Limite Penal

Por falar em ciência: cartas psicografadas não são meio de prova

Autores

  • Juliana Melo Dias

    é mestra em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

17 de abril de 2020, 8h00

Spacca
Imagine um réu hipotético — vamos chamá-lo de João — que acaba de ser acusado de matar sua namorada, Penélope. Testemunhas afirmam que o casal vivia brigando e tivera uma discussão particularmente grave às vésperas do crime. João apresenta um álibi e colabora com as investigações, sempre alegando sua inocência e lamentando a morte da namorada. Contudo, o Ministério Público produz provas convincentes de sua culpa e constrói sua argumentação com base no passado violento e possessivo do réu. Antes do julgamento pelo plenário do júri, a defesa junta aos autos do processo um documento inusitado: uma carta psicografada em que Penélope, em espírito, supostamente alega que João a amava muito e não foi o responsável por sua morte. O juiz não se opõe à juntada da carta, que é apresentada aos jurados durante a sustentação oral da defesa. Após a votação secreta, o veredicto: João é absolvido.

Apesar de esse cenário parecer caricato e digno de um roteiro de filme, não é estranho à realidade brasileira. Na verdade, existem pelo menos onze casos conhecidos em que cartas psicografadas foram apresentadas como prova em um processo criminal; e um no qual a carta, embora não tenha sido juntada aos autos, influenciou a família da vítima a desistir do recurso em que pedia a condenação do réu. Recentemente, um caso de Viamão, Rio Grande do Sul, recebeu destaque nas mídias após a ré, acusada de ordenar a morte de seu amante, ser absolvida. A defesa apresentou uma carta na qual a vítima, sem declarar explicitamente que a ré era inocente, lamentava que esta estivesse sendo processada por sua morte.

A maioria está descrita no livro Psicografia como prova jurídica (2010), de IsmarEstulano Garcia. São todos casos criminais, geralmente de homicídio. Existe um de estupro de vulnerável com resultado morte que tramitou em segredo de justiça. Alguns se tornaram bastante famosos e apareceram no Linha Direta (programa jornalístico de cunho policial exibido pela TV Globo entre 1999 e 2007), pois as cartas foram psicografadas pelo médium Chico Xavier. (A título de curiosidade, em um dos homicídios, o réu juntou uma carta supostamente psicografada por Chico Xavier, mas o próprio médium negou tê-la produzido.)

Mas o que isso tem a ver com ciência ou pseudociência? Quando falamos em pseudociência nos tribunais, cogitamos de uma eventual decisão que obrigue o SUS a fornecer medicamentos homeopáticos; ou então nos lembramos de um caso em que um ministro do Supremo Tribunal Federal invocou os astros para justificar sua decisão. Pseudociência é algo que se pretende científico, mas desvia dos princípios de investigação e dos critérios de qualidade da ciência. As cartas psicografadas não são uma opção óbvia; afinal, elas são comumente associadas à religião espírita. A psicografia é vista como algo que depende da fé, e não da razão. Logo, sua exclusão do processo judicial deveria ser vista como uma questão de respeito ao princípio do estado laico e à liberdade religiosa. Mas não é assim que os próprios espíritas defendem a validade desta prática; e — de forma preocupante — também não é assim que muitos juristas brasileiros têm defendido a admissão de cartas psicografadas em processos judiciais[1]. Para todos eles, a psicografia tem base científica.

É precisamente o aspecto científico, defendem tais juristas, que confere confiabilidade à psicografia e às cartas, permitindo o seu uso como meio de prova em processos judiciais. Entretanto, prosseguem, não se trata da ciência com a qual estamos acostumados — Física, Química, Biologia, Psicologia, Sociologia, etc. —, e sim de uma ciência “não materialista” cujo objeto é o espírito. Não nos interessa aqui esmiuçar os detalhes dessa pseudociência. Contudo, é curioso reparar que os juristas brasileiros dispostos a incorporar a doutrina espírita em nosso sistema jurídico não ignoram a ciência “materialista” que criticam, mas lançam mão dela para defender a admissão de provas sem fundamento racional nos tribunais.

Uma estratégia comum para defender o caráter científico da mediunidade é citar cientistas que se deixaram convencer da autenticidade de fenômenos mediúnicos. Guedes cita William Crookes, químico que investigou e defendeu médiuns de sua época[2]. Cientistas contemporâneos também são mencionados, comoos médicos brasileiros Sérgio Felipe de Oliveira, que realizou estudos sobre a glândula pineal, também chamada de “terceiro olho”, na Universidade de São Paulo[3]. Fonseca e Silva cita o artigo “Investigatingthe Fit andAccuracyofAllegedMediumisticWriting: A Case Studyof Chico Xavier’sLetters”, publicadona revista Explore por um grupo de pesquisadores do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora; nesse estudo, foram analisadas cartas psicografadas por Chico Xavier[4].

