Direito Civil Atual

Equilíbrio contratual, segurança jurídica e revisão dos contratos durante pandemia

Autor

  • Paulo Roque Khouri

    é diretor do Brasilcon doutorando em Direito pelo IDP mestre em Direito Privado e especialista em Direito do Consumo ambos pela Universidade de Lisboa autor do livro "Direito do Consumidor" (Atlas 7ª. Edição São Paulo 2021) sócio majoritário do escritório Roque Khouri&Pinheiro e professor do IDP.

17 de abril de 2020, 11h22

A cláusula preço dos contratos é, em síntese, a espinha dorsal de toda relação contratual, pois essa cláusula é o grande referencial do equilíbrio econômico da relação, que as próprias partes definiram no momento da celebração do pacto. Nesses tempos de pandemia, há vários movimentos, inclusive de legislativos estaduais no sentido de mexer no preço dos contratos, como que desprezando o que diz nossa legislação vigente ou a própria Constituição que fala da intangibilidade do ato jurídico perfeito1 (como o é o contrato) por regulações posteriores. Com isso, os impactos dessa pandemia na temática dos contratos têm alcançado os holofotes do cenário jurídico brasileiro, o que se nota em diversas decisões judiciais2 pelo Brasil afora; bem como, no âmbito legislativo, com a verificação de que corre no Congresso Nacional, por exemplo, o Projeto de Lei n. 1.179, de abril e 2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid19).3

Um movimento salutar tem acontecido no seio da própria sociedade e do mercado, que é a negociação entre as partes, seja prorrogando o vencimento das obrigações, seja modificando, por comum acordo, a cláusula preço, como tem ocorrido entre empreendedores de shopping centers e lojistas. Entretanto, uma vez que as negociações não cheguem a bom termo, a saída é verificar o que ordenamento nos propõe em situações como essas.

A questão em debate não é nova nem na doutrina4 nem na jurisprudência. Na sua versão atualíssima, o que tem sido colocado frequentemente é o seguinte: como fica a execução dos contratos de duração, contratos que foram feitos quando nem se falava em pandemia e hoje têm de ser executados no meio de toda essa turbulência5. Parlamentos não só do Brasil, como da Europa, têm procurado votar alguma legislação que evite a sanção em caso de descumprimento nesse período, como o despejo nos contratos de locação. Entretanto, a questão que quero tratar aqui é diferente: aqueles contratos de prestação de serviços, empreitada, fornecimento de produtos, compra e venda, locação, que foram celebrados por prazo determinado e que, ao contrário dos contratos por prazo indeterminado, as partes não têm a faculdade de denunciarem a relação obrigacional a qualquer tempo. Em síntese: nos contratos por prazo determinado, os contratantes são obrigados a cumprir o contrato até o termo final?

É fato que a pandemia, conforme tem sido amplamente noticiado, importará em perda de renda para parcela considerável da população e, portanto, dos contratantes. Aqui, entretanto, cabe uma primeira advertência: a dificuldade econômica para cumprimento da obrigação, por si só, não é tratado, em princípio6, pelo direito como fator juridicamente relevante que autorizasse seja o fim antecipado do contrato, sem o pagamento de penalidades, seja a modificação do modo e(ou) preço do cumprimento da prestação. No nosso ordenamento, a dificuldade econômica, em princípio, sempre foi tratada como risco que o devedor assume quanto ao cumprimento da obrigação que lhe incumbe. Da mesma forma que o credor assume quanto a perda do valor ou utilidade da prestação no decorrer da execução do contrato. Em outras palavras, o devedor, como exemplo, pode ter mais dificuldade em realizar a prestação por conta do desemprego superveniente, bem como o credor pode ver o bem recebido em função do contrato desvalorizar-se no decorrer do cumprimento da obrigação.

