Direito Civil Atual

Covid-19: impactos do fechamento do comércio sobre os alugueis

Autor

  • Luiz Carlos de Andrade Jr.

    é advogado; professor Doutor de Direito Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie; doutor em Direito Civil pela USP; pós-doutorando em Direito Civil na USP; membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

16 de abril de 2020, 8h57

1. A obrigação de pagar alugueres no PL 1179
O Projeto de Lei nº 1179 (“PL 1179”) previa, em sua redação original, que os locatários residenciais que sofressem diminuição econômico-financeira no contexto da pandemia de Covid-19 poderiam “suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueres vencíveis a partir de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020” (art. 10). Em ágil tramitação no Senado Federal, foram-lhe propostas 88, dentre as quais se encontra a de número 28, de autoria do Senador Acir Gurgacz, que pretendia estender aos locatários comerciais o mesmo direito. Ao fim de sua trajetória no Senado Federal, o PL 1179 teve excluído o citado dispositivo, de modo que a nenhum dos locatários, residenciais ou comerciais, se asseguraria o direito à moratória.

A propósito da matéria, em seu parecer sobre o PL 1179 (Parecer nº 18, de 2020), a relatora, Senadora Simone Tebet, consignou, dentre as justificativas para a supressão do art. 10, que “o ordenamento jurídico já dispõe de ferramentas para autorizar, a depender do caso concreto, a revisão contratual, a exemplo dos arts. 317 e 478 do Código Civil, ou de dispositivos específicos da Lei do Inquilinato. Tal diagnóstico lança o convite à reflexão sobre as normas vigentes candidatas a solucionar problemas que a locação suscitará nesta conturbada época que vivenciamos.

2. Descabimento de moratória nos contratos de locação, à luz da legislação vigente; identificação de solução alternativa
A referência do Parecer 18 aos arts. 317 e 478 do CC alude às regras de revisão e resolução contratual fundadas na desproporção entre as prestações e na onerosidade excessiva, derivadas de fatos imprevisíveis e extraordinários1. A consideração destas normas oferece um promissor caminho para o “achamento” de soluções pertinentes às tensões referentes a contratos de locação residencial e comercial não atingidos pelo fechamento do comércio. Nestes casos, é razoável supor que o núcleo do debate consistirá, no mais das vezes, na apreciação da impossibilidade financeira do locatário associada à perda momentânea de proventos e receita, capaz de tornar insuportável o dever de pagar o aluguel.

Por outro lado, em se tratando de locações comerciais de imóveis que tenham sua utilidade eliminada ou reduzida pelo fechamento do comércio, não se afigura necessário nem pertinente recorrer àqueles dispositivos em linha de partida. O fechamento do comércio, determinado pelo Estado, é hipótese de caso fortuito ou força maior – mais especificamente, o que os administrativistas designam fato do príncipe2. A disciplina do caso fortuito ou força maior é diversa da aplicável ao desequilíbrio contratual ocasionado por fatos imprevisíveis, pois no primeiro caso, a liberação do devedor decorre de impossibilidade absoluta, ao passo que, no segundo, a exoneração liga-se à impossibilidade relativa3

Tome-se como mote, para o exame do tema, a recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (AI 2063701-03.2020.8.26.0000), em que se concluiu que o locatário permaneceria obrigado a pagar os alugueres, a despeito da impossibilidade de exercício do comércio, porque não caberia ao Judiciário determinar a aplicação da moratória. É interessante notar que o julgador invocou, como reforço argumentativo, o fato de ter o art. 10 do PL 1179 sido retirado deste durante sua tramitação no Senado Federal, “justamente por não ser conveniente, nem compatível com o sistema jurídico”.

Quanto ao mérito da decisão, em vista do caso concreto, ela se mostra irretocável. Isto, pois o pedido formulado pelo o autor foi o de que fosse deferida cautelar com o fim de “suspender pelo prazo mínimo de quatro meses (…) a exigibilidade dos aluguéis (…), a serem então pagos quando forem normalizadas as atividades da empresa”. Tal pedido não possui base legal, pois os arts. 317 ou 478 do CC contemplam, nos respectivos consequentes normativos, a correção do valor da prestação e a resolução do contrato; e, por outro lado, a dilação da exigibilidade da prestação, como a decorrente do art. 396 do CC, não se concilia com as hipóteses de inadimplemento absoluto (tal qual a ocasionada pelo fechamento do comércio, como detalhado a seguir).