Essa estratégia revela uma antiga falácia que deveria ser facilmente identificada pelos juristas, especialistas em argumentação: a falácia ad verecundiam, também conhecida como “apelo à autoridade”. O argumento dos juristas recorre à reputação de uma pessoa (especialista) para validar uma proposição. Acontece que uma proposição a respeito de um fenômeno qualquer não se torna verdadeira porque uma autoridade a enunciou; sobretudo quando a autoridade em questão ignora as evidências disponíveis e os estudos de outros especialistas, ou comete erros metodológicos (caso do artigo citado por Augusto e Silva).

Esses juristas também invocam a ciência forense tradicional quando da análise da carta psicografada. Para eles, o exame grafotécnico poderia ser utilizado para comprovar que a carta é de autoria de um espírito, uma vez que, em alguns casos, o médium é capaz de reproduzir a grafia do morto. Mas os próprios autores reconhecem que médiuns capazes dessa façanha são raros; logo, não há garantia de que a carta sempre terá a grafia do falecido. Além disso, o estilo de escrita da carta também deveria ser avaliado, a fim de verificar se ele se assemelha à forma como o morto escrevia em vida. No caso de Viamão, o filho da vítima expressou sua discordância quanto à admissão da carta, ressaltando a incompatibilidade desta com a inteligência e o estilo de escrita de seu pai. Nesse ponto, cabe observar que o exame grafotécnico se baseia na experiência do perito em reconhecer padrões gráficos e estilísticos — uma prática que também não está isenta de subjetividades, como apontou o relatório “StrengtheningForensic Science in the United States: A Path Forward” (2009), elaborado pelo NationalResearchCouncil.

Ainda sobre o exame grafotécnico, é comum a referência ao livro A psicografia à luz da grafoscopia (1991)[5], do perito judicial Carlos Augusto Perandréa. Na obra, Perandréa analisa uma carta psicografada por Chico Xavier e atribuída ao “espírito” da italiana Ilda Mascaro Saullo, comparando-a com um cartão de Natal assinado por Ilda em vida e com manuscritos (alguns deles também psicografados) de Chico Xavier. Tanto a carta quanto o cartão de Natal foram escritos em italiano. Ao final da análise, Perandréa conclui não haver dúvidas de que Ilda é a autora da carta, embora a grafia desta por vezes coincidisse com a escrita-padrão de Chico Xavier. Ele justifica esse resultado argumentando que, em algumas psicografias, a grafia do morto se mistura com a do médium. Isso diminui ainda mais a força do argumento de que o exame grafotécnico pode ser utilizado para verificar a autoria. Afinal de contas, a grafia pode ser do morto ou do próprio médium; então, como podemos ter certeza, pelo simples exame grafotécnico, de que o médium realmente foi guiado pelo espírito?

O ponto é que a análise isolada de uma carta por um único perito não deveria levar os juristas à conclusão de que a psicografia como um todo é um fenômeno real; tampouco seria suficiente dizer que Perandréa examinou diversas outras cartas além das de Ilda e chegou às mesmas conclusões.Não se pode descartar, por exemplo, a possibilidade de ele ter sido influenciado por sua vontade de acreditar na psicografia, gerando resultados enviesados. As teorias científicas não são fundamentadas pelos estudos de uma única pessoa ou de um pequeno grupo de pessoas — é necessário um trabalho conjunto em que vários cientistas repetem, analisam e criticam os trabalhos uns dos outros durante um período razoável de tempo, a fim de corrigir erros, eliminar vieses e aprimorar as teorias. Quando os juristas citam o estudo de Perandréa como uma “prova científica definitiva”, eles demonstram não compreender o que é a ciência e como ela funciona. Estamos novamente diante da falácia do apelo à autoridade, pois tais juristas esperam que nós aceitemos as conclusões de Perandréa sem nenhuma crítica, pelo simples fato de ele ser perito. Mas ser perito não o impede de cometer erros metodológicos ou ser influenciado por vieses.

Previsivelmente, esses juristas também utilizam argumentos jurídicos para defender a admissão das cartas. Eles sustentam que o Estado brasileiro é laico e, portanto, não pode proibir a utilização das cartas nos processos judiciais, sob pena de isso configurar perseguição religiosa. Mas esse argumento de nada serve, pois é uma faca de dois gumes. Seria possível dizer justamente o contrário: uma vez que o estado brasileiro é laico, os juízes não podem admitir provas baseadas em crenças que são compartilhadas somente por pessoas de religiões específicas.As decisões judiciais devem estar fundamentadas em critérios de racionalidade que possam ser publicamente compartilhados – isto é, entre cidadãos que tenham diferentes crenças religiosas ou que não tenham religião alguma.

