Improbidade em debate

Leniência e reequilíbrio: força maior, imprevisão, função social e boa-fé (parte II)

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17 de abril de 2020, 8h00

Spacca
No nosso último texto, estabelecemos as premissas segundo as quais, em nosso entender, seria possível pleitear reequilíbrio econômico-financeiro no âmbito de acordos de leniência em razão de fatos supervenientes. Hoje, passamos a enfrentar, ilustrativamente, que fatos seriam esses, aptos a justificar uma revisita às obrigações pactuadas.

Em regra, os acordos de leniência enfocam hipóteses de rescisão em virtude de atitudes do colaborador. Embora obrigações para o Estado e delimitação das consequências pelo seu descumprimento sejam mais escassas, a natureza contratual dos acordos, por outro lado, traz importante componente: cada parte (Estado e colaborador) tem a obrigação de cumprir o pactuado (pacta sunt servanda), sob pena, no caso do leniente, de perda dos benefícios e, no caso do Estado, de privar-se de compelir o investigado a cumprir o prometido (exceptio non adimpleti contractus). Foi esse, aliás, o tom adotado em decisão do plenário do STF, quando, nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, se afirmou que1: “O Estado tem que ser leal e cumprir sua palavra, tanto quanto o colaborador, e o Estado só pode invocar a cláusula do contrato não cumprido se o colaborador não entregar aquilo a que se comprometeu.”

A posição acima se harmoniza com o melhor entendimento sobre o tema. Bem a propósito, analisando caso paradigmático decidido pela Suprema Corte sobre a política de plea agreements nos Estados Unidos (Santobello v. New York2), a doutrina advertiu que3: “o descumprimento do plea agreement é um dos poucos casos em que o defendente é automaticamente exonerado, independentemente da demonstração de prejuízo efetivo.”

Cabe aqui uma digressão: o plea agreement norteamericano toma como referência para negociação a provável pena aplicável ao ilícito do qual se é acusado, no evento de o caso em negociação ser julgado por um júri4. No plano federal, essa pena provável é determinada pelas Federal Sentencing Guidelines, elaboradas pela United States Sentencing Comission5, e que oferecem uma classificação de delitos por gravidade e uma régua de penas que se considera adequadas para cada um deles.6

Discussão mais recente, nada obstante, surgiu a respeito da possibilidade de o plea agreement vinculante, apresentado ao juízo apenas para homologação de acordo, poder ser revisitado quando há mudança posterior para minoração da diretriz da pena. Após idas e vindas, a Suprema Corte, na decisão a que se referiu o trecho doutrinário acima transcrito, entendeu que mesmo acordos submetidos para homologação com base em critérios vinculantes para o juízo são elegíveis para o abrandamento em decorrência de posterior atenuação das Guidelines.

Ainda que o objeto deste texto se centre nas obrigações pecuniárias, é fora de dúvida que o julgado acima a respeito do plea agreement contribui com a noção de que sanções ajustadas não são perenes ou estanques, admitindo reajuste à luz de eventos posteriores, sejam eles novos parâmetros normativos, sejam eles, e é o que aqui se sustenta, parâmetros práticos. Encerra-se a digressão.

Retomando o curso do escrito, o caráter bilateral dos acordos, com o reconhecimento da importância do cumprimento recíproco das obrigações pactuadas, como se viu, é fortemente reconhecido. Em razão dessa confiança, as partes, quando da celebração do acordo, buscam introduzir no ajuste todas as sanções que haveriam de ser precificadas, vis a vis a capacidade de pagamento (ability to pay) da companhia leniente. Não é isso, contudo, o que se tem percebido na história recente.

Nos idos de 2014, quando se iniciou período profícuo de celebração de acordos na seara sancionadora, um cenário de insegurança se impunha, mercê do ineditismo do instituto. A Lei Anticorrupção remonta a 2013, é verdade, mas conviveu com período em que sofreu alteração temporária pela Medida Provisória n. 703 para o fim de, entre dezembro de 2015 e maio de 2016, credenciar o Ministério Público como órgão legitimado à ultimação de acordos.

Ocorre que, tanto antes como depois da vigência daquela Medida Provisória, já havia acordos celebrados pelo Ministério Público, placitados judicialmente e sem que fossem eles impugnados, seja porque dali surgiriam provas a instruir diversos processos, e cujo posterior reconhecimento como ilícitas poderia produzir efeitos colaterais graves, seja por conta da ausência de iniciativa por parte dos demais órgãos de controle, que demoraram mais a explorar o instrumento.

