Opinião

A Covid-19 e as medidas de urgência para proteção de presos no Brasil

Autores

  • Cândice Lisboa Alves

    professora de Direito Constitucional da Universidade Federal de Uberlândia doutora em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e autora do livro "Direito à saúde: efetividade e proibição do retrocesso social" D`Plácido 2013.

  • Beatriz Corrêa Camargo

    professora de Direito Penal da Universidade Federal de Uberlândia professora visitante na Universidade de Halle doutora e pós-doutora pela Universidade de São Paulo. Autora do livro “Teoria do concurso de pessoas” Marcial Pons 2018.

16 de abril de 2020, 10h26

Crises são momentos para repensar as instituições da sociedade civil. Na crise atual, gerada pela pandemia da Covid 19, são colocados à prova os modelos de (não) intervenção do Estado na economia, as regras para regulação das relações de trabalho e de seguridade social, o aparato do sistema de saúde, a importância do investimento em pesquisa e tecnologia e, por que não?, o funcionamento do sistema de Justiça.

Segundo as medições que puderam ser feitas até agora, o nível de mortalidade pelo vírus é alto, ultrapassando 10% das pessoas infectadas em países como a Itália [1]. Como se sabe, porém, esses números variam conforme a capacidade de resposta do sistema de saúde de cada país e das condições pessoais em que se encontram os infectados. No Brasil, o Boletim Epidemiológico 07 [2], divulgado em 6 de abril de 2020 pelo Ministério da Saúde, trouxe motivos para preocupação: foram confirmados 12.056 casos e 553 óbitos, com taxa de letalidade de 4,6%, o que é muito significativo considerando-se que estamos na fase inicial da epidemia nacional.

No nível intersubjetivo, pessoas do mundo inteiro experienciam a limitação do direito de ir e vir, do direito ao lazer, à saúde para aqueles que um dia já gozaram dele em maior ou menor grau. O confinamento forçado das populações gera desafios de ordem psíquica, agravados pelo temor, justificado, pela própria vida. Autorreflexão, cuidado para consigo e responsabilidade pelo outro, solidariedade, são valores que temos sido chamados a cultivar nesta hora. E que têm sido negados, nesse momento, a uma parcela considerável da população brasileira, constituída pela população carcerária.

Enquanto podemos cuidar de nossos entes e nos resguardar em nossos lares, homens e mulheres presos, junto dos agentes penitenciários, não têm por onde escapar do vírus que adentra as prisões. No cárcere, a proliferação ocorre em massa, as condições de saúde e higiene são baixas e o acesso aos serviços de saúde são mais deficitários e custosos do que para o resto da população. Assim, uma questão humanitária que se coloca agora para todos nós diz respeito a por que não enxergar os detentos, ao menos neste momento tão extremo, como pessoas iguais a nós, que temem pela própria vida e necessitam se proteger, cuidar e serem cuidados por seus amigos e familiares.

O direito de punir é um direito subjetivo do Estado, cuja utilização necessita de fundamentos e limites. O filósofo Immanuel Kant considerava que em uma sociedade prestes a se dissolver, a última pena de morte deveria ser executada porque cada um deve receber o que merece [3]. No plano moral-político, o problema mais óbvio diz respeito à proporcionalidade entre a sujeição a uma morte anunciada e aquilo que fizeram as pessoas que estão encarceradas. Mais de 60% são acusados ou condenados por crimes contra o patrimônio e tráfico de drogas [4]. Sustentar a manutenção da prisão para esses casos não se justifica nem mesmo para quem defende a ideia de que a prisão é um meio de pagar pelo que se fez. A conta não fecha. Cerca de 40% dos encarcerados não tiveram sequer uma condenação em segunda instância [5]. O fundamento para suas prisões é em geral o risco potencial para o andamento e a conclusão do processo penal a que estão sendo submetidos (art. 312, CPP). No momento, contudo, as audiências se encontram suspensas [6]. Outros 25% dos presos cumprem pena em regime de execução provisória, sem uma condenação transitada em julgado [7].

Juridicamente, o Estado tem responsabilidade pela vida e integridade corporal dos indivíduos que se encontram sob sua custódia [8]. Essa responsabilidade não pode ser acionada somente após a ocorrência do pior. Nas circunstâncias ocasionadas pela pandemia, não apenas as condições adequadas de saúde não conseguem ser asseguradas pelo sistema carcerário brasileiro, como são particularmente dificultadas quaisquer medidas de controle e resguardo através do aprisionamento. A nosso ver, a Recomendação Nº 62, emitida em 17 de março de 2020 pelo Conselho Nacional de Justiça, é muito tímida em relação às medidas que podem e devem ser feitas nesse sentido.

Sem considerar aqui o caso dos menores que cumprem medidas de internação, a Recomendação Nº 62 oferece dois grupos de providências a serem tomadas em favor dos encarcerados: um para os presos provisórios (artigo 4º), e outro para os condenados em segunda instância (artigo 5º).

