Opinião

A ética maquiavélica do magistrado penal

Autor

  • Paulo Tamer Junior

    é advogado criminal em São Paulo e Barcelona especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e especialista em Tribunal do Júri.

15 de abril de 2020, 7h02

Em razão da carência de autoconhecimento filosófico dos magistrados penais no Brasil e na Espanha, estes aderem à concepção de ética social de Maquiavel em lugar da proposta jusnaturalista de conduta moral do judicante. Isso se nota a partir da postura jurisprudencial brasileira com relação ao reconhecimento pessoal de acusados e da espanhola, no que tange à possibilidade de intervenção cirúrgica no corpo de suspeitos.

Importa refletir a razão pela qual intelectuais, em especial juristas, aderem a ideias politicas sem tentativa de reflexão sobre sua gênese ou justificação, tais como a de que o presente reproduz o passado, que por sua vez repete-se no futuro. Essa desídia produz nefastos efeitos como a imbricação de concepções éticas de natureza maquiavélica no pensamento dos magistrados penais, levando-os a macular direitos humanos fundamentais?

Segundo Eric Voegelin, Maquiavel em seus "Discursos" elenca princípios ao estudo da política, sendo o primeiro deles a "legitimidade de refletir o presente à luz do passado", haja vista a constância das paixões humanas e suas consequências, as quais conformam o caráter politico da sociedade na história.

O florentino supôs repetições no curso da história causadas pela invariabilidade da natureza humana, pois, considerando "que os homens têm e tiveram sempre as mesmas paixões, necessariamente produzirão o mesmo efeito", assim "todos os acontecimentos posteriores adquirem a natureza de um déjà vu, ao passo que o modelo antigo" em especial a república romana  "se torna um paradigma mítico do qual acontecimentos mais recentes são a ‘repetição’. Quem quiser ver o que vai ser, tem de considerar o que foi; pois todas as coisas do mundo, em todos os tempos, harmonizam-se com seu equivalente na Antiguidade'". Isso porque para Maquiavel a natureza do homem "é parte da natureza da sociedade política na história". [1]

Diferente dos preconceitos que obscurecem a obra de Maquiavel, ela não é amoral, nem antimoral, mas defende "um conjunto de princípios espirituais" [2], segundo Morse e Thompson. Ele reconhece ser inerente à existência humana a ocorrência de conflito de valores e, dentro desse contexto, qualquer moral espiritual alcançará a "ideia platônica de que praticar o mal é pior do que sofrê-lo".

O problema prático desse platonismo, segundo Voegelin, é que, quando transformado em regra de conduta, põe em risco a realização de outros valores da existência humana, como a própria existência de outrem, da comunidade ou dos "valores civilizacionais realizados na comunidade"[3]

Por outro lado, entendem os jusnaturalistas, como o professor Frederico Bonaldo, que a escolha de virtudes a serem desempenhadas sob o critério de "simpatia, conveniência ou propensão" impede o judicante de "adquirir a virtude da prudência", a qual possibilita o discernimento dos meios à realização da "ação moralmente boa em sentido pleno". [4]

Entendendo que, para o adequado desempenho da prestação jurisdicional, o juiz precisa da aquisição das virtudes morais, "porque somente quando elas estão presentes no seu aparato racional-volitivo-afetivo, e em conexão recíproca, é que aperfeiçoam a razão prática de seu possuidor, sendo este o único modo de o juiz aferir e proferir o justo nas decisões que toma"[5]

Para Vilanova, "a judicatura se encontra entre aqueles trabalhos que 'não significam meros empregos públicos', mas 'são formas interiores de vida, não simples ocupações das quais nos despedimos tranquilamente depois de cumpridas, ser juiz representa na vida individual o itinerário permanente, a existência mesma num caminho de que não se desvia'". [6]

Nessa esteira, ao que parece, comungam da mesma tábua de valores Maquiavel e jusnaturalistas contemporâneos, apresentando contraste apenas na categoria da adequabilidade da postura prática, pois Voegelin aponta que, para Maquiavel, a não retaliação diante de um ataque não será laureada "pelo refinamento espiritual de sua moralidade em oferecer a outra face", mas amaldiçoada "com justiça, por sua irresponsabilidade criminal"  [7]. Logo, enquanto para o florentino mostra-se necessária a seleção subjetivo-contingencial, para Bonaldo a escolha de virtudes, em especial sob o prisma de critérios subjetivos, acaba por criar intransponível barreira ao juiz na aquisição da justa prudência (juris-prudência).

