Opinião

O direito penal de emergência como o leitmotiv do consequencialismo estatal

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Raul Mangabeira

    é graduando em Direito pela Faculdade de Direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

15 de abril de 2020, 17h22

Repercutiu nos últimos dias a notícia de que o juízo da Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas da comarca de Goiânia, por meio de portaria, criou uma nova espécie de critério de diminuição da pena restritiva de direitos[4], consistente no ato de doar sangue.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, “os 2,2 mil condenados a prestar serviços à comunidade de Goiânia agora podem doar sangue, e o gesto, além de ajudar no enfrentamento à pandemia da Covid-19, poderá abater horas do serviço comunitário que foi determinado pela Justiça. A iniciativa resultou em 27 doações nos primeiros dias de vigência da portaria. Além de permitir que a doação seja considerada parte do cumprimento da pena alternativa, o ato normativo libera quem presta serviço à comunidade da obrigação de comparecer periodicamente à vara nos próximos meses, conforme previsto no artigo 4º da Recomendação CNJ n. 62.”

Deve-se ter em mente, inicialmente, que, por óbvio, é inquestionável a elevada e elogiável postura de doar sangue. O que o presente texto visa a analisar é a repercussão de tal nobre ato para o direito penal, mormente em fase de (eterna) emergência.

Não se está exatamente diante de uma novidade. O Poder Legislativo, único legitimado para inovar em matéria penal, vem tentando, já há muitos anos, emplacar a ideia de que a doação, seja de sangue ou órgãos, deve significar um critério de remissão de pena. Apenas para se ter ideia, só na Câmara dos Deputados, entre 2003 e 2011, seis Projetos de Lei foram apresentados com esse objetivo.

Em 2003, o Projeto de Lei n.̣º 1.321-A, de autoria do deputado Valdemar Costa Neto, buscava estabelecer um novo critério de redução de pena para aquele condenado que se inscrevesse como doador vivo de órgãos, partes do corpo humano ou tecidos para fins terapêuticos.

Em 2004, o Projeto de Lei n.º 2.937, de autoria do deputado Eduardo Paes, buscava dispor sobre a diminuição das penas dos condenados, com sentença transitada em julgada, que optassem pela doação de órgãos.

Em 2008, o Projeto de Lei n.º 3.028, do deputado Silvinho Peccioli, pretendia alterar a Lei de Execuções Penais para admitir a remição da pena do condenado que doasse sangue. Aqui a remição seria contada à razão de um dia a menos de pena para cada doação.

Em 2009, o Projeto de Lei 6.283, de autoria do deputado Celso Maldaner, também dispunha sobre a doação de sangue como um critério de remissão de pena. Mais “generoso”, previa uma redução de trinta dias para cada doação.

Em 2010, o Projeto de Lei n.º 6.794, do deputado Edigar Mão Branca, especificamente sobre a doação de órgãos, indicava que o preso que doasse órgão teria a sua pena remida de um sexto a um terço, de acordo com a natureza da doação, a critério de juiz.

Em 2011, o Projeto de Lei n.º 453, da deputada Andreia Zito, buscava alterar a Lei de Execuções Penais para acrescentar o artigo 126-A, a dispor sobre a remição de parte do tempo de execução da pena pela doação voluntária de sangue. O benefício consistia na redução de dez dias de pena para cada doação voluntária de sangue a uma instituição oficial de coleta.

As justificativas, em todas essas oportunidades, à semelhança, em alguns momentos, do que foi feito na portaria do juízo de Goiânia[5], eram as mais belas possíveis. Dizia-se que “o preso que doa órgão evidencia, com essa atitude, um espírito de solidariedade e respeito para com a vida, o que mostra a sua disposição em reintegrar-se ao convívio social, como pessoa de bem, disposta a se sacrificar pelo bem-estar de outros cidadãos”[6]. Em outros momentos, que isso seria um “ato de coragem, de humanidade”[7], ou que, com isso, o condenado teria a “oportunidade de servir à comunidade”, “de se reintegrar a ela”, “de salvar vidas”[8].

Agora, o Judiciário, aparentemente buscando reunir em seu plexo de atribuições poderes afeitos a outros setores da República, tenta emplacar um pseudo-benefício penal àqueles que praticam um ato de inquestionável virtude moral. O juízo da comarca de Goiânia não é o primeiro a fazê-lo. Como a própria portaria indica, a ausência de art nouveau é inclusive do judiciário, haja vista que outras comarcas, em outros Estados, já muito antes implementaram a medida.