Para o direito o fato superveniente só tem relevância no cumprimento da obrigação diante de dois fatos em si: ocorrência de caso fortuito ou força maior7; ou a onerosidade excessiva superveniente. Voltando-se às origens do tema em busca de respostas para o hoje, necessário se pensar, também, na Lei Failliot, uma das primeiras leis que existiram no mundo para regular situação de possível resolução contratual dos contratos de duração com base em fato superveniente. Tal lei, de 1918, surge no contexto de tentativa de recuperação o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados antes da Primeira Guerra Mundial a respeito do fornecimento de gêneros, cujo preço, após a Guerra, disparou exponencialmente. Naquela conjuntura, obrigar que os fornecedores de alguns produtos, como o carvão, entregassem o produto no preço anterior à guerra, levá-los-ia ao empobrecimento, ao passo que os outros contratantes enriqueceriam exageradamente.8

Na situação do caso fortuito ou força maior, a execução do contrato deve ser prematuramente extinta porque a prestação não é fisicamente possível9. Veja, a título de exemplo, a companhia aérea que não pode realizar o trajeto prometido ao consumidor no contrato de transporte em função das medidas administrativas de suspensão dos voos nacionais e (ou) internacionais. A situação perante o direito resolve-se da seguinte forma: o contrato é extinto sem que seja imposta qualquer penalidade à companhia, que deve reembolsar ao consumidor todo valor pago de forma antecipada.

Na onerosidade excessiva superveniente ocorre de forma diferente. Ao contrário do que se sucede com o caso fortuito ou força maior, a prestação é fisicamente possível, mas o seu valor em si foi drasticamente afetado pela pandemia, gerando não qualquer variação no preço, mas uma alteração drástica, ou seja, uma verdadeira onerosidade excessiva.

A onerosidade excessiva superveniente é tratada tanto pelo Código Civil nos artigos 47810 e 47911, como na parte final do inciso V do artigo 6º12 do Código de Defesa do Consumidor e, ainda, no âmbito dos contratos regidos pelo direito administrativo, no artigo 65, “d” da Lei 8.666/9313. A diferença básica da aplicação do instituto da onerosidade excessiva superveniente no Código Civil, Lei 8666/93 e no CDC é quanto a imprevisibilidade do fato superveniente gerador desse ônus excessivo na prestação; enquanto para as relações contratuais sujeitas ao Código Civil e perante a lei 8666/93 é necessária a sua demonstração; perante o CDC, a imprevisibilidade ou previsibilidade do fato é irrelevante. O consumidor terá direito tanto ao fim antecipado do contrato como o prosseguimento com a consequente modificação da cláusula preço se demonstrar a onerosidade excessiva da prestação que lhe incumbe.

Entretanto, quando o assunto é a atual pandemia, particularmente penso ser muito improvável, mesmo na aplicação do regime do Código Civil, que esse evento seja interpretado como fato previsível. Dai que soluções muito próximas seriam dadas tanto para os consumidores como para os contratantes sujeitos ao regime do Código Civil ou ao da lei 8666/93.

Perante o CDC e o Código Civil bastaria alegar a pandemia para resolver o contrato, sem pagamento de penalidade, ou pleitear a modificação da cláusula preço?

A questão não é tão simples de resolver assim. Primeiro é necessário que seja demonstrado o nexo de causalidade entre a pandemia e a onerosidade excessiva da prestação. Muitos contratantes podem ficar na posição de uma dificuldade econômica para a realização da prestação, mas tal, como dito anteriormente, não autoriza nem o fim antecipado do contrato nem sua modificação. Exemplificando: antes da crise da pandemia, o adquirente que comprou um imóvel por R$ 1 milhão, cujo preço foi parcelado em 60 prestações. Na hipótese desse imóvel hoje no mercado, mesmo após a pandemia continue com o mesmo valor ou tenha uma pequena queda. Ora, se o objeto da prestação em si não sofreu uma queda relevante em seu valor de mercado (que não é uma queda qualquer, mas uma depreciação excessiva), tal não autoriza a aplicação do artigo 47814 do CCB ou o do artigo 6º do CDC. O que é relevante em si não é o fato superveniente, mas a repercussão direta desse fato no valor da prestação. Daí que nesse contexto a situação pessoal do devedor é irrelevante. Situação diferente ocorre se o imóvel comprado por R$ 1 milhão, em função da pandemia, passa a ter um valor de mercado de R$ 200 mil, por exemplo. Essa é uma situação típica de onerosidade excessiva superveniente.