Para os presos provisórios, recomenda-se basicamente a reavaliação das prisões provisórias, nos termos do artigo 316 do CPP. Além disso, os juízes devem evitar a aceitação da prisão preventiva como medida cautelar. Segundo a recomendação, novas ordens de prisão preventiva somente podem ser decretadas em casos de máxima excepcionalidade. Para os presos que já cumprem pena, a recomendação se dá no sentido de antecipar a saída dos regimes fechado e semiaberto nos termos da Súmula Vinculante no 56 do Supremo Tribunal Federal [9].

Ocorre que a proposta do CNJ se dirige a hipóteses muito restritas, limitando-se a uma avaliação relativa à condição e às necessidades especiais do preso. Deste modo, os artigos 4º e 5º abarcam três grupos de condições pessoais que merecem atenção especial para o desencarceramento, e uma condição de caráter objetivo, relativa ao estado da unidade prisional:

1º) Razões familiares: mulheres gestantes ou lactantes, pessoas responsáveis por crianças de até 12 anos e pessoas com deficiência;

2º) Vulnerabilidade social: indígenas e pessoas com deficiência;

3º) Grupos de alto risco: idosos, portadores de doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções;

4º) Estabelecimentos precários: são aqueles que (I) não dispõem de equipe de saúde lotada no estabelecimento; (II) encontram-se sob ordem de interdição, com medidas cautelares determinadas por órgão de sistema de jurisdição internacional; (III) não dispõem de instalações que não favoreçam a propagação do novo coronavírus.

Todas essas condições são de urgente consideração, porém, de difícil execução na prática, pois pressupõem a revisão dos processos por iniciativa dos magistrados, do Ministério Público ou por advogados e defensores públicos.

Quanto às condições elencadas em (1º), (2º) e (3º), os órgãos públicos não dispõem dos dados relativos à situação individual de cada preso. Para assegurar as informações exigidas, seria preciso um levantamento junto às unidades penitenciárias. Ademais, é praticamente impossível oferecer laudo de comprovação médica sobre o estado de saúde do preso quando o sistema de saúde se prepara para a sobrecarga gerada pela própria pandemia. Mas de todo modo: quanto tempo pode demorar até o acionamento do Judiciário e a movimentação das unidades prisionais? O momento exige atuação rápida e consciente dos órgãos responsáveis pela tutela dos presos. Os juízes não podem se pautar por esse tipo de exigência.

Muito mais efetiva é a adoção de parâmetros objetivos para desafogar a sobrelotação dos presídios e cumprir com o dever estatal de garantir a vida e a integridade física das pessoas que encontram sob sua tutela. Primeiro, pode-se, sob as condições excepcionais declaradas pelo Estado de Calamidade Pública (Decreto Legislativo Nº 6 de 20 de março 2020), converter-se todas as prisões provisórias em medidas cautelares diversas da prisão. Pela razão que seja, o preso provisório não tem a sua culpa formada. Sua presença no sistema prisional representa nesse momento um risco imponderável à sua saúde e à dos demais presos. É desarrazoado o condicionamento da soltura a crimes que não envolvem violência ou grave ameaça como uma questão de princípio. No mínimo, a análise poderia se pautar pelo motivo da decretação da prisão preventiva: não é plausível manter os casos em que a prisão foi decretada com a finalidade de assegurar o processo, cujo andamento se encontra paralisado. Outra possibilidade é a demarcação da antecipação de mudança do regime não pelas condições de saúde ou familiares do preso, mas, sim, de forma objetiva, pelo tempo de cumprimento de pena. Dessa forma, as condições estabelecidas pelo artigo 112 da LEP podem ser aplicadas de maneira imediata, suspendendo-se excepcionalmente a exigência do §1º desse dispositivo, em razão do caráter de urgência reclamado pela situação atual.

Nesse contexto, cabe refletir sobre os rumos que têm sido dados à questão carcerária pelos demais órgãos da Justiça. É duvidoso que o bem-estar dos presos esteja sendo considerado seriamente, como imposição do princípio da dignidade humana. Recentemente, o Ministério da Justiça editou a Portaria DISPF nº 5, de 16 de março de 2020, assinada pelo diretor do Sistema Penitenciário Federal. Nessa portaria, anterior à recomendação do CNJ, o órgão "suspende(u) as visitas, os atendimentos de advogados, as atividades educacionais, de trabalho, as assistências religiosas e as escoltas realizadas nas Penitenciárias Federais do Sistema Penitenciário Federal do Departamento Penitenciário Nacional como forma de prevenção, controle e contenção de riscos do Novo Coronavírus".

Esse ato ministerial foi atacado pela Reclamação 39756 [10], cujo legitimado foi o Instituto Anjos da Liberdade (associação civil qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público — OSCIP). Nos termos da reclamação, a Portaria DISPF nº 5 afronta as Súmulas Vinculantes 14 e 53 do STF em diversos pontos. De acordo com a ministra relatora Rosa Weber, o pedido se ampara no fato de que a portaria: (I) impõe regime de incomunicabilidade aos presos segregados nos presídios federais; (II) vulnera a garantia de entrevista pessoal e reservada entre advogados e clientes; (III) tipifica crime de abuso de autoridade e ato de improbidade administrativa; (IV) cria regime prisional mais gravoso sem autorização legislativa (SV 56); e (V) impede o exercício da ampla defesa (SV 14), assentando-se em supressões de garantias processuais penais e na violação dos direitos humanos dos presos.