Essa situação de insegurança atingiria seu ápice com decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em 2017, que condicionou a validade dos acordos subscritos exclusivamente pelo Ministério Público Federal à ratificação pela Controladoria-Geral da União7, do que defluiria mais tarde a necessidade de ajustes adicionais por várias empresas.8

Posteriormente, nada obstante, seria o Tribunal de Contas da União9 a sindicar os acordos firmados para chegar ao ponto de flexibilizar a contrapartidas neles previstas em favor dos lenientes, como a possibilidade de participar de contratações com o poder público.10 O problema se acentuaria ainda mais com a repercussão nas demais instâncias federativas, com órgãos e entes se negando a aderir a acordos e buscando reabrir tratativas para ajustes a serem confeccionados do zero11, e com alguns juízos indeferindo homologações no bojo de ações de improbidade em curso sob os mais diversos fundamentos, entre os quais a suposta indisponibilidade absoluta da pretensão sancionadora e, por conseguinte, a ilicitude do objeto dos ajustes.

Paralela e até anteriormente, o vazamento de provas obtidas em razão da leniência também inauguraria investidas por parte de órgãos dos Ministérios Públicos Federal e Estaduais que, sob o signo da independência funcional e da “notoriedade” de dados fatos, se valeriam de elementos desvelados em razão do ajuste contra a pessoa jurídica que deveria estar protegida.12

Não se ignora o término da vigência da Medida Provisória que conferia ao Ministério Público competência para celebrar acordos; também não mais se concebe que o órgão pudesse vincular entes que não participaram do ajuste. A questão é que, mesmo com todas essas ressalvas, é um dado de realidade que, à luz da boa-fé objetiva (artigo 112 do Código Civil), uma série de fatores posteriores à celebração de leniências estabeleceram uma dissonância entre as expectativas que redundaram no ajuste e o que de fato viria a suceder.

A par de a possível falta de uma postura mais contundente por parte do Ministério Público em defesa da leniência poder sustentar em tese até mesmo a exceção do contrato não cumprido — imaginado que seja um nexo de causalidade entre eventual omissão e a proteção deficiente que emergiria do acordo —, certo é que do ajuste não resultou o que inicialmente desejado pelas partes, em franca contrariedade à teoria da pressuposição, corolário da boa-fé:

(…) tacitamente as partes vinculam o seu acordo à existência de determinadas situações. Há uma autolimitação da vontade, pois a vontade negocial somente teria validade naquelas situações em que o declarante reputasse como vetor e, por isto, não colocou como condição de que exista, apareça ou persista determinada circunstância. Se esta pressuposição não se realiza, as consequências jurídicas corresponderão à vontade efetiva, ou seja, à vontade declara pelas partes no contrato, mas não à verdadeira vontade. Portanto, a pressuposição seria uma condição não desenvolvida. A relação jurídica é originada de um certo estado de coisas; se o estado de coisas pressuposto não existir, ou não se concretizar, ou deixar de existir, a relação jurídica constituída através da declaração de vontade não se mantém, a não ser contra a vontade do declarante.13

À mesma conclusão se chega por meio da função social do contrato (artigo 422 do Código Civil), que subordina as disposições e os efeitos do ajuste aos impactos que ele é capaz de dimanar para toda a sociedade de maneira geral: “O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida.”14

No caso da leniência, essa mesma função social avulta, recomendando a preservação do negócio tanto de modo a garantir a possibilidade de continuidade da empresa, com preservação de empregos e capacidade contributiva, como também de sorte a assegurar o desempenho do papel com que se comprometeu no combate a ilícitos para cuja elucidação irá concorrer.

Não se pode ignorar, do ponto de vista empresarial, que um dos principais incentivos oferecidos para que uma empresa adote uma postura colaborativa é a perspectiva de solução global das diversas externalidades negativas decorrentes das investigações cíveis e criminais.15 Nada obstante, têm sido recorrentes os embaraços ao processo de reabilitação de companhias, com dificuldades de participação em licitações e de acesso a crédito junto a instituições financeiras estatais.16

Como visto anteriormente, é conteúdo essencial dos acordos que esforços sejam empreendidos para auxiliar as companhias lenientes no levantamento das variadas restrições, efetivas ou potenciais, oriundas da pluralidade de entes públicos que, por uma razão ou outra, buscam afirmar sua específica autoridade, iniciando investigações, ajuizando ações, ou impondo penas ou restrições à colaboradora. Sem embargo, essa parcela vital dos acordos não tem sido cumprida a contento pelo Estado como um todo, o que produziu efeitos colaterais significativos e vulnerou a proteção da confiança que deveria ter sido assegurada às companhias.17

