Opinião

STF, redução salarial e estado de sítio: nossa liberdade em risco

Autor

  • Edilton Meireles

    é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboadoutor pela PUC/SP desembargador do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região professor adjunto da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBa).

16 de abril de 2020, 8h28

O STF está na iminência de decidir questão de grande relevância constitucional, ao contrário do que possa parecer à primeira vista. Trata-se da decisão liminar a ser proferida pelo Tribunal Pleno na ADI 6.363, demanda esta proposta pelo partido político Rede Sustentabilidade questionando a constitucionalidade do artigo 7º da Medida Provisória n. 936/2020.

Por esse referido dispositivo provisório ficou estabelecido que, mediante acordo individual escrito, empregado e empregador podem pactuar a redução da jornada de trabalho e dos salários.

Questiona-se a constitucionalidade desse dispositivo à luz do disposto no artigo 7º, incisos VI e XIII, da Constituição de 1988, que expressamente estabelecem que a redução do salário e da jornada somente podem ser efetivadas mediante negociação coletiva (convenção ou acordo coletivo de trabalho) com a participação sindical (artigo 8º, inciso VI, da CF).

Claramente, nesses pontos, a Constituição suprimiu o direito de o trabalhador pactuar individualmente a redução da jornada de trabalho e a diminuição dos salários. Limitou a autonomia da vontade do trabalhador em sua própria proteção, em especial em momentos de maior vulnerabilidade.

Diante deste quadro, o ministro Ricardo Lewandowski, procurando dar uma interpretação conforme a Constituição, tendo em conta o momento histórico vivido pela pandemia causada pelo coronavírus, com reconhecimento da calamidade pública em âmbito nacional, conclui de maneira a assentar que "os acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho (…) deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração", para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes. [1]

Bem ou mal, mas em juízo de ponderação, considerando o momento histórico vivenciado, o ministro relator não sacrificou por inteiro os direitos fundamentais dos trabalhadores assegurados nos incisos VI e XIII do artigo 7º da CF, que lhes garantem a redução da jornada e a diminuição dos salários somente mediante negociação coletiva. Teve em conta que, a se aplicar o artigo 7º da MP 936/2020 em sua literalidade, estar-se-ia diante de uma situação de total sacrifício dos mencionados direitos fundamentais sociais (redução somente por negociação coletiva), atingindo-os em seus núcleos essenciais.

Várias vozes, no entanto, levantam-se contra essa decisão, alegando que se está diante de uma situação excepcional, de calamidade pública, decorrente de uma situação de força maior, de modo que se pode afastar, transitoriamente, o texto constitucional para adequá-lo ao momento vivenciado, dispensando-se a chancela sindical. Bastaria o acordo individual diante da calamidade pública.

A Constituição, no entanto, não deve e nem pode ser interpretada de modo estanque ou em suas normas isoladas. Nem de forma casuística. E, ao contrário do que possa se pensar, ela trata das situações excepcionais, inclusive aquelas decorrentes de "calamidades de grandes proporções na natureza" (artigo 136).

Em verdade, diante de momentos de excepcionalidades, a Constituição prevê a possibilidade da decretação do estado de defesa (artigo 136) ou do estado de sítio (artigo 137).

O estado de defesa pode ser declarado "para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza" (artigo 136). Já o estado de sítio pode ser reconhecido nos casos de: "I comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; e II declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira" (artigo 137).

Nas duas hipóteses, a própria Constituição estabelece que, em tais situações, podem ser estabelecidas restrições a direitos constitucionais (§ 1º, inciso I, do artigo 136 e artigos 138 e 139). Essas medidas seriam, no estado de defesa: "I — restrições aos direitos de: a) reunião, ainda que exercida no seio das associações; b) sigilo de correspondência; e c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; e II — ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes" (artigo 136, § 1º).

Já no estado de sítio, essas restrição seriam, na hipótese de sua declaração no caso de "comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa": "I — obrigação de permanência em localidade determinada; II — detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; III — restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; IV — suspensão da liberdade de reunião; V — busca e apreensão em domicílio; VI — intervenção nas empresas de serviços públicos; VII — requisição de bens" (artigo 139 da CF).

Vejam, então, que em nenhuma dessas situações a Constituição estabelece a possibilidade de restrição dos direitos dos trabalhadores, ou a sua supressão, ainda que em caráter temporário. Somente em caso de guerra é que outras garantias constitucionais podem ser suspensas quando expressamente indicadas no decreto respectivo, a ser aprovado pelo Congresso Nacional (artigo 138 da CF).

O país, no entanto, não vive nem em estado de defesa, nem em estado de sítio. Nem em guerra. Foi reconhecido o estado de calamidade pública, mas nem sequer o de estado de defesa.

Logo, o STF está diante de uma situação na qual ela pode definir nossos direitos diante dos estados de defesa e de sítio. Isso porque, se diante do atual estado de calamidade pública o STF concluir que o texto constitucional, ainda que de forma temporária, possa ser afastado, de modo a permitir a redução dos salários e da jornada de trabalho mesmo sem negociação coletiva, amanhã, de forma coerente, ele terá de respaldar, por exemplo, a prisão sem o devido processo legal diante da situação da calamidade pública. Ou mesmo a condenação por tribunal de exceção. Isso porque o direito constitucional não tem hierarquia. A Constituição tanto protege a liberdade quanto a redução do salário somente mediante negociação coletiva, em mesmo grau. Um direito constitucional não vale mais do que o outro. Podem até ser ponderados, mas não eliminados.

Basta imaginar a eventual decretação do lockdown (paralisação de todos serviços e fechamento dos estabelecimentos empresariais, salvo os restritamente essenciais) e o seu desrespeito. Nesse caso, uma eventual MP (ou lei ordinária) poderá estabelecer que, diante da calamidade pública e do estado de lockdown, quem desrespeitar essa medida poderá ser privado de sua liberdade sem o devido processo legal. Ou ser processado por tribunal de exceção. Pode?

Em resumo, afastar a incidência das regras dos incisos VI e XIII do artigo 7º da Constituição, a pretexto de se estar diante de uma situação de calamidade pública, amanhã também justificará, por exemplo, a retirada da liberdade da pessoa, obrigando-a a prestar serviços de forma gratuita, como verdadeiro escravo, ou sua prisão sem o devido processo legal ou por condenação por tribunal de exceção. Ou o fim do sigilo das comunicações, etc.

Ou, ainda, a possibilidade de, por acordo individual, a mulher, o negro, o deficiente, o idoso e o homossexual pactuarem receber salário inferior ao do homem branco, hétero, sem deficiência e menor de 60 anos, afastando a aplicação do direito fundamental social trabalhista à igualdade salarial assegurado nos incisos XXX e XXXI do artigo 7º da CF, ainda que em caráter temporário.

E cabe lembrar: a garantia de redução da jornada e dos salários somente mediante negociação coletiva visa a proteger o trabalhador diante de sua vulnerabilidade. E essa regra mais se revela pertinente em momentos de maior vulnerabilidade do trabalhador (quando corre maior risco de perder o emprego), pois na bonança (do ponto de vista do empregado) ela tende a se diluir.

Nossos direitos e liberdades constitucionais, pois, estão nas mãos do STF. O que ele decidir agora poderá ser um sinal do que nos espera eventualmente amanhã, mesmo sem decretação do estado de defesa e de sítio. Imaginem quando diante do estado de sítio!

Autores

  • é desembargador do Trabalho na Bahia (TRT 5ª Região), professor de Direito na Universidade Católica do Salvador (UCSal) e pós-doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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