Analisando o comportamento jurisprudencial das cortes penais no Brasil e na Espanha, é possível extrair, em termos gerais, comportamento mais subsumido ao modelo ético maquiavélico do que ao postulado por jusnaturalistas. A título de análise casuística, aponta-se a sistemática não aplicação de dispositivos legais ordenadores como as regras ao reconhecimento pessoal do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) no caso brasileiro e a possibilidade de intervenção cirúrgica no corpo de suspeitos na Espanha, com fulcro no artigo 326 da Ley de Enjuiciamiento Criminal (LECRIM).

No caso brasileiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) diz ser firme no entendimento de que a inobservância das formalidades legais para o reconhecimento pessoal do acusado não enseja nulidade por não se tratar de exigência, apenas recomendação; portanto, é válido o ato quando realizado de forma diversa da prevista em lei. [8]

Além de ser contra legem, os acórdãos não atentam à virtude da prudência, já que os passos estabelecidos no texto do dispositivo mencionado não foram eleitos a esmo pelo legislador, mas atendem, em caráter mínimo, às experiências acadêmicas. Essas experiências tiveram como escopo a demonstração da falibilidade probatória do reconhecimento pessoal de acusados, bem como a busca de meios aptos à redução da margem de erros. Portanto, mister o atendimento literal daquelas etapas.

Nesse sentido, pode-se citar o estudo de Buckhout analisado pelos professores Santiago Real Martinez, Francisca Fariña Rivera e Ramon Arce Fernandez  [9], no qual 141 estudantes presenciaram roubo simulado, os quais sete semanas depois foram chamados a reconhecer os assaltantes através de seis fotografias. 60% das testemunhas realizaram identificação incorreta, sendo que, destes, 40% identificaram como roubador um inocente espectador presente na cena do crime simulado.

Outra análise daqueles professores refere-se ao estudo de Malpass e Devine, no qual foram chamadas pessoas que testemunharam um crime simulado a reconhecer seu possível autor, sendo informadas de que este provavelmente estava presente, quando na verdade não estava. Nesse cenário, 68% reconheceu o agressor erroneamente, já que este estava ausente quando tinham a opção de a ninguém reconhecer. Todavia, ao saberem que o suspeito possivelmente não estava entre os presentes, o índice de reconhecimento caiu para 33%.

Segundo a Constituição [10], o STJ deve garantir o cumprimento e a proteção de dispositivos de lei federal, entretanto, ao convalidar o descumprimento das formalidades essenciais ao reconhecimento de pessoas, recomenda a expressa desobediência ao texto legal.

É evidente que o posicionamento político-criminal da referida corte busca resguardar valores comunitários em detrimento de virtudes necessárias ao bom desenvolvimento da judicatura, em especial quando o remansoso conteúdo científico aponta a falibilidade do referido meio de prova se desatendidos os parâmetros mínimos de segurança.

Não é diferente o comportamento do Tribunal Constitucional Espanhol, o qual, por meio do julgado STC 207/1996, conferiu validade a intervenções corporais de suspeitos, levando a cabo o quanto previsto no artigo 326 da Ley de Enjuiciamiento Criminal.

No bojo da referida sentencia se estabelece como possíveis intervenções: a extração do corpo humano de determinados elementos externos ou internos para serem submetidos a análise pericial e a exposição do corpo humano a radiações. O Tribunal Constitucional preocupou-se em classificar ditas intervenções autorizadas em graus de sacrifício: como leves as que não colocam em risco a saúde nem ocasionam sofrimento à pessoa afetada e graves como as suscetíveis de pôr em risco a saúde ou causar sofrimento ao investigado.

