Opinião

Aspectos legais e práticos do acordo de não persecução penal

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15 de abril de 2020, 6h10

A Lei nº 13.964/19 introduziu no Código de Processo Penal o acordo de não persecução penal (ANPP), que pode ser conceituado como "um ajuste obrigacional entre o órgão de acusação e o investigado (assistido por advogado), devidamente homologado pelo juiz, no qual o indigitado assume sua responsabilidade, aceitando cumprir, desde logo, condições menos severas do que a sanção penal aplicável ao fato a ele imputado" (Cunha, Rogério Sanches. Pacote Anticrime — Lei n 13964/2019: Comentários às Alterações no CP, CPP e LEO/ Editora Juspodivm, 2020).

Em apertada síntese, podemos defini-lo como uma combinação dos interesses das partes integrantes de uma relação processual. O Ministério Público, atuando concomitantemente como órgão acusador e fiscal da lei, propõe os termos necessários e suficientes para a reprovação e a prevenção do crime, resguardando, assim, os interesses do Estado e da vítima. Por sua vez, o investigado, ao aceitá-los, é beneficiado com uma reprimenda mais branda do que aquela que seria estabelecida em uma sentença penal condenatória, afastando-se, por óbvio, eventual reconhecimento da reincidência delitiva.

Com efeito, o artigo 28-A da Lei Processual Penal prevê restrições à sua aplicação. Em primeiro lugar, não pode ser o caso de arquivamento do inquérito policial, e o investigado, obrigatoriamente, deve confessar, formal e circunstancialmente, a prática do crime, cuja conduta não tenha sido cometida com violência ou grave ameaça e a pena mínima aplicável à espécie seja inferior a quatro anos.

Em segundo lugar, o ANPP não se aplica se for cabível a transação penal (artigo 76 da Lei nº 9.099/95); se o investigado for reincidente ou se presentes elementos que comprovem habitualidade, reiteração delitiva ou mesmo ser ele um delinquente profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; ter sido beneficiado por medidas despenalizadoras (ANPP, suspensão condicional do processo e transação penal) nos cinco anos anteriores; ou, por fim, nos delitos praticados no contexto da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha).

Por outro lado, o dispositivo legal em apreço aponta determinadas condições para o oferecimento do ANPP, isto é, a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; a renúncia voluntária a bens e direitos (instrumentos, produtos ou proveitos do crime); prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas por período equivalente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços; o pagamento de prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social; e, por último, o cumprimento de outras condições indicadas pelo MP, desde que proporcionais e compatíveis com a infração penal.

Pois bem, os aspectos associados às mencionadas exigências da medida despenalizadora merecem algumas considerações para que, depois, possamos adentrar às questões práticas acerca da sua aplicação.

A reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, salvo na impossibilidade de fazê-lo, é prevista em nosso ordenamento jurídico como condição em outros benefícios possíveis de serem concedidos ao agente delituoso. A título de exemplo, a suspensão condicional do processo, prevista no artigo 89 da Lei nº 9.099, também exige a reparação do dano (§ 1º, inciso I) para a sua concessão.

Aliás, essa imposição nada mais é do que o reflexo de um dos efeitos genéricos do édito condenatório "tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime" (artigo 91, I, do CP). Do contrário, teríamos uma situação, no mínimo, esdrúxula. O agente seria beneficiado com o direito de não ser processado criminalmente, entretanto, contra ele se admitiria o ajuizamento de ação indenizatória pela vítima, seu sucessor ou mesmo representante legal, a fim de lhes garantir uma reparação mínima pelos prejuízos decorrentes da infração penal por ele cometida. Portanto, aludida condição evita a instauração da persecução penal e, igualmente, a propositura de uma ação indenizatória pela parte prejudicada.

Nessa mesma linha de raciocínio, a segunda condição é a renúncia voluntária a bens e direitos indicados pelo Ministério Público, como instrumentos, produto ou proveito do crime. Esse também é um efeito genérico da sentença condenatória, prevista no artigo 91, II, do Código Penal. Ou seja, afasta-se, corretamente, possível enriquecimento ilícito do investigado, em detrimento da conduta típica por ele praticada.

Noutro aspecto, as condições previstas nos incisos III (prestação de serviço à comunidade) e IV (pagamento de prestação pecuniária) do dito artigo 28-A estão diretamente associadas às obrigações a serem cumpridas pelo interessado, caso ele aceite os termos do ANPP.