Em síntese, o não desencadeamento pelos acordos de seus efeitos esperados — ou, quando menos, na extensão esperada — teve o condão de repercutir na situação financeira vivida por várias companhias lenientes, que, por isso e por outros fatores, acabaram, muitas delas, compelidas a empreender recuperações judiciais18 com consequências perversas: em três anos, as principais construtoras do país encolheram 85%, eliminaram mais de um milhão de empregos formais e deixaram de arrecadar bilhões de reais.19

Não se discute que outros fatores contribuíram para o cenário: a partir de 2016, houve abrupta redução da demanda dos setores público e privado, especialmente nos setores de construção civil, infraestrutura, transporte e mobilidade, e a alta do valor do dólar americano — que havia alcançado o pico histórico desde o Plano Real e sido cotado a quatro reais e dezenove centavos — refletiu nas dívidas em moeda estrangeira assumidas por vários grupos. É fora de dúvida, contudo, que o déficit na segurança esperada por parte dos acordos também foi decisivo, inclusive com o recrudescimento negocial junto a credores.

Se o cenário já se revelava desafiador, a depressão econômica que se projeta no futuro próximo somente torna ainda mais complexas operações de desinvestimento e de retomada de novos negócios, impondo um verdadeiro abismo entre os parâmetros que guiaram ajustes nos idos de 2015 a 2017 e o momento atual.

Tudo somado, o que se nota de maneira generalizada é uma significativa redução da capacidade de pagamento por parte de empresas lenientes em razão da frustração de expectativas que balizaram os cálculos feitos inicialmente e que, se não autorizam repactuação na monta, ao menos exigem, na mesma toada dos tantos planos de recuperação judicial em curso, o reperfilamento das dívidas contraídas.


1 http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,estado-tem-que-ser-leal-e-cumprir-sua-palavra-diz-barroso-em-voto,70001856303

2 https://supreme.justia.com/cases/federal/us/404/257/case.html

3 https://ssrn.com/abstract=2997499

4 ASHER, Joshua D. Unbinding the Bound: Reframing the Availability Of Sentence Modifications For Offenders Who Entered Into 11(C)(1)(C) Plea Agreements. Columbia Law Review, Vol. 111, 2011.

5 http://www.ussc.gov/guidelines/archive

6 Embora as recomendações da USSC não sejam vinculantes (desde United States v. Booker), elas são frequentemente seguidas e, se ignoradas, podem justificar recursos.

7 https://www.conjur.com.br/2017-ago-22/ministerio-publico-nao-acordos-leniencia-decide-trf

8 https://www.conjur.com.br/2019-abr-05/agu-cgu-retiram-sigilo-acordos-leniencia-firmados

9 Das inúmeras tentativas, destacam-se os seguintes acórdãos, que declararam inidoneidade de várias empresas lenientes: n. 483/2017, n. 1036/2019 e n. 483/2017.

10 https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/efeitos-no-tcu-de-acordo-de-colaboracao-ou-leniencia-celebrado-com-outro-orgao-14122019

11 https://www.conjur.com.br/2017-set-25/mp-sp-nao-adere-acordo-leniencia-entre-odebrecht-mpf

12 http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/noticias-df/mpf-df-propoe-acao-de-improbidade-administrativa-contra-governador-de-minas-gerais; https://www.metropoles.com/distrito-federal/justica-assume-mediacao-entre-gdf-e-consorcio-construtor-do-centrad/amp

13 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil (vol. 4). 2ª ed. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 241.

14 REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 10.

15 https://ssrn.com/abstract=2501755

16 http://www.opetroleo.com.br/odebrecht-quer-voltar-a-participar-de-licitacoes-na-petrobras/; http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/02/1857445-odebrecht-tem-r-15-bi-bloqueado-pelo-bndes-por-obras-no-exterior.shtml

17 “(…) a vinculação do Poder Público à juridicidade importa não apenas a rígida observância das leis, mas também a proteção da segurança jurídica, entendida como a tutela da legítima confiança depositada pelos administrados nas condutas da Administração.” BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. RJ: Renovar, 2006, p. 149.

18 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/07/oas-acumula-novas-dividas-e-corre-risco-de-falir.shtml; http://www.galvao.com/pdfs/release/RJ.pdf

19 https://www.abecip.org.br/imprensa/noticias/construtoras-encolhem-85-em-3-anos

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

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    é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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