Opinião

Magistratura em tempos de pandemia: a busca por soluções no desconhecido

Autores

  • Cíntia Menezes Brunetta

    é juíza federal no Ceará e secretária-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).

  • Vânila Cardoso André de Moraes

    é juíza federal doutora em Sociologia e Direito mestre em Justiça Administrativa coordenadora do Grupo Operacional do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e do Laboratório de Inovação da Justiça Federal de Minas Gerais (iluMinas).

  • Marco Bruno Miranda Clementino

    é juiz federal no Rio Grande do Norte professor da UFRN doutor em Direito com formação em Inovação e Liderança pela Harvard Kennedy School coordenador do Núcleo de Justiça 4.0 referente ao julgamento de ações de interesse das pessoas em situação de rua na Seção Judiciária do Rio Grande do Norte.

  • Taís Schilling Ferraz

    é mestre em Direito pela PUCRS doutoranda em Ciências Criminais; professora titular do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) da ENFAM; desembargadora do TRF-4 e integrante do Grupo Operacional do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal.

  • Márcia Maria Nunes de Barros

    é juíza federal no Rio de Janeiro.

15 de abril de 2020, 11h00

“Vivemos tempos estranhos”. Já vínhamos escutando essa afirmação há algum tempo, aliás até com certa frequência, mas parece que a história conseguiu mais uma vez surpreender e resolveu desafiar a humanidade com uma pandemia, escancarando, de forma particularmente dolorosa, a importância de se pensar globalmente e de forma sistêmica os problemas que se lhe apresentam.

Todos tateiam à procura da melhor resposta, da saída mais próxima ou de um caminho que pareça o certo. Nessa busca, relações pessoais, sociais, econômicas, contratuais, trabalhistas, tributárias e até federativas (na disputa política pela competência legislativa) vão se redesenhando sem muitas regras. Subitamente, aquele ambiente confortável de racionalidade, cujo processo decisório era pautado em critérios de segurança e previsibilidade, parece ter sido posto em xeque.

De uma hora para a outra, parece que a humanidade foi devolvida à juventude, sendo obrigada a lidar com o desconhecido – e, mais do que isso, com o invisível –, ainda sem critérios científicos claros para enfrentamento de um problema de proporções para além dos limites do cognoscível em termos de tempo e espaço. E, a despeito de se tratar de uma pandemia, não apenas as políticas públicas de assistência à saúde ou de vigilância sanitária estão sendo afetadas. As capacidades operacionais do sistema como um todo, nos Estados ou fora deles, são ameaçadas, com risco de colapso e de consequências imprevisíveis.

Porém, onde se insere o Poder Judiciário nesse contexto? Ora, ao contrário de tantas outras, essa resposta é razoavelmente fácil. Ele está onde sempre esteve, em maior ou menor proporção: como destinatário dos conflitos que surgiram, surgem e surgirão durante a pandemia e para além dela, sendo ainda incertos os desafios que todos deveremos enfrentar.

O cerne do problema aqui não é discutir se as demandas judiciais virão. O leitor pode acreditar: elas já estão desaguando nas portas das unidades judiciárias (teleportas?) em números assustadores… A questão é se o Poder Judiciário brasileiro – seja de dentro dos lares de magistrados e servidores, seja das suas tradicionais instalações, como fóruns e tribunais – tem a capacidade de enfrentar esse perfil de judicialização sem revisitar o paradigma de prestação jurisdicional predominantemente praticado até o início do mês passado, considerando este contexto nunca antes vivido.

Neste texto, pretende-se sustentar que, sem fugir dos modelos tradicionais, o Poder Judiciário não terá a capacidade de enfrentamento do problema. Sob essa premissa, objetiva-se também discorrer brevemente sobre iniciativas que tentam deixar de lado o olhar restrito da jurisdição clássica solipsista em prol de uma visão e atuação judiciais plurais, sistêmicas, estruturais e dialógicas.

Nesse contexto, uma das experiências mais sofisticadas de redesenho desse modelo tradicional talvez tenha sido a criação dos centros de inteligência judiciais, uma iniciativa já bastante consolidada na Justiça Federal, a partir de um embrião surgido na Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, em 2015, depois nacionalizada em 2017, pelo Conselho da Justiça Federal, com a criação do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e dos Centros Locais de Inteligência da Justiça Federal. Também na Justiça Estadual, alguns Tribunais de Justiça vêm discutindo há algum tempo a multiplicação desse modelo, com destaque para o já existente no Poder Judiciário do Maranhão.