Como se vê, diante de um cenário de crise contratual provocado verdadeiramente por uma onerosidade excessiva superveniente, com os requisitos aqui elencados, se a parte prejudicada não quiser a resolução do contrato, ela, por força do artigo 479 do CCB, pode pleitear a modificação da cláusula preço do contrato; não para obter uma vantagem, mas para neutralizar o forte desequilíbrio contratual, resgatando o equilíbrio econômico da relação contratual. Agora, como se chega a essa nova equação do contrato com a definição da cláusula preço? A doutrina tem sido unânime em afirmar que, embora o juiz deva resolver a questão por equidade, deve se esforçar por encontrar a nova claúsula em sintonia com a cláusula preço celebrada no momento da pactuação. Exemplificando: se a execução do contrato, que padece hoje com uma onerosidade excessiva superveniente decorrente da pandemia, tinha uma margem de lucro prevista de 5%; não poderia a nova cláusula permitir, v.g., um lucro de 10% ou mais.

O CDC e a Lei 8666/93 não falam em resolução do contrato por onerosidade excessiva; regulam apenas a possibilidade de modificação da cláusula preço. Entretanto, sempre defendi que com a aplicação subsidiária do Código Civil é possível, ante a resistência de qualquer das partes à modificação da cláusula, sobretudo em face dos interesses do consumidor e da própria administração, que a contratação seja prematuramente extinta ou resolvida, sem aplicação de qualquer penalidade contratual.

O momento atual é um duro teste para o direito, a justiça e a segurança jurídica. Como afirmado, as partes de norte a sul, em sua maioria, têm buscado a negociação para permitir a continuidade do vínculo contratual ou a sua suspensão. Na resistência de qualquer das partes à negociação, não pode servir a pandemia para a quebra injustificada dos contratos ou a intervenção direta do legislador na cláusula preço, sob pena de ofensa à proteção constitucional do ato jurídico perfeito. Os diplomas legais aqui citados são a solução mais justa, no plano abstrato, que não só o ordenamento brasileiro, como o europeu encontraram em seus códigos e jurisprudências para lidar com a quebra radical (onerosidade excessiva) da equação econômica dos contratos, sem vulnerar a segurança jurídica.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA,UFRJ e UFAM).


1 CF1988. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

2 Liminar permite redução no aluguel pago por restaurante. Disponível em: < https://tj-sp.jusbrasil.com.br/noticias/828477802/liminar-permite-reducao-no-aluguel-pago-por-restaurante?ref=serp>. Acesso em 7 de abril de 2020; Para TJSP, pandemia equivale a guerra e pode gerar postergação de pagamentos. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/tj-sp-pandemia-guerra-postergar-pagamentos>. Acesso em 7 de abril de 2020.

3 Assim: Projeto de Lei n° 1179, de 2020. Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141306>. Acesso em 7 de abril de 2020.

4 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2006.

5 Essa questão foi objeto de minha tese de Mestrado perante a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, intitulada: A Revisão Judicial dos Contratos no Novo Código Civil — Código do Consumidor e Lei n. 8.666/93”, Atlas, São Paulo, 2006.

6 Existe de forma excepcionalíssima um regime especial de modificação da clausula preço, sem que seja necessário demonstrar uma onerosidade excessiva ou uma imprevisão. Tal ocorre com na lei de locações ( art.68, Lei 8245/91 , Contrato de empreitada ( art.620, Código Civil) ) e na Lei 8666/93 (no próprio artigo 65, parágrafos, 5º e 6º)

7 Código Civil. Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

8 MORAES, Renato José. Cláusula rebus sic stantibus. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 78.

9 FERNANDES, Luis Alberto de Carvalho. A teoria da imprevisão no direito civil português. Lisboa: Quid Júris, 2001.

10 Código Civil. Artigo 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

11 Art. 479. A resolução poderá ser evitada oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

12 Código de Defesa do Consumidor. Artigo. São direitos básicos do consumidor: (…) V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

[13] Lei n. 8.666/93. Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (…) “d” para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.

14 Código Civil. Artigo 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Autores

  • Brave

    é doutorando em direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); mestre em direito privado pela Universidade de Lisboa; advogado; professor; autor de diversas obras e publicações no Brasil e no mundo, com destaque para os livros "A Revisão Judicial dos Contratos no Novo Código Civil — Código do Consumidor e Lei n. 8.666/93", pela editora Almedina e "Direito do Consumidor: Contratos, Responsabilidade Civil e Defesa do Consumidor em Juízo", pela editora Atlas.

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