Opinião

A saúde suplementar em tempos de crise: a relação entre público e privado

Autores

  • Marcus Vinicius Macedo Pessanha

    é advogado do Nelson Wilians Advogados e especialista em Direito Público Administrativo e Regulatório.

  • André Menescal Guedes

    é advogado e sócio-diretor do Nelson Wilians & Advogados Associados à frente dos Estados do Maranhão e Ceará. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. LLM em Direito Corporativo pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC).

16 de abril de 2020, 14h24

Em tempos de expansão da pandemia da Covid-19, com a aceleração dos casos de infectados e óbitos, os cuidados com a saúde se tornam prioritários e as medidas públicas de contenção e combate precisam ser revisitadas e modificadas frequentemente, às vezes mais de uma vez no mesmo dia.

A saúde complementar, por sua característica híbrida de atividade privada dotada de notório interesse público, termina por ser um dos segmentos mais afetados nestes momentos, uma vez que suas unidades de atendimento, seus hospitais, laboratórios, clínicas e profissionais como médicos, enfermeiros e auxiliares em geral, bem como toda a cadeia produtiva de insumos, costumam ser objeto de especial atenção do poder público. 

Sabermos, portanto, o papel da iniciativa privada em meio a questões delicadas, tais como as enfrentadas atualmente, é o desafio encarado diariamente tanto pelas autoridades públicas, que têm agido muitas vezes de forma unilateral, quanto dos empresários, que precisam conhecer os limites da legalidade para posicionamento atual ou futuro.   

A Constituição Federal define que a saúde é direito de todos e dever do Estado, trazendo mais uma entre tantas obrigações diante dos cidadãos que têm sido historicamente negligenciadas e de difícil universalização. Aliás, mesmo o atendimento adequado em padrões mínimos de saúde e salubridade na rede pública, na maior parte dos casos, não é disponibilizado à população, o que mostra que há um longo caminho a ser percorrido e explica o alcance dos planos privados de saúde no país.

A saúde suplementar, dessa forma, vem conquistando cada vez mais espaço desde seu marco legal, estabelecido pela Lei nº 9.656/1998, não só pela quantidade de serviços realizados, mas, principalmente, pela percepção dos usuários da boa qualidade dos atendimentos disponibilizados.

Dados da Agência Nacional de Saúde (ANS) de março de 2020 indicam que o país possui aproximadamente 48 milhões de beneficiários de planos de assistência médica privada, o que mostra a essencialidade da estrutura dessas prestadoras de serviços que, com suas atividades, suprem importante lacuna no sistema de saúde brasileiro.

Com vistas a atender padrões mínimos de cobertura estabelecidos pelo órgão regulador, as operadoras de planos de saúde precisam firmar contratos com hospitais, clínicas e laboratórios, ou então construir sua rede própria de atendimento. Dessa maneira, a quantidade de leitos e de insumos é objeto de planejamento dos gestores das operadoras de forma a atender seus beneficiários, e qualquer superveniência nesse cenário, como as trazidas por grandes epidemias e desastres em larga escala, pode não só romper a equação econômico-financeira da operação como também impedir que os destinatários originais, clientes dos planos, sejam devidamente atendidos.

O momento é propício, inclusive, para permitir a movimentação da reserva técnica das operadoras de planos de saúde para auxiliar o segmento neste momento de utilização excepcional e imprevisível por parte dos beneficiários, com vistas a viabilizar a liquidez necessária ao enfrentamento à Covid-19. É preciso, contudo, que as operadoras tenham especial atenção com as eventuais contrapartidas e compromissos que venham a ser exigidos pelo órgão regulador, de forma a evitar futuros problemas jurídicos e a aplicação de sanções.            

Temos, então, um interessante quadro, em que o Estado é o garantidor da saúde pública, mas o segmento de operadoras de saúde suplementar atua como verdadeira válvula de escape do sistema, o que nos coloca em uma zona de aparente conflito, sendo indispensável buscar a conciliação entre o interesse público em um cenário de emergência e risco à vida e a manutenção das operadoras de planos de saúde e hospitais privados.    

No momento em que respiradores, máscaras cirúrgicas e leitos começam a rarear na rede pública de saúde, União, estados e municípios se voltam justamente para a iniciativa privada no afã de suprir suas necessidades, o que nos traz à mente diversos institutos do Direito Administrativo comumente invocados nos casos de tragédias e de calamidade pública, como a requisição, por exemplo.

A Lei nº 13.979/2020, que trata das medidas a serem adotadas no enfrentamento à expansão da Covid-19, em seu artigo 3º, VII, prevê a possibilidade da requisição de bens e serviços, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa.

Tenhamos em mente de plano que em um Estado Democrático de Direito a noção de que o interesse de muitos se sobrepõe à necessidade de poucos, ou mesmo a de um único indivíduo, não deve ser encarada em sua literalidade aprioristicamente.

O confisco unilateral de insumos hospitalares das operadoras de planos de saúde levará a uma situação no mínimo inusitada: ao procurar sua rede credenciada, os beneficiários desses serviços podem se ver desassistidos pelo desabastecimento da rede privada e ir engrossar as filas dos hospitais de campanha, o que certamente não atende às políticas de enfrentamento à expansão do vírus. É preciso parcimônia e planejamento de macrovisão nesse sentido.

O caminho da contratação bilateral nos termos da farta legislação existente deve sempre ser a primeira opção, com a preservação das expectativas de direito e da segurança jurídica. Em sendo o caso de extrema gravidade, a desapropriação com pagamento prévio de indenização deve também ser considerada, e somente nas hipóteses de urgência inafastável com riscos à vida é que a requisição sem qualquer indenização prévia deve ser adotada.

Não podemos permitir que a discricionariedade administrativa seja vestida com o manto do arbítrio e da ilegalidade, sendo o dever do poder público e da iniciativa privada preservar os valores mais importantes de nossa República, como a segurança jurídica e as seguranças constitucionais.

Autores

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    é advogado, sócio coordenador do Núcleo de Direito Administrativo, Regulatório e Infraestrutura do Nelson Wilians & Advogados Associados.

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    é advogado e sócio-diretor do Nelson Wilians & Advogados Associados à frente dos Estados do Maranhão e Ceará. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. LLM em Direito Corporativo pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC).

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