Isto não quer dizer que o locatário que teve suas atividades impedidas ou prejudicadas pelo fechamento do comércio deve necessariamente pagar os alugueres. A bem se ver, o locatário teria um direito mais amplo que o de moratória; em vez de postergar o pagamento dos alugueres, poderia não os pagar em absoluto, ou pagá-los em porção reduzida. Senão, veja-se.

3. O inadimplemento nas locações impactadas pelo fechamento do comércio
Pelo contrato de locação, o locador se compromete, mediante retribuição, assegurar o uso e gozo de coisa infungível ao locatário (art. 565 do CC). Em se tratando de locação comercial, a Lei de Locação (Lei nº 8.245/91) determina ser dever do locador “entregar ao locatário o imóvel alugado em estado de servir ao uso a que se destina”; “garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado” (art. 22, inciso II); bem como “manter, durante a locação, a forma e o destino do imóvel” (art. 22, inciso III). Percebe-se que a finalidade (residencial ou comercial) integra-se à causa típica do contrato – que veicula naturalmente um acordo quanto a um fim (“Zweckvereinbarung”); o atendimento da finalidade incorpora-se ao contrato porque constitui um ponto de referência (“Bezugspunkt”) do programa contratual4, que se traduz pelo dever, do locador, de “entregar”, “garantir” e “manter” as condições de possibilidade da concretização do fim residencial ou comercial5.

Disto decorre, no contexto do fechamento do comércio, que antes do locatário, é o locador que comete o inadimplemento; ele falha ao “garantir” o cumprimento da função comercial do imóvel. Este inadimplemento é fruto da impossibilidade fática da prestação, resultante do caso fortuito ou força maior. Em tal hipótese, em que não vislumbra culpa do devedor, este não responde por perdas e danos (art. 393 do CC); o inadimplemento, todavia, é efeito da impossibilidade – o chamado inadimplemento fortuito6 e perdura enquanto não for possível, ao locatário, usar o imóvel para a finalidade que lhe atribui o contrato.

Dito inadimplemento não se manifestará de forma homogênea. Haverá casos em que se tratará de inadimplemento total (ex. lojas de shopping centers), pois a impossibilidade será total (i.e. o imóvel perderá completamente a aptidão de ser empregado para o comércio). Em outras instâncias, o inadimplemento será parcial, pois a impossibilidade será parcial (ex. restaurantes limitados a delivery). Em todo caso, seja total ou parcial, o inadimplemento será absoluto, pois a impossibilidade da prestação será definitiva – não temporária (designa-se transitória a impossibilidade definitiva que perdura por dado lapso temporal, não se confundindo com a temporária, que importa mero diferimento do cumprimento devido)7. Porquanto o contrato de locação seja de execução continuada, a impossibilidade em certo tempo é necessariamente definitiva, pois, em contratos dessa categoria, a prestação se vincula continuamente ao seu tempo; e o tempo que passou, não voltará.

4. Insubsistência da obrigação de pagar alugueres nas locações impactadas pelo fechamento do comércio
No cenário assim delineado, algumas formulações mostram-se consistentes, e seguem rascunhadas (respeitada a limitação do espaço reservado a este texto):

  1. diante do inadimplemento do locador, a falta de pagamento dos alugueres não configura mora do locatário, como decorrência do artigo 476 do CC – exceção de contrato não cumprido8 (admitindo-se a aplicação da exceção também na hipótese de inadimplemento parcial – exceptio non rite adimpleti contractus9);