Quer nos parecer, com as mais respeitosas vênias àqueles que entendem de forma contrária, tratar-se de encargos a serem assumidos pelo interessado após o aceite do acordo e não de exigências para o seu oferecimento. Em outras palavras, estando presentes os requisitos, e apresentadas as condições legais, o investigado deverá assumir a obrigação de prestar serviço à comunidade e/ou de pagar a prestação pecuniária.

Por derradeiro, o representante do Ministério Público poderá estabelecer outras condições (ou obrigações) para o oferecimento do ANPP, desde que proporcionais e compatíveis com a infração penal. A propósito, eventual inadequação, abuso ou excesso poderá ser vetado pelo magistrado, quando da sua homologação em juízo (§ 5º, artigo 28-A, CPP), situação em que os autos retornarão ao MP para sua reformulação ou, caso outro seja o entendimento, para a remessa do acordo ao Procurador-Geral de Justiça.

Feita essa breve digressão, há pontos bastante controvertidos na aplicação prática do acordo de não persecução penal.

Todas as alterações legislativas, especialmente as que impõem certas mudanças procedimentais, encontram por parte dos aplicadores do direito alguma resistência diante das novidades estruturais na forma de como proceder na persecução penal, ou melhor, na "não persecução penal". A toda evidência, o papel do Ministério Público ganha relevância, à medida que lhe traz maior responsabilidade ou poder na determinação dos casos em que se pode oferecer ao investigado o acordo para não ser processado. Por outro lado, o acordo somente poderá ser realizado na presença de um advogado ou defensor público, que exercerá a função de esclarecer ao investigado se tratar de um benefício melhor do que o ajuizamento da ação penal.

Quando se fala em poder do Ministério Público no oferecimento da proposta de ANPP, refere-se à observância não só dos requisitos objetivos previstos, mas também na parcela de subjetividade deixada pelo legislador para a aplicação do instituto. Essa subjetividade está insculpida na expressão "desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime", permitindo que para determinados casos se possa deixar de oferecer o acordo.

Outra questão em que, na prática, ainda não há entendimento pacífico é sobre o local onde se deve oferecer a proposta de ANPP. Atualmente, percebe-se que, em muitas situações, o Ministério Público não se encontra aparelhado para a realização desse acordo, que demanda a intimação do investigado para comparecimento à sede da promotoria de Justiça acompanhado de advogado. No particular, o Ministério Público não dispõe em seus quadros de servidor imbuído dessa função, como ocorre no Poder Judiciário, que são os oficiais de Justiça.

Nessa mesma linha de raciocínio, verifica-se que a maior parte dos investigados, que preenchem os requisitos objetivos e subjetivos à obtenção do benefício, não tem condições de arcar com os custos dos honorários de advogado, o que resulta na necessidade de fazer-se por um representante da Defensoria Pública, instituição que também possui especificidades próprias para atender ao chamamento ministerial. Aliás, muito já se falou em celebração de convênios com os núcleos de práticas jurídicas das faculdades de Direito a fim de viabilizar a demanda trazida pela inovação legislativa.

Uma forma encontrada para remediar a dificuldade do Ministério Público em realizar intimações e trazer os investigados acompanhados por advogados/defensores é a utilização da estrutura judicial existente. Em outras palavras, sendo o caso de oferecimento de proposta de ANPP, o Ministério Público poderá requerer ao juízo a designação de audiência, a fim de que o investigado compareça acompanhado por advogado ou por defensor público já designado a atuar naquele juízo. Ou seja, utiliza-se a força de trabalho do oficial de Justiça para a intimação do investigado e da presença do defensor habitual daquela serventia.

No dia designado, é facultado ao juiz estar presente no momento em que o representante do Ministério Público oferecerá a proposta de ANPP e colherá a confissão circunstanciada do investigado. Segue-se a um momento seguinte, agora, sim, já na presença do magistrado correspondente à homologação judicial do acordo.

Essa sistemática parece, inclusive, representar economia processual, tendo em vista que, ao invés de se designar duas datas (uma na sede do Ministério Público e outra, em juízo, para homologação), os atos são concentrados em apenas uma oportunidade, facilitando, assim, para o próprio investigado, que por vezes encontra dificuldade para comparecimento em datas distintas.

