Direito Civil Atual

Como evitar oportunismos nas revisionais de alimentos na pandemia

Autor

  • Marília Pedroso Xavier

    é professora da graduação e da pós-graduação strictu sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Conselheira da OAB/PR. Diretora do Departamento de Direito Civil do Instituto dos Advogados do Paraná. Coordenadora da Clínica Jurídica Advocacia Disruptiva e do Observatório jurisprudencial em Direito de Família e Sucessões junto ao Núcleo de Prática Jurídica da UFPR. Advogada. Mediadora da ARBITAC e da CAMFIEP.

15 de abril de 2020, 8h00

ConJur
O regime de quarentena provocado pela pandemia da Covid-19 alterou radicalmente a vida em todo o mundo, e não foi diferente no Brasil. Para além do isolamento forçado, da transformação da residência em local regular de trabalho e da necessidade de domínio de tecnologias por muitos até então desconhecidas, um dos principais efeitos verificados nas primeiras semanas de combate ao vírus foi, sem dúvida, o econômico. O fechamento do comércio, a diminuição da circulação de mercadorias e a necessária reclusão dos consumidores são alguns dos elementos que revelam quedas vertiginosas nas receitas, gerando uma crise que se estende para toda a sociedade. Diante desse cenário, ganham relevo mora e inadimplemento. Não é necessário ir mais longe para narrar as incertezas que rondam a atualidade.

Nesse panorama, uma das obrigações que corre o risco de não ser solvida durante o período de quarentena é a de caráter alimentar. Nas últimas semanas, a experiência forense (somada ao diálogo com colegas especialistas na área) revela que foram inúmeros os relatos de devedores que tão logo declarado o período de quarentena informaram de pronto seus credores o fato de que não poderiam honrar o pagamento da pensão sob o argumento de que estariam amargando perdas financeiras decorrentes da conjuntura provocada pelo coronavírus.

A forma dessa comunicação entre devedor e credor ocorreu de várias maneiras, das menos às mais solenes: houve quem meramente informasse, por e-mail, mensagem de texto ou por telefonema que reduziria ou cessaria “de ofício” a verba alimentar. Houve, também, quem relatasse o fato por meio de petição nos autos em demanda já em andamento. Curiosamente, o que menos se verificou foi o ajuizamento de ações revisionais. Isto indica, de certa forma, um completo descaso com a necessidade processual inafastável de que qualquer alteração no que toca aos alimentos seja efetivamente fixada em decisão judicial.

A questão que o presente artigo pretende enfrentar é precisamente como o Código de Processo Civil vigente pode evitar comportamentos oportunistas em ações revisionais de pensão alimentícia durante o período pandêmico causado pelo COVID-19. Com isso, pretende-se fornecer parâmetros seguros para que as decisões judiciais futuras que versem sobre o tema não perpetuem de forma desarrazoada o verdadeiro calvário já enfrentado por aqueles que necessitam da prestação alimentar para sua subsistência. A opção metodológica de enfrentamento do tema leva em consideração os alimentos devidos às crianças e aos adolescentes.

Principiando, literalmente, do começo, é preciso enfatizar o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CR/88 e art. 3º do CPC), ensinado nas lições mais elementares do curso de Direito. Este fundamento permite a apresentação do primeiro e mais evidente argumento deste texto: pensões alimentícias não podem ser alteradas sem decisão judicial.

Cabe ressaltar que, por envolverem interesses de menores, até mesmo acordos sobre pensão alimentícia não passam despercebidos pelo Poder Judiciário e precisam necessariamente ser homologados após a manifestação do Ministério Público. Logo, não há qualquer razão para afastar essa regra e acolher, com naturalidade, que no mundo dos fatos a pensão deixe de ser paga.

Desse modo, a simples comunicação feita pelo devedor expondo suas dificuldades financeiras (ainda que verdadeiras) não produz per se qualquer efeito jurídico. Tais alegações não terão cunho liberatório, uma vez que não seguiram o rito processual previamente definido em lei. Assim, por vezes, e em especial em contextos caóticos, é preciso dizer o óbvio: a redução ou exoneração da pensão alimentícia depende de decisão judicial, devidamente fundada em argumentos e provas.

Dito isso, frisa-se que o não pagamento da pensão alimentícia, na data de vencimento, abre ensejo para que a execução forçada seja imediatamente ajuizada pelo credor. É certo que o advento da Covid-19 não trouxe consigo nenhuma regra cogente que suspende o pagamento das pensões ou que impede a tutela jurisdicional do alimentando. Até por conta da sua fundamentalidade, não se pode presumir a renúncia do direito aos alimentos ou uma aceitação tácita de redução do valor da pensão.