Contudo, após a relatora afirmar a presença dos requisitos de admissibilidade da reclamação, limitou-se a dizer sobre a temporalidade das medidas excepcionais, pelo período de 30 dias, e também asseverou a possibilidade de alteração a qualquer momento. Nesse sentido, a relatora concluiu que:

"Presente o caráter de excepcionalidade e de conformação das medidas com os esforços de isolamento e de redução de interação social para o combate à pandemia do coronavírus, não identifico, nesta análise perfunctória, afronta à autoridade das Súmulas Vinculantes nº 14 e 53 desta Suprema Corte, sem prejuízo de posterior e mais aprofundada análise ao ensejo do julgamento definitivo do feito" (STF, Recl. 39756).

Diante de semelhante inação por parte de nossa Corte Constitucional, o que esperar para o sistema penitenciário e a salvaguarda das situações de saúde dos presos? Saúde não é um conceito meramente matemático ou de origem física, mas mental e emocional. Uma dúvida cruel sobrepaira: proteção a quem? Para quem? Deixar os encarcerados como estão protege o sistema em si ou pensa no bem-estar dessas pessoas?

Nota-se timidez nessa disposição tanto em um caráter procedimental quanto humanitário. Os rastros de morte da Covid-19 ainda não se manifestaram. Pelas previsões do Boletim Epidemiológico, a depender da região irão se prolongar para junho, julho ou adiante. A forma de enfrentamento da doença é promover um escalonamento de atendimento no sistema de saúde e, mais uma vez, indaga-se: há planejamento estratégico quanto às questões sanitárias dos presídios? Em dias de normalidade, a realidade mostra o contrário. E agora, com decisões desse matiz, parece que a proteção, mais uma vez, é seletiva e elitista.

Não há como remediar os danos após a ocorrência dos fatos. As medidas de isolamento social não têm efeitos de diminuição da letalidade após a contaminação em massa e a exigência dos aportes sanitários hoje inexistentes. É, sim, questão de vida e morte, mas parece que a pergunta por detrás é: vida de quem? A quem é que o Estado almeja a proteger?

 


[1] Dados oficiais e estatísticas disponíveis no relatório elaborado por EpiCentro – Istituto Superiore di Sanità, ISS. Integrated surveillance of COVID-19 in Italy. Disponível em: <https://www.epicentro.iss.it/en/coronavirus/bollettino/Infografica_6aprile%20ENG.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2020.

[2] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico 07, de 06 de abril de 2020. Disponível em: https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/06/2020-04-06—BE7—Boletim-Especial-do-COE—Atualizacao-da-Avaliacao-de-Risco.pdf. Acesso em 08 de abril de 2020.

[3] A esse respeito, Mosbacher, Andreas. Kants Präventive Straftheorie. ARSP: Archiv Für Rechts- Und Sozialphilosophie, vol. 90, no. 2, 2004, pp. 210–225, p. 210 e s.

[4] Conselho Nacional de Justiça, Banco Nacional de Monitoramento de Prisões 2.0. Relatório publicado em 6 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/01/57412abdb54eba909b3e1819fc4c3ef4.pdf>. Acesso em 6 de abril de 2020.

[5] Conselho Nacional de Justiça, Banco Nacional de Monitoramento de Prisões 2.0. Relatório publicado em 6 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/01/57412abdb54eba909b3e1819fc4c3ef4.pdf>. Acesso em 6 de abril de 2020.

[6] Por força do artigo 5º da Resolução Nº 313 do Conselho Nacional de Justiça, de 19 de março de 2020.

[7] Conselho Nacional de Justiça, Banco Nacional de Monitoramento de Prisões 2.0. Relatório publicado em 6 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/01/57412abdb54eba909b3e1819fc4c3ef4.pdf>. Acesso em 6 de abril de 2020.

[8] Nos termos do art. 37, § 6° da Constituição Federal e do art. 38 do Código Penal. No que tange o dever do Estado de indenizar os presos pelas condições degradantes a que são submetidos, a matéria foi decidida no Tema de Repercussão Geral 365 do STF, a partir do Recurso Extraordinário (RE) 580252/MS, julgado em 16.02.2017 sob relatoria do Min. Gilmar Mendes. A tese tem o seguinte teor:
"Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento".

[9] Nos termos da Súmula, “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS”.

[10] BRASIL. STF. Recl. Rel. Min. Rosa Weber. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342813880&ext=.pdf. Acesso em 08 de abril de 2020.

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    professora de Direito Constitucional da Universidade Federal de Uberlândia, doutora em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e autora do livro "Direito à saúde: efetividade e proibição do retrocesso social" D`Plácido, 2013.

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    professora de Direito Penal da Universidade Federal de Uberlândia, professora visitante na Universidade de Halle, doutora e pós-doutora pela Universidade de São Paulo. Autora do livro “Teoria do concurso de pessoas”, Marcial Pons, 2018.

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