Segundo a decisão da corte ibérica, os atos têm como finalidade: a determinação do imputado e a determinação de circunstâncias relativas à comissão do fato punível ou o descobrimento do objeto do delito. O decisum macula direitos fundamentais, garantidos pelas Constituições nos Estados Democráticos de Direito, tais como: os direitos fundamentais à dignidade [11], à integridade física [12], à intimidade pessoal [13] e o direito de não declarar contra si mesmo. [14]

Os acórdãos dos tribunais espanhol e brasileiro estão em sintonia, na medida em que ambos adotam postura contra legem com vistas a garantir a operabilidade estatal em detrimento de direitos humanos fundamentais.

Portanto, ao que parece, quando diante de conflito de valores, magistrados penais de ambas as nações optam por sacrificar valores morais individuais, como prudência e justiça, em prol da suposta realização de valores comunitários, os quais não apresentam qualquer garantia de sua efetiva realização a partir de tais atos.

Assim como aderem à ideia de repetição da história por falta de anamnese, também aderem à ideia maquiavélica de justiça através do sacrifício da moralidade individual, justificando seus atos em nome de sua comunidade, a qual não se beneficia com tal postura. Diferenciando-se de Maquiavel pelo fato de que, enquanto o florentino possuía plena consciência do desregramento de tal postura, parecem os magistrados desconhecer as implicações morais de seu comportamento.

A postura seletivo-contingencial encontra terreno fértil para germinar no cenário do funcionalismo público que, tanto na Espanha quanto no Brasil, por outras razões, apresenta comportamento meramente protocolar, ao estilo florentino, ignorando questões de transcendência.

A afirmação do comportamento meramente protocolar dos magistrados em divórcio com a visão jusnaturalista do desempenho do ofício não deve indicar a ausência de consciência espiritual do ofício, porquanto, segundo Voegelin, em razão do atual declínio da "ordem cristã transcendental da existência", a virtude inerente ao portador do poder sendo a única ordem "que é experienciada como real"  "adquire proporções humano-divinas, heroicas"[15]

A atual conduta da magistratura penal brasileira e da espanhola possui espiritualidade, a qual, assim como a que Voegelin vislumbra nas obras maquiavélicas, "é um reviver do Mito da Natureza", pois não lhe falta espiritualidade, "mas não é diferenciada em sua realização transcendental"; permanece secular e "encontra sua realização" com o florescimento da virtude, prioritariamente, "na ordem da comunidade". [16]

Portanto, a ausência de anamnese e consciência transcendental do oficio da judicatura favorece a adesão à ética maquiavélica, obstruindo ou mesmo obliterando direitos humanos fundamentais.

 


[1] Machiavelli. Discorsi III.43. In: Opere, p. 257. Apud VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas, vol. IV. São Paulo: É Realizações. 2014. p. 72-73.

[2] VOEGELIN. Opus citatum. p. 16.

[3] Ibidem. p. 98.

[4] BONALDO, Frederico. Prestação jurisdicional e caráter: a interdependência das virtudes do juiz. Porto Alegre: Editora Fi. 2019. p. 184.

[5] Ibidem.

[6] VILANOVA, Lourival. O poder de julgar e a norma, In: IDEM. Escritos jurídicos e filosóficos. Vol. I. São Paulo: Axis Mundi – IBET, 2003, p. 354. Apud BONALDO. Opus citatum. p. 189.

[7] VOEGELIN. Opus citatum. p. 98-99

[8] AgRg no AREsp n. 768.850/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe de 2/2/2016

[9] REAL MARTINEZ, Santiago; FARIÑA RIVERA, Francisca e ARCE FERNANDEZ, Ramón. Reconocimiento de personas mediante ruedas de identificación. In: Psicologia e Investigación Judicial, p. 93 e seguintes. Apud LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva. 2016. p. 268. Disponível em: https://www.mpma.mp.br/arquivos/COCOM/arquivos/centros_de_apoio/caop_crim/BIBLIOTECA/Direito_Processual_Penal_2016_-_Aury_Lopes_Jr.pdf.

[10] Art. 105, III, a) da Constituição Federal de 1988.

[11] Artigo 10 da Constituição Espanhola.

[12] Artigo 15. Opus citatum.

[13] Artigo 18. Opus citatum.

[14] Artigo 24.2. Opus citatum.

[15] VOEGELIN. Opus citatum. p. 67.

[16] Ibidem. p. 100

Autores

  • Advogado Criminalista, com principal foco em Tribunal do Júri. Bacharel em Direito pela Faculdade do Pará. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

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