O cenário torna-se um pouco mais complexo no tribunal do júri, que julga crimes dolosos contra a vida e delitos conexos. Os jurados não têm formação jurídica e decidem com base em sua íntima convicção, sem necessidade de justificar o veredicto. Além disso, no júri prevalece a concepção da plenitude de defesa, ou seja, o advogado pode defender o réu com base não só em argumentos jurídicos. Galvão sustenta que os jurados, por decidirem conforme a própria consciência, por íntima convicção, podem avaliar as cartas[6]. Nesse ponto, novamente, o argumento está de cabeça para baixo. O fato de os jurados não terem de explicitar as razões da condenação ou absolvição justifica ainda mais a preocupação com o controle da qualidade epistêmica do conjunto probatório[7]. Por essa razão, as cartas psicografadas deveriam ser excluídas por falta de credibilidade.

É importante que as questões de fato em processos penais sejam determinadas com base em critérios racionais e publicamente controláveis. Um dos principais objetivos do processo penal é a correta administração da justiça, o que requer não apenas o respeito às garantias do devido processo legal, mas também o compromisso com a racionalidade das práticas probatórias. Os meios de prova admitidos e aptos a compor o conjunto probatório a ser avaliado devem ser capazes de conduzir os julgadores, sejam eles juízes ou jurados,à verdade dos fatos — ou, pelo menos, para longe de misticismos de todo tipo.

É preocupante perceber que a aceitação da psicografia como prova nos tribunais já alcança as instâncias mais altas do Poder Judiciário brasileiro. Em 2017, Nancy Andrighi, ministra do Superior Tribunal de Justiça e ex-Corregedora Nacional de Justiça, elogiou a obra A prova psicográfica no Direito Processual brasileiro, de Augusto Vinícius Fonseca e Silva. “Receba meu aplauso efusivo pelo seu trabalho de valor inestimável […] que, tenha certeza, muito me ajudará na árdua tarefa de julgar” — escreveu a ministra. É temerário que uma ministra expresse sua simpatia por este tipo de investigação, pois soa como um aval para a admissão das cartas psicografadas em processos judiciais. Não é totalmente impossível que, no futuro próximo, o próprio Superior Tribunal de Justiça seja provocado a decidir se as cartas psicografadas são um meio de prova admissível.

Quando levantamos essas críticas, não é nossa intenção atacar o espiritismo ou ofender seus adeptos. Nosso objetivo é estabelecer limites quanto ao que pode ser aceito como ciência e, sobretudo, como meio de prova em umprocesso judicial. Se abrimos as portas dos tribunais para as cartas psicografadas e aceitamos o argumento de que elas têm base científica, abrimos um precedente perigoso que poderia levar à admissão de meios de prova baseados em outras pseudociências. Por isso é tão importante sermos firmes em rechaçar toda essa literatura jurídica fundamentada em uma visão equivocada da ciência. As cartas psicografadas pertencem aos centros espíritas e ao foro íntimo dos que nelas acreditam; não ao processo judicial, cujas decisões devem estar pautadas em critérios de racionalidade publicamente partilhados. Afinal, o tribunal é lugar de ciência também[8].


[1]AHMAD, Nemer da Silva. Psicografia: o novo olhar da justiça. São Paulo: Aliança, 2008; GARCIA, IsmarEstulano. Psicografia como prova jurídica. Goiânia: AB, 2010; GALVÃO, Leandro Medeiros. A Prova Psicografada e o Tribunal do Júri. São Paulo: Baraúna, 2011; GUEDES, Patrícia Gonçalves dos Santos. A psicografia como meio de prova: o sobrenatural no judiciário brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013; MELO, Michele Ribeiro de. Psicografia e prova judicial. Porto Alegre: Lex Magister, 2013; SILVA, Augusto Vinícius Fonseca e. A prova psicográfica no Direito Processual brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, 2ª edição.

[2]Op.cit., pp. 32-33.

[3]Idem, pp. 23-24.

[4]Op. cit., pp. 321-322.

[5] PERANDRÉA, Carlos Augusto. A psicografia à luz da grafoscopia. São Paulo: Jornalística Fé, 1991.

[6]Op. cit., p. 132.

[7] NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A prova no tribunal do júri: uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[8] Agradecemos a leitura e os comentários de Carlos Orsi e Marcella Mascarenhas Nardelli. 

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    é mestra em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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    é professora de teoria do Direito na UFRJ; doutora em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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