a sociedade precisará obedecer aos princípios morais de solidariedade e boa-fé. Não podemos aceitar que órgãos públicos imponham deveres ilegais aos consumidores. O Código Civil em diálogo com o Código de Defesa do Consumidor já responde à possibilidade ou não de resolução contratual pela impossibilidade de cumprimento da obrigação ajustada. Tratando-se de força maior ou caso fortuito, não restam dúvidas: o consumidor poderá rescindir o contrato sem encargos sempre que atingido pela pandemia [4].

Precisamos recordar que a vulnerabilidade é princípio orientador do CDC. Dessa forma, qualquer instrumento legal utilizado para ferir ou relativizar o direito do consumidor carecerá de legalidade e eficácia. Termos ou Compromissos de Ajustamento de Condutas, assim como Notas Técnicas, não podem ser exaradas com fim de relativizar, portanto, direitos com suposto fundamento de manutenção de atividades econômicas. Reconhece-se o fato de que é necessário encontrar uma forma de manter contratos, de manter empregos e de manter relações.

A título exemplificativo, a Resolução nº 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público determinou que o órgão poderá firmar compromissos de ajustamento de conduta para reparar danos, adequar condutas às exigências legais e normativas e ainda determinar compensações pelos danos que não possam ser recuperados. Nesse sentido, aquele que firma o Termo de Ajustamento de Conduta não poderá abrir mão de direitos, relativizando qualquer diploma legal.

Ainda é preciso mencionar duas Medidas Provisórias: a primeira, Medida Provisória nº 925/2020, que tratou da forma de devolução de valores por cancelamento de passagens aéreas, e a segunda, Medida Provisória nº 948/2020, que tratou do cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo. Vale mencionar que a primeira excluiu a possibilidade de o consumidor cancelar passagens promocionais por causa da pandemia, ainda que exista força maior e caso fortuito, além de esquecer de atualizar os valores na devolução em 12 meses ao consumidor. A segunda trata as relações de consumo daquele setor como força maior ou caso fortuito, retirando direitos indenizatórios e fiscalizatórios. Ora, não acho absurdo ou fora dos parâmetros de razoabilidade devolver valores aos consumidores em forma diversa da que ele contratou nesse caso extremo de pandemia, mas é preciso que o diálogo seja possível entre consumidor e fornecedor. Como farão os autônomos com o dinheiro que investiram em serviços que não usufruirão e que hoje têm sua renda significativamente diminuída? Essa é a pergunta que precisamos nos fazer.

Se o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil têm por base princípios do ordenamento jurídico consubstanciados na Constituição Federal, se o direito do consumidor tem diploma de ordem pública e interesse social e se o Estado deve promover a defesa do consumidor, qualquer ato contrário à defesa dos consumidores é inconstitucional. Se até o momento uma série de medidas ilegais e inconstitucionais foram tomadas, é hora de revisar seus conteúdos e colocar as responsabilidades de cada órgão de defesa do consumidor em funcionamento. Aos que pregam a necessidade de diminuir ações judiciais é urgente que revisem seus textos evitando ações individuais e até ações coletivas e remédios constitucionais.

Não há qualquer dúvida de que os direitos do cotidiano, direitos dos consumidores, precisam ser preservados. Não é possível que se aceite omitir ao cidadão os direitos que ele detêm. Confiança é primordial para que se desperte no outro o senso de responsabilidade e é com esse espírito de coletividade que os órgãos precisarão incutir na sociedade brasileira um dever de solidariedade para manutenção contratual enquanto falam e contam ao consumidor verdades sobre seus direitos. É necessário iniciar uma campanha nacional de construção de confiança, de colocar em prática valores de verdade e solidariedade.

 


[1] Pesquisa realizada pelo Data Favela mostra que 7 entre 10 famílias entrevistadas já tiveram sua renda comprometida em razão da COVID-19 e que 72% dos moradores das favelas não teriam renda suficiente para manter seu padrão de vida por nem uma semana. FOLHA. Em quarentena, 72% dos moradores de favelas têm padrão de vida rebaixado. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/em-quarentena-72-dos-moradores-de-favelas-tem-padrao-de-vida-rebaixado.shtml. Acesso em: 09 abr. 2020.

[2] UFRGS. UFRGS desenvolve estudo que propõe Projeto de Lei para atrasar em três meses o pagamento de dívidas. Disponível em: https://www.ufrgs.br/coronavirus/base/ufrgs-desenvolve-estudo-que-propoe-projeto-de-lei-para-atrasar-em-tres-meses-o-pagamento-de-dividas/. Acesso em: 09 abr. 2020.

[3] ESTADÃO. Ministério Da Justiça desaconselha “caça às bruxas” contra empresários por aumento de preços de máscaras e gel na pandemia. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/ministerio-da-justica-desaconselha-prisao-a-comerciante-que-aumentar-preco-por-coronavirus/. Acesso em: 09 abr. 2020.

[4] MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de Coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1015, mai. 2020.

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    é assessora legislativa do Senado Federal, doutora em Direito pela UFRGS, ex-presidente da Associação Brasileira de Procons e ex-diretora-executiva do Procon Municipal de Porto Alegre.

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