Opinião

Covid-19 e o dever dos planos de saúde de afastar a carência

Autores

  • Camila Carolina Damasceno Santana

    é advogada dos núcleos de Tribunais Superiores e Penal do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados e aluna do Cours de Civilisation Française de La Sorbonne em Paris França.

  • Joelson Dias

    é advogado sócio do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados (Brasília-DF) ex-ministro substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mestre em Direito pela Universidade Harvard secretário do Conselho de Colégios e Ordem dos Advogados do Mercosul (Coadem) ex-procurador da Fazenda Nacional e membro da Comissão Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da OAB e da Abradep.

  • Lucas Augusto Liberato Dairell

    é estagiário dos núcleos de Direito Penal Tribunais Superiores e Direito Eleitoral do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados.

15 de abril de 2020, 20h47

Com vistas no atual cenário mundial e a relevância que os planos de saúde exercem no Brasil, é pertinente uma análise jurídica dos recentes acontecimentos com enfoque nas diversas soluções jurídicas adotadas em um período tão excepcional.

O direito à saúde, conforme preconiza o artigo 6º da Constituição da República [1], tem por finalidade promover o bem-estar e a justiça social, reconhecendo-o como direito inerente a todos os cidadãos brasileiros e dever do Estado, que, por meio de políticas públicas, deve implementar medidas para conferir acesso universal e igualitário para a sua promoção.

Primeiro, cumpre conceituar o termo “carência”, utilizado nos contratos de plano de saúde. Segundo a ANS, "carência é o tempo que você terá de esperar para ser atendido pelo plano de saúde em um determinado procedimento"[2] Ou seja, é o tempo de espera para usufruir dos serviços oferecidos pelo plano de saúde.

Tendo em vista os fatos explicitados acima, os planos de saúde têm infringido o direito dos consumidores ao negar cobertura de atendimento nos casos de emergência e urgência, sob fundamento de que os usuários do plano de saúde estariam em prazo de carência.

Ademais, destaque-se que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se pronunciou sobre o assunto em algumas oportunidades, em geral norteando sobre a abusividade da cláusula de carência em situações emergenciais.

Outrossim, no STJ os casos de doença pré-existentes ao contrato são resguardados à análise caso a caso, até mesmo em decorrência da excepcionalidade desses casos [3].

Note-se que, devido ao crescente número de processos, a 2ª Seção de Direito Privado do STJ editou a Súmula nº 597, que dispôs que "a cláusula contratual de plano de saúde que prevê carência para utilização dos serviços de assistência médica nas situações de emergência ou de urgência é considerada abusiva se ultrapassado o prazo máximo de 24 horas, contado da data da contratação". [4]

De maneira similar, o TJ-SP, com vistas no crescente número de ações judiciais na área da saúde e a necessidade de especializar o conhecimento para melhor atender a essas demandas, criou câmaras de equipes especializadas e editou as Súmulas nº 99, 100, 101, 102, 103, 104 e 105 [5] para uniformizar o entendimento.   

Atualmente, a situação ganhou visibilidade com a pandemia da Covid-19, devido ao rápido contágio da população mundial. O cenário ganha contornos dramáticos em decorrência da falta de infraestrutura e logística para o controle da doença no país. A propósito, isso resulta em um grande número de judicializações em busca da tutela estatal para garantir os direitos já consolidados na Constituição da República, em especial o direito à saúde.

Em reportagem do dia 30 de março, foi divulgado que o país possui 1,95 leitos para cada mil habitantes, levando em consideração UTIs e instalações normais. Em contrapartida, na Itália, um dos países em que a doença demonstrou seu potencial mais catastrófico, a média de leitos para cada mil habitantes é de 3,2 [6]

Nessa senda, recentemente foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT) Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Pública do DF [7] que determinou aos planos de saúde o dever de atendimento aos seus beneficiários, especialmente para os que apresentarem sintomas relativos à Covid-19, independentemente da condição de carência.

Para tanto, o juízo da 15ª Vara Cível de Brasília utilizou como fundamento que, em situações de urgência e emergenciais, o direito à saúde é imperativo para afastar a carência, tendo em vista que a recusa de cobertura frustra o próprio sentido do negócio jurídico firmado.

Veja-se que a decisão está em consonância com os julgados aduzidos anteriormente pelo STJ e pelo TJ-SP.