Os centros de inteligência judiciais surgiram como células de articulação do Poder Judiciário com o objetivo de prevenir litígios e promover soluções estruturais para demandas judiciais repetitivas, assim como para servir de canal de comunicação entre as diversas instâncias judiciais quanto ao gerenciamento de precedentes. Nesse sentido, essa estrutura organizacional se propôs a atuar na construção e gestão de conhecimento em favor da redução de litigiosidade, por meio da racionalização do sistema judicial.

As reflexões teóricas conduzidas dentro do Poder Judiciário, estimuladas pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e pelas Escolas Judiciais e de Magistratura, revelam que o traço privatista que marca o direito processual consiste em fator decisivo de inviabilização da solução efetiva dos litígios, a maioria dos quais, na atualidade, tem origem coletivo-estrutural e massiva.

O principal objetivo dos centros de inteligência judiciais, portanto, é a instrumentalização do diálogo interinstitucional, o que pressupõe, essencialmente uma lógica colaborativa e horizontal. No mais, eles têm por estratégia o emprego de soluções preventivas e coletivo-estruturais. A ideia é agir fora do processo e dissociado do conflito subjetivo, individual ou coletivo. Foca-se na origem dos conflitos que ensejam demandas repetitivas, nos estímulos silenciosos de litigiosidade identificados no funcionamento do próprio sistema de justiça e no diálogo entre instâncias para gestão de precedentes, visando a reforçar-lhes a devida segurança jurídica, na padronização de rotinas com o objetivo de reduzir litigiosidade intraprocessual.

Inspirada na experiência desses centros, que não só lançam um olhar estratégico para os conflitos, mas, acima de tudo, permitem um funcionamento dotado de maior democracia e cientificidade ao sistema judicial, a Enfam, no contexto da pandemia da Covid-19, deu início ao funcionamento de uma plataforma digital pensada para servir de suporte a juízes federais e estaduais do país, através do fomento ao debate interinstitucional e plural, assim como à troca de experiências.

Tal plataforma, que foi batizada como “Centro de Apoio à Magistratura Brasileira – Covid19”, possui quatro ambientes distintos pensados especificamente para apoiar e capacitar juízes estaduais e federais, em uma perspectiva sistêmica, interdisciplinar e estrutural:

1) ao público em geral, um repositório, compreendendo um banco de dados com artigos, sentenças, decisões, notas técnicas, manuais, webinários pré-gravados, links úteis, entre outros;

2) exclusivamente para magistrados, fóruns abertos divididos por temas e moderados por especialistas de diversas áreas, com o objetivo de discutir, de forma colaborativa, novas ações judiciais propostas ou dúvidas surgidas durante a jurisdição;

3) exclusivamente para juízes, cursos elaborados com foco na judicialização desencadeada pela pandemia do Covid-19;

4) ao público em geral, compilação de ações e notas técnicas dos centros de inteligência, voltados à gestão judicial da pandemia.

A ideia da plataforma é, de forma inédita, criar uma rede de colaboração e ligação entre magistrados de todo o país, sem intermediação de instituições ou estruturas formais, sem necessidade de designações por tribunais ou indicações por gestores, de forma a alcançar, em plataforma, as comarcas brasileiras mais isoladas e solitárias.

Na atual conjuntura, é importante pensar nos efeitos sistêmicos das decisões judiciais para que não resultem em prejuízos diretos ou indiretos às políticas públicas em construção ou em andamento, num contexto de calamidade pública formalmente reconhecida. Os centros de inteligência judiciais e a plataforma da Enfam oportunizam, assim, um espaço colaborativo para o desenvolvimento da inteligência coletiva e da gestão do conhecimento, com o aproveitamento das vivências e saberes dos magistrados, obtidos nos mais diversos contextos.

No momento em que a humanidade precisa ficar em casa, o ciberespaço se reforça como um locus de inteligência coletiva. Paradoxalmente, o juiz da comarca mais longínqua, em isolamento social, será partícipe de um ambiente aberto, democrático e horizontal, dentro do qual a sua experiência terá um mesmo patamar de influência do que aquela dos magistrados lotados em capitais e municípios mais relevantes economicamente. No esforço de compreensão do desconhecido, nenhum brasileiro será esquecido.

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