Opinião

A pandemia do coronavírus e a Lei nº 13.982/20

Autor

  • Marcelo Monteiro Bonelli Borges

    é procurador federal e mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com especialização em Direito Tributário pela UFRN e especialização em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes.

16 de abril de 2020, 19h04

Na condição de país em desenvolvimento, o Brasil se depara com a grave crise imposta pelo coronavírus, provavelmente o maior desafio socioeconômico desde a Segunda Guerra Mundial. Poucos dias foram suficientes para evidenciar o quão frágil é a aparência de normalidade que recamava sobre as sociedades ao redor do mundo.

Países com relativo bem-estar social já sofrem com a crise sanitária e conseguem perceber grave recessão econômica cada vez mais próxima. O cenário se revela ainda mais desafiador em nações pobres e desiguais como o Brasil.

Após um período de análise do cenário externo e de ponderação das medidas que deveriam ser adotadas para controle dos casos de Covid-19, muitos estados e municípios foram levados a adotar medidas de restrição da circulação de pessoas. Logicamente, essa medida resulta em limitação ou temporária suspensão de atividades econômicas. Ante a massa de informais, desempregados e pessoas socialmente vulneráveis, os políticos foram demandados a tomar medidas a garantir minimamente a subsistência dessas pessoas.

Nesse contexto, que se (re)escreve a cada dia, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 13.982, publicada em 2 de abril de 2020, trazendo novas regras ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), essencialmente disciplinado pela Lei nº 8.742/93 e instituindo o Auxílio Emergencial.

Antes de analisar as novas regras instituídas pela Lei nº 13.982/20, fundamental assentar o desenho normativo do benefício que já existia em nosso ordenamento jurídico.

O BPC consiste em benefício assistencial mensal no valor de um salário mínimo conferido à pessoa com deficiência ou idosa que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família [1].

Definindos os parâmetros subjetivos legais para a concessão do benefício assistencial, o artigo 20, caput e §2º, da Lei nº 8.742/93 preceitua que idoso é o indivíduo que possui 65  anos ou mais e pessoa com deficiência é aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Complementando a definição, impedimento de longo prazo para a legislação previdenciária é aquele que produz efeitos pelo prazo mínimo de dois anos, nos termos do artigo 20, §10, da lei nº 8.742/93. 

Já o parâmetro objetivo escolhido pelo legislador como apto a indicar a situação de vulnerabilidade social protegida pelo BPC encontra-se estabelecido no artigo 20, §3º, inciso I, da Lei nº 8.742/93. A vulnerabilidade social protegida pelo BPC apresenta como balizamento normativo o critério de se identificar no núcleo familiar renda mensal equivalente ou menor a um quarto de salário mínimo. Esse é o quadro normativo básico do BPC.

A Lei nº 13.982/20 acresceu à Lei nº 8.742/93 o artigo 20-A, que traz a possibilidade de se elevar o critério de aferição da renda familiar mensal per capita para até meio saláriomínimo para fins de concessão do BPC.

Não se afastou a regra do um quarto de salário mínimo. O legislador trouxe a possibilidade de, temporariamente, alargar-se o critério, alcançando idosos e pessoas com deficiência que tenham em seu núcleo familiar renda mensal per capita de até meio salário mínimo.

Quantificando as frações postas, até para fins de efetiva apreensão do que está sendo estudado, tem-se que o salário mínimo atualmente vigente no Brasil é de R$ 1.045,00. Em função da nova regra estabelecida no artigo 20-A, será reconhecida vulnerabilidade econômica a ser tutelada pelo BPC ao deficiente e idoso que tenha renda per capita em seu núcleo familiar de até R$ 522,50. A regra do um quarto protege apenas as pessoas que tenham em sua renda familiar a renda de R$ 261,25.

O §1º do artigo 20-A remete à ampliação do critério a regulamento, atendidos os parâmetros normativos estabelecidos em seus incisos. Importante ressaltar que esses critérios somente se aplicam para as hipóteses de ampliação do critério de renda familiar para meio salário mínimo por pessoa. Para as situações em que se verifica renda familiar de até um quarto do salário mínimo, não há de se falar na investigação do preenchimento dos requisitos estabelecidos no artigo 20-A, §1º.