Inclusive, o próprio artigo 12, inciso V, alínea "c", da Lei nº 9.656/98 [8], que dispõe sobre planos e seguros privados de assistência à saúde, determina que o prazo máximo para carência em casos de urgência e emergência é de 24 (vinte e quatro) horas.

Nesse giro, em 28/6/2001 foi julgado pelo STJ caso de relatoria do ministro Ruy Rosado Aguiar [9], um dos primeiros julgados referentes à internação de urgência provocada por fato imprevisível, e o entendimento à época foi de que o direito à saúde é imperioso em situações emergenciais. 

Em 14/11/2018, foi julgado o recurso especial nº 1.578.533, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, e decidiu-se que "em relação ao prazo de carência, igualmente invocado como fundamento para negativa de cobertura contratual pela operadora, a própria Lei 9.656/98 dispõe que nas situações de emergência o prazo máximo é de vinte e quatro horas a partir da contratação do plano de saúde". [10]

Saliente-se que no caso supracitado o plano de saúde recusou-se a autorizar o procedimento cirúrgico alegando período de carência. No entanto, o consumidor veio a óbito antes que fosse autorizado seu atendimento pelo plano de saúde.

A bem da verdade, a regra presente na jurisprudência supracitada é que o beneficiário de plano de saúde deve aguardar a carência, até mesmo para impedir que novos associados, sem aguardar um período mínimo, passem a utilizar e dispor dos serviços oferecidos pela saúde privada e sem ter contribuído com um valor mínimo para gozar do benefício contratado.

Os planos de saúde defendem a garantia da isonomia nos negócios jurídicos firmados entre a companhia de assistência de saúde e o segurado.

No entanto, destaque-se que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu que "o plano de saúde não pode limitar a cobertura de tratamento prescrito ao âmbito territorial estabelecido no contrato de prestação se serviços, quando a prescrição envolve urgência que sofre o entrave de carência de leito no âmbito territorial contratado".

Portanto, é dever do Estado garantir por meio de políticas e incentivos medidas que visem à mitigação dos danos causados pela atual pandemia.

A judicialização da saúde aparece como solução viável para atenuar a negativa de atendimento dos planos de saúde e, com o crescimento no número de casos, surge a necessidade de pacificar rapidamente esses conflitos sob pena de perecimento de vidas.

Sobre os direitos do consumidor, leciona Rosana Chiavassa que "o cidadão, já empoderado do conhecimento de seus direitos e vendo-os negados pelo Estado/Poder Delegado, encorajou-se pela efetividade dos mesmos no Judiciário". [11]

Desse modo, a negativa de atendimento aos acometidos pela Covid-19 pela rede de saúde privada é um grave risco para toda a sociedade, especialmente quando já há um plano de saúde contratado para aquela pessoa que acabará tendo de procurar a rede pública, muitas vezes perdendo um tempo precioso de tratamento e/ou até a chance de ser atendido, tendo em vista o colapso que já existe no sistema público de saúde em decorrência da pandemia da Covid-19.

Desse modo, tendo em vista a preponderância do direito à vida e a hipossuficiência dos consumidores frente às empresas fornecedoras de planos de saúde, a Justiça brasileira tem desempenhado papel relevante de continuar acolhendo as demandas dos consumidores para garantir a assistência à saúde independentemente de carência.

 


[1] CRFB/1988. Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015).

[2] Carência: período para começar a usar o plano. Disponível em: <https://www.ans.gov.br/planos-de-saude-e-operadoras/espaco-do-consumidor/carencia>. Acesso em 9.4.2020.

[3] TJSP – Agravo de Instrumento 2265460-52.2019.8.26.0000, Relator (a): Augusto Rezende, Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado, Foro de Sumaré – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 5.12.2011. Data de Registro: 6.4.2020.

[8] Lei 9.656/98. Art. 12.  São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001). V – quando fixar períodos de carência: c) prazo máximo de vinte e quatro horas para a cobertura dos casos de urgência e emergência. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001) .

[9] STJ. REsp 222.339/PB, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 28/06/2001, DJ 12/11/2001, p. 155.

[10] STJ. REsp: 1578533 SP 2016/0011915-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 13/11/2018, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/11/2018.

[11] CHIAVASSA, Rosana. Direito à Saúde: dever do Estado – Considerações sobre a judicialização do acesso à saúde nas hipóteses de doenças raras. Disponível em < https://www.interfarma.org.br/public/files/biblioteca/58-jbes-doencas-raras.pdf >. Acesso em 9.4.2020.

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