Além dos citados exemplos do Rio de Janeiro e do Paraná, também cumpre observar que no Estado de São Paulo a medida já foi aplicada, sendo sugestiva a leitura do artigo publicado no blog Nova Criminologia pelo Juiz de Direito Jayme Walmer de Freitas.

De fato, não se desconhece o estado crítico dos hemocentros. Segundo o Ministério da Saúde, no Brasil, apenas 1,6% da população é doadora de sangue[9] — 16 a cada mil habitantes —, número que está dentro dos parâmetros de pelo menos 1%. A taxa, entretanto, está longe da meta da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 3% da população doadora, de maneira que é preciso, com urgência, que o Estado promova campanhas a fim de aumentar esse número.

O Brasil, aí, é referência na América Latina, Caribe e África. De acordo com o site do Ministério da Saúde, “desde 2009 a experiência brasileira é utilizada em cooperações técnicas com mais de 10 países para o fortalecimento e desenvolvimento da promoção da doação voluntária de sangue, qualificação da atenção integral à pessoa com Doença Falciforme e aperfeiçoamento da produção de hemocomponentes”.

Esses estímulos para que se aumente o número de doadores, no entanto, não devem vir a qualquer custo. No caso concreto, o direito penal não está sendo utilizado como instrumento de ampliação do poder punitivo do Estado, senão que como um instrumento de violação da própria dignidade humana (um outro aspecto da dogmática de emergência).

Não se trata, em última análise, de se criar um mecanismo que reduza a liberdade pessoal do indivíduo, mas de implementar uma violação concreta sob o pretexto de estar-se oferecendo um prêmio: “doe e poderemos reduzir a sua pena.”

Mesmo que se trate de uma previsão apenas aplicável a penas alternativas, e, portanto, não compatível com a reclusão, entende-se que se cuida, ainda assim, de um exemplo de violação à dignidade do condenado, bem como ao princípio da humanidade das penas. Busca-se negociar aspectos relativos à índole moral do indivíduo, a posturas éticas e atitudinais.

Em suma, deve-se doar não porque com isso se receberá um prêmio penal, mas porque isso parece a coisa certa a se fazer. Guardadas as proporções, talvez fosse também efetivo, de acordo com essa lógica, que, em tempos de pandemia, buscasse-se acelerar o pagamento do auxílio emergencial daqueles que resolvessem doar sangue.

Por fim, vale observar que o exemplo de diminuição de pena por doação de sangue nem de perto assemelha-se à remissão da pena pelo estudo ou pelo trabalho. Nessas duas últimas hipóteses, busca-se premiar o crescimento pessoal do condenado, a sua efetiva “reintegração” (para aqueles que acreditam no que Figueiredo Dias chama de “mito da justiça re”)  ao curso “normal” da vida, por meio do desenvolvimento pleno da suas capacidades cognitivas. Na doação, busca-se tão simplesmente reduzir a pena com base em um critério de humanidade: “doo, logo mereço”.

Para além disso, não se pode perder de vista, ainda que esteja alquebrado pela dogmática eficientista e utilitarista de plantão, que o princípio da legalidade é (ou ao menos deveria ser) o principal standart do direito penal. Somente há crimes e penas com previsão legal. E, de fato, é inegável que a pitoresca diminuição de pena pela doação de sangue não tem respaldo legal.

Mercantiliza-se, assim, um dado moral, estabelecendo verdadeiro toma-lá-dá-cá. Se o resultado prático disso é a mitigação da deficiência no estoque dos hemocentros, a sua consequência histórica é a flagrante violação à dignidade do condenado. E isso, parece-nos, a Constituição ainda não admite, ao menos àqueles que interpretam o direito penal de acordo com a estrita legalidade.

 


[4]     Cf. o inteiro teor da Portaria n.º 001, de 23 de março de 2020, da Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas da comarca de Goiânia, in: https://www.tjgo.jus.br/images/docs/CCS/Portaria1-2020-_VEPEMA.pdf — Acesso em 13 de abril de 2020.

[5]     “A condenação criminal não representa óbice para que o condenado possa voluntariamente prestigiar os valores sociais da solidariedade e do bem-estar geral.

[6]     Trecho da justificação do Projeto de Lei n.º 6.794, de 2010, de autoria do deputado Edigar Mão Branca.

[7]     Trecho da justificação do Projeto de Lei n.º 1.321-A, de 2003, de autoria do deputado Valdemar Costa Neto.

[8]     Trecho da justificação do Projeto de Lei n.º 6.283, de 2009, de autoria do deputado Celso Maldaner.

[9]     Dados de 2018. Confira https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/44728-saude-reforca-campanha-para-incentivar-doacao-de-sangue.

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