  • em se tratando de inadimplemento total, a obrigação do locador de assegurar a utilidade comercial do imóvel deve reputar-se extinta, a teor do art. 248 do CC; diante disso, não se justificará exigir do locatário o pagamento da contrapartida, por conta do rompimento (transitório) do sinalagma funcional e da comutatividade do contrato, a ensejarem a insubsistência da própria obrigação de pagar os alugueres10; e, subsidiariamente, pela incidência do princípio da conservação estática dos patrimônios (vedação ao enriquecimento sem causa)11;

  • tal extinção da obrigação do devedor justificaria a resolução do contrato (art. 475 do CC12). Tal medida, contudo, não seria mandatória, especialmente por se tratar a locação de contrato de trato sucessivo. Dessa feita, mantida a vigência do contrato, permaneceria o locador impedido de exigir o pagamento dos alugueres, pela incidência da exceção de contrato não cumprido (que se manifestaria, nesta peculiar situação, como exceção substancial peremptória13), e pelo rompimento (transitório) do sinalagma funcional;

  • em se tratando de inadimplemento parcial, também poderia o locatário resolver o contrato, pois “[o] credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa” (art. 313 do CC). No entanto, se o locatário resigna-se, passando a aproveitar parcialmente o imóvel, tem seguimento o contrato, parcialmente inadimplido em razão da impossibilidade parcial da obrigação do locador. O locatário permanece, pois, obrigado a pagar a retribuição, já não em sua integralidade. Não se cuidará, nesta sede, de correção do valor da prestação em razão de desproporção superveniente (art. 317 do CC), pois não se vislumbra aí discrepância entre o valor potencial e o atual da prestação (do locatário); mas de diminuição quantitativa do próprio objeto da prestação (do locador), e de correspondente e proporcional extinção da obrigação do locatário14. Desse modo, a redução do valor dos alugueres terá fundamento seguro na conjugação dos artigos 248 e 476 do CC.

Pelo exposto, confirma-se que o direito vigente já oferece soluções para os problemas da locação relativos ao fechamento do comércio. A moratória, de fato, poderia ser criada, mas não precisa sê-lo. No contexto da pandemia de Covid-19, os locatários comerciais impactados pelo fechamento do comércio não têm a obrigação de pagar os alugueres: em absoluto, se a inutilidade comercial do imóvel é total; parcialmente (e aqui entrará em cena, em cada caso, a prudência do juiz para a concretização da fórmula abstrata), se a inutilidade comercial do imóvel for parcial.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ).


1 Confira-se a obra definitiva sobre o tema: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos – Autonomia da Vontade e Teoria da Imprevisão. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

2 Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.324.

3 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit., p. 100.

4 Cf. PIRES, Catarina Monteiro. Contratos – I. Perturbações na Execução. Coimbra: Almedina, 2019, p. 17.

5 Cf. VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada – Doutrina e Prática. São Paulo: Atlas. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597023206/. Accesso em: 09/04/2020.

6 Cf. GOMES, Orlando. Op. cit., p.172.

7 Sobre a distinção entre impossibilidade “temporária” e “transitória”, v. GOMES, Orlando. Op. cit., p.175.

8 Cf. a respeito do tema: MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Dos Contratos em Geral (arts. 421 a 480). In: JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Antônio (coord.). Comentários ao Código Civil. V. 5. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 432 ss.

9 GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 110.

10 Cf. PIRES, Catarina Monteiro. Op. cit., p. 48.

11 A correlação da hipótese com a vedação ao enriquecimento sem causa é bem ilustrada pelo art. 795º do Código Civil Português:

ARTIGO 795º (Contratos bilaterais)

1. Quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa.

(…)”.

12 VENOSA, Silvio de Salvo (Op. cit.) da hipótese sob a perspectiva da inidoneidade superveniente do objeto.

13 Sobre a teoria e classificação das exceções, v. RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Exceções no Direito Civil: Um conceito em busca de um autor. In: MIRANDA, Daniel Gomes et. al (coord.). Prescrição e Decadência. Estudos em Homenagem ao Professor Agnelo Amorim Filho. Salvador: Jus Podium, 2013, pp.411-422.

14 VENOSA, Silvio de Salvo (Op. cit.) admite expressamente tal solução, aproximando, analogicamente, do contrato de locação, a disciplina dos vícios redibitórios.

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