Opinião

Covid-19 e a jurisprudência do STF sobre competência legislativa municipal

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15 de abril de 2020, 17h24

Mal se inicia o ano de 2020 e o mundo é surpreendido pela pandemia causada pelo coronavírus, o que ocasionou o confinamento de parte considerável da população mundial na tentativa de evitar sua disseminação desenfreada. Atividades tidas como não essenciais foram compelidas a cerrar suas portas. No afã de salvar vidas, apenas mercados, postos de gasolina, farmácias e correlatos foram autorizados a prosseguir em atividade regular. As principais cidades do mundo ocidental ficaram com ruas vazias em respeito às instruções das autoridades sanitárias.

Na contramão do bom senso e das diretrizes da Organização Mundial de Saúde, o presidente da República do Brasil veio a público questionar a ciência e a eficácia da orientação de confinamento, exortando a população brasileira ao retorno às atividades econômicas. E, ao tresler o que dita o texto constitucional, chegou a ameaçar, "com uma canetada", editar Medida Provisória determinando a abertura do comércio .[1]  Antes mesmo da bravata, ele próprio editou decreto, [2] com suposto respaldo do artigo 84, IV, da Constituição, para "definir os serviços públicos e as atividades essenciais (…) às pessoas jurídicas de direito público interno, federal, estadual, distrital e municipal" (artigo 2º). E vale notar que a lei que dá suporte a esse decreto — a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 vincula (artigo 3º, § 1º) o presidente a somente determinar medidas baseadas em evidências científicas e em análises sobre informações estratégicas em saúde, limitadas no tempo e no espaço. Em outras palavras, uma blindagem prévia contra "canetadas".

De todo modo, em outro vértice da federação, não são poucos os prefeitos que passaram a editar decretos para bloquear acesso de não residentes no seu respectivo território. No município do Rio de Janeiro, o prefeito chegou a proibir, via decreto, o ingresso de idosos em agências bancárias. Governadores também vêm editando decretos impondo quarentena em municípios.

Percebe-se, pois, uma inédita e indesejada superposição de normas. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, reconheceu publicamente que "as matérias envolvidas nessa questão envolvem temas de competência da União, mas que também são de competência dos estados e municípios". [3] Passados, pois, esses compreensíveis espasmos iniciais, é chegada a hora de ajustar os devidos feixes de competências das unidades federativas.

Não há dúvida de que a caneta de um presidente da República pode muito, mas não pode tudo, pelo que convém, neste instante, repassar a leitura que o Supremo Tribunal Federal faz da Constituição Federal acerca da competência legislativa dos municípios.

E é positivo assinalar que o STF vem, em marcha batida, interpretando o artigo 30 da Constituição Federal de forma ampliativa, atribuindo aos municípios um crescente e nada desprezível rol de competências legislativas.

Como é sabido, a Constituição Federal de 1988 conferiu ao município uma inédita condição de ente federativo, atribuindo-lhe considerável porção de autonomia, trazendo a reboque prerrogativas de autoadministração e de autogoverno. 

E é curioso perceber que, das questões municipais enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal, o primeiro tema a merecer uma súmula vinculante foi justamente o que trata da competência do município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais (Súmula Vinculante n. 38). Aqui, pois, já será possível dizer que a caneta do presidente da República falhará se quiser interferir, por razões próprias e pessoais, no funcionamento do comércio municipal. Mesmo no menor município, prevalecerá o poder local, representado por seu prefeito e sua Câmara Municipal. Naturalmente, a grave situação de enfrentamento de uma pandemia mundial exige coordenação nacional e regional, notadamente em um país das dimensões do Brasil. Não poderá, por óbvio, um prefeito dispor localmente em desalinho com o interesse geral de uma região, se não encontrar amparo para justificar uma medida de interesse preponderantemente local.

A régua aqui é a letra do artigo 30, I, da Constituição Federal, que diz competir ao município legislar sobre assuntos de interesse local, valendo lembrar que a ele também compete prestar serviço de atendimento à saúde da população (artigo 30, VII), em cooperação técnica e financeira com a União e o estado. Tal cooperação, por óbvio, não confere submissão do município ao que lhe competir legislar, dispor e gerir em interesse pontual e específico de sua urbe. Basta ver que, a contrario sensu, o mesmo Supremo Tribunal Federal entendeu ser inconstitucional lei local que impeça instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área, a teor do que reza a Súmula Vinculante n. 49, sob pena de violação à livre concorrência.

Ainda assim, é importante dizer que o STF, solidamente, vem conferindo aos municípios competência para legislar sobre distância mínima entre postos de revenda de combustíveis, bem como dispor sobre temas que digam respeito a edificações ou construções locais, ou ainda sobre assuntos relacionados à exigência de equipamentos de segurança ou itens razoáveis (tais como instalações sanitárias, bebedouros ou cadeiras de espera) de bem-estar em imóveis destinados a atendimento ao público. [4]

De outra parte, em sede de repercussão geral, a competência dos municípios segue em processo de sólida consolidação. Parece já ser, por exemplo, de amplo conhecimento a Tese 272, que dispõe competir ao legislador local estabelecer sobre definição de tempo máximo de espera de clientes em filas de instituições bancárias. Há mais, porém.

Deveras, também já não mais se discute sobre competência municipal para legislar sobre meio ambiente (Tese 145), conquanto o poder local atue "no limite de seu interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados". [5] Evidente que aqui como de resto em tudo o que se refere à competência municipal, e como acena o verbete  há de se examinar o interesse local.

