Opinião

ADI 6.362 e a diretriz constitucional da descentralização do SUS

Autor

  • Lenir Santos

    é advogada sanitarista doutora em saúde coletiva pela Unicamp professora colaboradora da Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).

15 de abril de 2020, 16h33

A recente ADI 6.362, de autoria da Confederação Nacional de Saúde Hospitais, Estabelecimentos e Serviços —, propõe mitigar a competência dos estados e municípios no manejo do instituto da requisição de bens e serviços de pessoas físicas e jurídicas, nos termos do artigo 15, XIII, da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080, de 1990), que encontra fundamento no artigo 5º, XXV, da Constituição da República (CR).

A requisição de bens e serviços está vinculada à presença de perigo iminente na saúde em decorrência de calamidade pública e irrupções de epidemias e tem sido utilizada pelos entes federativos no seu dever constitucional (artigo 23, II, da CR) de cuidar da saúde, competência essa que deu origem à tese do STF da responsabilidade solidária entre os entes federativos no dever de garantir serviços de saúde à população.

“Há responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde." (Decisão na STA n. 175, de 2009, reiterada no julgamento do RE 855178)

Não seria crível que exatamente quando há um perigo sanitário que pode gerar falência do sistema de saúde, e ainda risco de vida coletivo, o instituto da requisição não possa ser utilizado por quem tem o dever constitucional de cuidar da saúde, lembrando que o SUS tem organização constitucional fundada na diretriz da descentralização com direção única em cada esfera de governo, o que significa ser ele o resultado da integração das ações e dos serviços de saúde em rede regionalizada e hierarquizada quanto à complexidade de seus serviços (artigo 198, I, da CR).

Essa integração administrativo-sanitária se faz necessária em razão da competência comum dos entes federativos para cuidar da saúde e da diretriz da descentralização e direção única em cada esfera de governo, sendo o fundamento sanitário desse compartilhamento a impossibilidade de cada ente per si realizar da vacina ao transplante.

Nesse sentido, o SUS, por ser uma rede interfederativa de ações e serviços de saúde, cuja direção compete a cada ente federativo, e em acordo com a autonomia conferida pelo artigo 18 da CR, requer um espaço de pactuação sobre a gestão compartilhada, o que foi objeto da Norma Operacional Básica (NOB) do SUS, de 1993, a famosa NOB-MS 01/93, ao instituir as comissões intergestores da saúde, em âmbitos nacional, estadual e regional, que foram posteriormente reconhecidas pela Lei n. 12.466, de 2011 (que alterou a Lei n. 8.080, de 1990), as quais têm competência para atuar na definição de aspectos operacionais do SUS no que tange à sua organização e ao seu funcionamento.

Qualquer decisão que envolva os três entes federativos no tocante ao SUS deve ser resolvida na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), a qual tem competência para pactuar aspectos que envolvam todos os entes federativos, de modo consensual.

Conferir ao Ministério da Saúde a decisão final, a coordenação ou qualquer outra forma de centralização de decisão própria de cada ente federativo, como a requisição de bens e serviços por força do disposto no artigo 15, XIII, da Lei 8.080, de 1990, e agora, nas circunstâncias da pandemia da Covid-19, na Lei n. 13.979, de 2020, seria privar o dirigente da saúde de meios para cumprir os fins que a Constituição lhe conferiu como obrigação.

Ora, o instituto da requisição somente pode ser acionado pelos dirigentes sanitários quando há calamidade sanitária, risco à saúde e à vida das pessoas. Quando no âmbito fático esses elementos estão presentes, a supressão de sua atuação, que passaria ao Ministério da Saúde, ainda que sob o pálio de apenas coordenar a ação, confrontaria os poderes conferidos pelo legislador aos entes federativos responsáveis pelo cuidado direto da saúde da população. Lembremos que quase 100% dos serviços de assistência à saúde são prestados pelos estados e municípios, e não pela União.

Caso seja necessário dispor sobre a requisição administrativa, caberá à CIT tal papel. Qualquer decisão sobre compartilhamento de ação e serviço de saúde compete à CIT, a qual teria, no caso, competência para fixar diretrizes gerais no sentido de organizar as requisições no território nacional. Na CIT estão presentes os três entes federativos, sendo os estados representados pelo Conselho de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e os municípios, pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), os quais decidem em comum acordo.

Desse modo, a ADI 6362 não pode lograr efeito por ferir a autonomia federativa, cercear os poderes constitucionais e legais dos entes federativos no cuidado com a saúde, considerados como de responsabilidade solidária pelo STF, e desrespeitar a diretriz da descentralização com direção única em cada esfera de governo (artigo 198, I da CR) e os mecanismos reconhecidos por lei da gestão compartilhada do SUS (Lei n. 12.466, de 2011).

A requisição administrativa de bens e serviços de pessoas físicas e jurídicas é uma salvaguarda do direito à saúde como instrumental de manejo de cada ente federativo em relação às necessidades de saúde decorrentes de perigo iminente, deflagrado por epidemias, calamidades públicas e outros eventos sanitários que coloquem a vida e a saúde coletiva em risco.

Importante, pois, que o STF reconheça que o SUS é um sistema de compartilhamento das ações e serviços de saúde entre os entes federativos, os quais são autônomos na direção de seus serviços e que contam com instâncias legais para discutir a sua operacionalidade, sem ferir as suas autonomias.

Autores

  • é advogada, especialista em direito sanitário pela USP, doutora em saúde pública pela Unicamp e professora colaboradora do Departamento de Saúde Coletiva. É presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa) e conselheira do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!