Atualmente, por se tratar de alteração recente, o ANPP deverá ser oferecido não só aos casos em que ainda não houve ajuizamento da ação penal, como também aos processos em andamento, pois se trata de direito subjetivo do réu, uma vez que a lei trouxe benefício não só no âmbito processual penal, mas também no direito material penal.

Destarte, há ações penais em curso cujos réus fazem jus ao benefício do ANPP, casos em que, na primeira oportunidade, deve-se esclarecer a criação do recente benefício, com todas as vantagens (tais como não responder ação penal, não ser condenado, manter a folha penal sem incidências), facultando-lhes a realização da confissão espontânea e a obtenção do ANPP.

Nesse particular, talvez a melhor técnica seja revogar a decisão de recebimento da denúncia, retornando os autos à condição anterior -—caderno investigatório (inquérito policial) —, suspendendo-se toda a tramitação até o final do cumprimento das condições impostas no acordo.

Constata-se, ainda, que há casos em que o ANPP é mais vantajoso do que a suspensão condicional do processo, tendo em vista que o tempo de cumprimento da pena, na grande maioria, é inferior a dois anos (prazo mínimo do sursis processual), pois o ANPP deve ser correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços.

Outro ponto merece destaque. O CPP dispõe que, descumpridas quaisquer das condições estipuladas naquela medida despenalizadora, o representante do Ministério Público deverá comunicar ao juízo para fins de sua revogação e posterior oferecimento de denúncia, permitindo, ainda, que o descumprimento sirva como justificativa para o não oferecimento da suspensão condicional do processo (§§ 10º e 11º do artigo 28-A).

Como é cediço, o oferecimento da exordial acusatória depende da existência de prova da materialidade e de indícios suficientes de sua autoria ou participação, sob pena de rejeição da denúncia (artigo 395, CPP). Assim também deve-se pautar o Ministério Público no momento da proposta de ANPP. A materialidade e os indícios de autoria devem estar minimamente demonstrados nos autos, a fim de viabilizar o acordo, intimando-se, em seguida, o investigado para realizar sua confissão, sob pena de incorrer em abuso quando inexistentes.

Daí surge um importante questionamento: a revogação do acordo, por culpa exclusiva do investigado, impede o uso da sua confissão formal e circunstanciada, realizada perante um representante do Ministério Público e seu defensor, homologada em juízo, para fins de comprovação da autoria delitiva no curso da ação penal proposta?

A despeito de entendermos que o princípio da não autoincriminação é uma importante garantia do investigado, decorrente da Constituição Federal, não nos parece razoável concluir pela inutilização da sua confissão feita na medida despenalizadora, sob pena de se criar uma aberração jurídica: ora a confissão extrajudicial é pressuposto para obtenção do benefício, ora ela é inválida e não poderá ser considerada no processo penal, podendo o réu sustentar que somente confessou para obter o ANPP.

Por conseguinte, concordando-se com as condições propostas e homologado judicialmente o acordo, o investigado se declarará responsável pela prática da conduta criminosa em apuração também para efeitos processuais, caso haja o descumprimento do que estabelecido naquele benefício.

Cabe observar, ainda, que, após a formalização do acordo, nos termos do § 6º do artigo 28-A, configurar-se-á a coisa julgada. Logo, não é cabível contra a decisão homologatória a interposição de qualquer recurso porque o decisum apenas torna público o consentimento livre das partes, salvo evidentemente os casos de comprovação de consentimento viciado.

Uma vez homologado o ANPP, a legislação processual penal estabelece a competência da Vara de Execuções Penais (VEP) para apreciar eventuais incidentes (§ 6º do artigo 28-A do CPP), tema este que está a merecer maior reflexão e debate por parte da doutrina e da jurisprudência. Suponhamos, por exemplo, que o juízo da execução reconheça o descumprimento das condições do ANPP. Transitada em julgado essa decisão, os autos retornarão ao Ministério Público, que poderá oferecer denúncia perante uma vara criminal.

Dessa forma, o acompanhamento do cumprimento das condições impostas será de competência da VEP, todavia, as consequências de sua transgressão, em regra, serão de atribuição da vara criminal.

De qualquer sorte, o benefício despenalizador em debate, conquanto se revele como uma ferramenta indispensável no combate à impunidade, apresenta, até o presente momento, incertezas periféricas, as quais somente serão esclarecidas e sanadas com a sua aplicação em casos concretos.

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