Seja pelo critério de um quarto, seja pelo critério de meio, preenchidos os requisitos para a concessão do benefício, seu valor será o mesmo, um salário mínimo. Nos termos preconizados pelo artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal, o salário mínimo é direito dos trabalhadores urbanos e rurais e deve ser suficiente para atender às necessidades vitais básicas individuais e das respectivas famílias, englobando gastos com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

Claramente, os objetivos estabelecidos no artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal ainda não foram alcançados. De acordo com o Dieese, o salário mínimo em março de 2020 deveria ser de R$ 4.483,20 [2]. De todo modo, percebe-se uma tentativa dos governos federais de viabilizar ao menos a correção do salário mínimo pela inflação, preservando o poder aquisitivo ao longo do tempo. Tímido passo no enfrentamento da miséria social.

Fixados os principais pontos das alterações legislativas implementadas no Benefício de Prestação Continuada pela Lei nº 13.982/20, apresenta-se para análise o Auxílio Emergencial, essencialmente disciplinado no artigo 2º.

Dois são os objetivos fundamentais do Auxílio Emergencial. O primeiro deflui da mera leitura do artigo 2º: tutelar os trabalhadores economicamente vulneráveis aos efeitos da pandemia do coronavírus, garantindo a quantia de R$ 600,00 por três meses. O Estado brasileiro se faz presente e, em algum nível, auxilia financeiramente uma considerável parcela do povo brasileiro.

O segundo objetivo demanda uma perspectiva econômica do cenário posto. Em tempo de grave retração econômica, o Estado injetará dinheiro na economia, permitindo que um elevado número de pessoas possa arcar com despesas inadiáveis (alimentação, moradia e saúde, entre outros) e garantindo a mínima manutenção de empresas (e empregos) responsáveis pela prestação de serviços à população amparada pelo Auxílio Emergencial.

Para que o Auxílio Emergencial seja concedido, o artigo 2º da Lei nº 13.982/20 aponta requisitos. Deverá o trabalhador: I) ser maior de 18 anos;  II) não ter emprego formal ativo; III) não ser titular de benefício previdenciário ou assistencial ou beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, com a ressalva, em determinadas hipóteses estabelecidas na lei, do Bolsa Família; IV) ter renda mensal per capita de até meio salário mínimo ou renda familiar mensal total de até três salários mínimos; (V) não ter recebido, no ano de 2018, rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70; e VI) exercer atividade na condição de microempreendedor individual (MEI), contribuinte individual ou trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Caso não esteja previamente incluído no CadÚnico, será possível autodeclaração.

Minudenciando, o legislador aponta que o recebimento de Auxílio Emergencial está limitado a dois membros do mesmo núcleo familiar (§1º) e substituirá o Bolsa Família nas hipóteses em que for mais vantajoso (§2º).

Levando em consideração a realidade das mães que, sozinhas, são responsáveis pelo sustento da família [3], a Lei nº 13.982/20 estabelece que mulheres provedoras de família monoparental poderão receber duas cotas de auxílio (§3º).

O Auxílio Emergencial é restrito ao trabalhador informal, excetuando, portanto, nos termos do §5º, os empregados com contrato de trabalho nos termos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e todos os agentes públicos, independentemente da relação jurídica, inclusive os ocupantes de cargo ou função temporários ou de cargo em comissão de livre nomeação e exoneração e os titulares de mandato eletivo.

Uma crítica que pode ser feita à Lei nº 13.982/20 reside no fato de não ter contemplado expressamente o trabalhador rural entre os beneficiários do Auxílio Emergencial. Por abarcar um segmento da população mais humilde e mais exposto a problemas socioeconômicos, seria de se presumir o alcance do benefício ao povo do campo. De todo modo, ainda que seja possível construir interpretação a viabilizar a concessão do auxílio aos rurais, observa-se no Congresso Nacional a tramitação do Projeto de Lei nº 873/20, voltado a inserir na Lei nº 13.982/20 o trabalhador rural entre os protegidos. Trata-se de expediente que, definitivamente, afastará de vez quaisquer dúvidas sobre a possibilidade de concessão do Auxílio Emergencial aos trabalhadores rurais.

A renda familiar mensal é parâmetro importante para a definição de concessão do Auxílio Emergencial. A lei estabelece que a renda per capita na família deve ser de até meio salário mínimo e não poderá ultrapassar, no consolidado, o equivalente a três salários mínimos. Em complemento, os §§ 6º e 7º informam que a renda familiar é o somatório dos valores mensalmente obtidos pelos respectivos membros moradores de um mesmo domicílio, não incluídos os valores percebidos em programas de transferência de renda federal.

Dados os desenhos institucionais do Benefício de Prestação Continuada e do Auxílio Emergencial, difícil não identificar nessas prestações estatais elementos que remetam ao conceito de Renda Mínima (ou Básica) Universal, como se percebe também no Bolsa Família.