Quanto ao ponto, vale referir ao julgamento da ADPF 109, relator ministro Edson Fachin. Estava em debate, à ocasião, lei municipal que proíbe o uso de materiais constituídos de amianto em ambiente de construção civil. Concluiu-se, em julgamento encerrado com ampla maioria, que em tema de competência concorrente de União, estados e Distrito Federal para legislar sobre produção, consumo, proteção do meio ambiente e proteção e defesa da saúde, detêm os municípios competência para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.

Também emblemático é o julgamento do Recurso Extraordinário n. 194.704, relator ministro Carlos Velloso (redator do acórdão, ministro Edson Fachin). Discutia-se, em sede de mandado de segurança, lei municipal de Belo Horizonte sobre limites de emissão de fumaça por ônibus urbanos. O caso suscitou aceso e rico debate acerca da superposição de competências, a partir da divergência aberta pelo então ministro Cezar Peluso.

Para o que aqui interessa, sem querer ir fundo na análise do acórdão, vale registrar a menção ao chamado federalismo cooperativo, entrevisto no texto da Constituição de 1988, como ferramenta apta a "enfrentar os problemas de aplicação que emergem do pluralismo". Ao conclamar a aplicação do princípio da subsidiariedade, o acórdão refere-se, especialmente, às matérias submetidas à legislação concorrente, pelo que cita Raul Machado Horta, que, de sua parte, acena ser este o "domínio predileto para o desenvolvimento e a ampliação dos poderes legislativos do estado-membro e do município, em território comum ao da União, desfazendo a tendência centralizadora do federalismo centrípeto, para explorar, em profundidade, as perspectivas do federalismo cooperativo e de equilíbrio".  

Em verdade, desde o julgamento da ADI 4.060, relator ministro Luiz Fux, o STF já passara a desenhar, com crescente nitidez, a compreensão de que o novo federalismo brasileiro demandaria um olhar que contemplasse um maior e mais generoso feixe de competências legislativas e materiais atribuíveis aos estados e aos municípios. Em verdade, sugere-se até uma certa inversão de prioridades, de forma a se prestigiar "como regra geral, as iniciativas regionais e locais, a menos que ofendam norma expressa e inequívoca da Constituição de 1988".

A partir desse instante, os ministros do STF já vêm decidindo, em provimentos monocráticos, contra decisões de cortes estaduais que à moda antiga, agora já se pode dizer cravavam a primazia da competência federal [6] em matérias cujas atribuições são, de alguma forma, diluídas também entre estados e municípios no bojo da Constituição, deixando para trás uma visão restritiva dos incisos do artigo 30 da Carta.

Dito isto, e voltando à questão da competência legislativa em dias de pandemia: parece ser certo que o município detém hoje espaço para legislar sobre o que lhe disser pontual interesse, à luz de suas próprias características (digamos, sociais, geográficas e estruturais). Parece ser claro que a crise atingirá um pequeno município no norte do país de forma distinta da que alcançará um município de grande porte no sudeste brasileiro. Parece ser aceitável, pois, nesse contexto, que um prefeito adote medidas mais restritivas de proteção sanitária em determinada área da cidade, à luz, por óbvio, de critérios técnicos e assegurando sempre, com equilíbrio e razoabilidade, os direitos fundamentais dos munícipes e suas atividades.  

O que não se vai admitir, por tudo o que se vem de expor, é que um presidente da República, em uma "canetada", imponha a abertura do comércio de todas as cidades brasileiras, não somente em desalinho com o senso comum sobre o que importa em termos de saúde, já que a Organização Mundial de Saúde recomenda o isolamento social temporário como medida impositiva de enfrentamento à chamada crise do coronavírus, como também pela mais absoluta ausência de fonte normativa a amparar o ato, que assim já nasceria com o vício de inconstitucionalidade. 

O caminho da consolidação do federalismo pleno cooperativo concebido pelo constituinte não é, como visto, propriamente fácil. Nesse cenário, é de se louvar que o Supremo Tribunal Federal tenha passado a admitir algumas boas iniciativas legislativas locais, reconhecendo mesmo a primazia do interesse local em detrimento das reconhecidas competências dos estados e da União. E agora, sob o cenário da pandemia global da Covid-19, o conceito de federação será, como nunca, posto a teste. Como um bom alento, anote-se que o ministro Marco Aurélio reafirmou a competência concorrente para legislar sobre o tema ao deferir parcialmente cautelar na ADI 6.341, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista, em face de dispositivos da Medida Provisória 926, de 26 de março de 2020.  

O que se espera, neste contexto, é que os avanços de nossa Corte Constitucional rumo à descentralização operacional e legislativa de estados e municípios até possam sofrer ajustes, mas que não retrocedam, em prol da estabilização do pleno conceito de federação.

 


[2] Decreto n. 10.282, de 20 de março de 2020

[4] AI 491.420 AgR, rel. min. Cezar Peluso, j. 21-2-2006, 1ª T, DJ de 24-3-2006. RE 795.804 AgR, rel. min. Gilmar Mendes, j. 29-4-2014, 2ª T, DJE de 16-5-2014. [AI 347.717 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 31-5-2005, 2ª T, DJ de 5-8-2005.]
= RE 266.536 AgR, rel. min. Dias Toffoli, j. 17-4-2012, 1ª T, DJE de 11-5-2012

[5] RE 586.224, rel. min. Luiz Fux, j. 5-3-2015, P, DJE de 8-5-2015, Tema 145.

[6] RE 1184957, Rel. Min. Edson Fachin, j. 18.3.19, DJE 21.3.19,  RE 1243834, Rel. Ministro Roberto Barroso, DJe 13.2.20

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