A ideia de Renda Mínima Universal foi tornada popular por Milton Friedman no clássico livro do liberalismo "Capitalismo e Liberdade". Figuraria, basicamente, como um imposto de renda negativo: pessoas que auferissem renda inferior a um prefixado valor receberiam uma transferência de dinheiro do Estado [4]. Com os valores transferidos, o cidadão teria condições de custear gastos mínimos de subsistência, de modo a poder afastar situação de vulnerabilidade extrema. Com o tempo, a variar de acordo com cada indivíduo, a pessoa conseguiria uma inserção no mercado de trabalho e passaria a se sustentar, independentemente de prestação financeira direta feita pelo Estado.

Internacionalmente, a Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE) traz a renda básica como um dos benefícios sociais em espécie e como um dos instrumentos a se alcançar bem-estar social [5]. Os últimos vencedores do prêmio Nobel de Economia, Esther Duflo e Abhijit Banerjee, pesquisam sobre as experiências de Renda Básica ao redor do mundo, em especial em países subdesenvolvidos. Os mecanismos de transferência de renda são apontados como instrumentos estatais desburocratizados de enfrentamento à pobreza [6], com significativos melhoramentos sociais [7].

No Brasil, identifica-se diploma legal especificamente voltado à instituição de uma "renda básica de cidadania", qual seja a Lei nº 10.835/2004, pendente de regulamentação há mais de 16 anos. Nos termos do seu artigo 1º, a renda universal consistiria em direito a um benefício monetário, pago pelo Poder Executivo Federal, independentemente da condição socioeconômica do beneficiário. Destaca-se da lei brasileira o caráter universal do benefício, em divergência à perspectiva de imposto de renda negativo idealizado por Friedman.

Em que pese referida lei não ter sido regulamentada até os dias atuais, o Brasil tem no Bolsa Família o mais conhecido programa de inclusão social, que, por consistir em transferência direta de renda a pessoas em situação de extrema pobreza, representa claro avanço na concretização da ideia de Renda Mínima Universal na sociedade brasileira.

Retornando ao Auxílio Emergencial, as estimativas do governo são de que até 55% da população brasileira poderá ser amparada pelo benefício, ao custo estimado de R$ 99,6 bilhões [8]. Considerando que mais da metade da população brasileira está sendo considerada em situação de vulnerabilidade e desprovida de recursos para se manter pelos próximos meses, evidencia-se ainda mais o desafio para o futuro no combate à desigualdade e à não inserção social, tão fortemente incrustados em nossa sociedade.

Os problemas econômicos, sanitários e sociais impostos pelo coronavírus são imensos. Amparar os mais vulneráveis e auxiliar no funcionamento da economia em momentos como o atual são tarefas que se impõem ao Estado brasileiro. O Benefício de Prestação Continuada e o Auxílio Emergencial, certamente, representam uma correta atuação estatal na promoção de digna subsistência dos cidadãos brasileiros. A esperança por dias melhores, em que brasileiros independam de prestações pecuniárias estatais para subsistir, não pode afastar a necessidade de se olhar e enfrentar a realidade que se impõe.

BIBLIOGRAFIA
AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 12ª Edição. Salvador: JusPodivm, 2020.

BANERJEE, Abhijit. DUFLO, Esther. Good Economics for Hard Times: Better Answers to Our Biggest Problems. – New York: Hachette Book Group, 2019.

BANERJEE, Abhijit . NIEHAUS, Paul. SURI, Tavneet. Universal Basic Income in the Developing World. Disponível em: https://www.nber.org/papers/w25598.pdf  Acesso em 09 de Abril de 2020

FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade. São Paulo: Editora LTC, 2014.

 


[1] AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 12ª Edição. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 40.

[2] Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html Acesso em 09 de abril de 2020.

[3] De acordo com o IBGE (Censo Demográfico de 2010), 37,30 % das famílias brasileiras apresentam mulheres como responsáveis. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0,43,432220,432360,432345,431550,430690,430930&cat=128,-15,-16,55,-17,-18&ind=4704 Acesso em 09 de Abril de 2020.

[5] Disponível em: http://www.oecdbetterlifeindex.org/pt/quesitos/income-pt/ Acesso em 09/04/2020.

[6] DUFLO, Esther. BANERJEE, Abhijit. Good Economics for Hard Times: Better Answers to Our Biggest Problems. – New York: Hachette Book Group, 2019. p. 279.

[7] BANERJEE, Abhijit . NIEHAUS, Paul. SURI, Tavneet. Universal Basic Income in the Developing World. Disponível em: https://www.nber.org/papers/w25598.pdf Acesso em 09 de Abril de 2020.

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