Qualquer iniciativa que vise alteração ou exoneração da pensão alimentícia deve passar pelo Judiciário e, obrigatoriamente, só terá validade depois de proferida decisão a respeito do caso. Esta decisão deverá ser devidamente fundamentada e deverá avaliar, pormenorizadamente, os fatos narrados e as provas apresentadas, sob pena de nulidade (art. 11, p. único, CPC). Esta observação permite que se prossiga para o segundo ponto do artigo.

Como se sabe, a fundamentação decisória depende da análise das provas trazidas aos autos pelas partes (art. 489, inc. II, do CPC). Nesse contexto inédito vivenciado pela sociedade, chama atenção um questionamento: seria a quarentena decorrente da pandemia um fato notório, nos termos do artigo 374, inc. I, do Código de Processo Civil? A resposta é importante, uma vez que fatos notórios independem de prova. Logo, seria permitido sustentar que, por conta do isolamento social, há um direito à redução, suspensão ou exoneração de alimentos igualmente notório e inequívoco?  Entende-se que não.  

A modificação do valor da pensão alimentícia (art. 1699 do CC) não pode ser operada com base na mera alegação da Covid-19 sem demonstrar exatamente qual o real impacto econômico sofrido pelo alimentante e sem avaliar as necessidades atuais do alimentando. Para que se justifique uma redução do quantum alimentar, a parte deverá apresentar prova específica de como – e quanto – a quarentena o impactou. A fundamentação razoável que justifique a redução do valor da pensão deverá demonstrar que não existem outras formas de adimplir a prestação. Ou seja, cabe ao devedor demonstrar que não possui nenhuma outra reserva patrimonial ou acesso a linha de crédito que permita realizar o pagamento regular da dívida.

Além disso, entende-se que a Covid-19 não é fundamento, a priori, para a inversão do ônus da prova entre devedor e credor de alimentos (arts. 1.692, § 1º e 1.703 do CC). Nos termos legais, o instituto da inversão do ônus da prova pode ser invocado nos casos já previstos em lei (o que não se aplica no caso da quarentena) ou quando há excessiva dificuldade de provar as próprias alegações. Ora, a diferença de faturamento e de receitas não é um encargo excessivo que seria imposto ao devedor, uma vez que extratos bancários, holerites e documentos contábeis seriam adequados e admitidos em juízo. Sendo assim, não há justificativa legal para redistribuir a carga dinâmica do ônus da prova apenas pela ocorrência da pandemia.

Também, a diminuição da renda não gera presunção absoluta de que os alimentos possam ser reduzidos ou inadimplidos. Como se sabe, a definição do valor da pensão não é apenas resultado da possibilidade do alimentante, mas depende também da aferição da necessidade do alimentando e da proporcionalidade entre estes. O próximo argumento se refere, justamente, à necessidade.

O terceiro argumento que exige sensibilidade do magistrado é o de que a necessidade do alimentando também pode ter se alterado no período da quarentena e, possivelmente, tenha aumentado. A maioria das despesas, tais como escola e cursos extraclasse, adotaram metodologias virtuais e continuam prestando seus serviços e cobrando por eles. Por outro lado, as crianças e adolescentes que passam dias inteiros em casa certamente aumentaram suas despesas com alimentação, luz, gás, água, dentre outros. É razoável admitir que o genitor que ficou responsável pelo regime de convivência com os menores no período de quarentena tenha dificuldades de manter sua receita intacta, pois sua produtividade tende a cair em razão das inúmeras atividades, profissionais e pessoais, concomitantes. Seria imprescindível, ainda, avaliar se o titular do direito aos alimentos não tem alguma condição que o coloque no grupo de risco do coronavírus (tal como doença respiratória crônica), fato que aumentaria ainda mais a necessidade de isolamento e geraria alteração em termos de receita e despesa.

Assim, a depender do arranjo familiar, não é apenas o fator "possibilidade" do binômio que sofrerá alterações no período de quarentena. Ao contrário, o elemento da "necessidade" também está sujeito a intensas modificações e não deve ser desconsiderado quando se decidir sobre um pedido revisional de alimentos. Os alimentos, como conjunto do que é necessário para a vida do ser humano, não podem se sujeitar apenas à alteração da possibilidade do alimentante. O personagem central do instituto dos alimentos é o alimentando e seus direitos mais fundamentais não podem ser tolhidos liminarmente. Aqui, ganha especial sentido a necessidade de fazer cumprir o princípio do contraditório, sendo que decisões inaudita altera pars podem ser perigosas.  

Convém lembrar, como quarto argumento, que o fator historicamente mais persuasivo para fomentar o pagamento pontual das referidas pensões era a possibilidade de execução do devedor pelo rito da prisão com o cumprimento em regime fechado (artigo 528 do CPC). Porém, esse fator de coerção não mais subsiste durante o período pandêmico em razão da Recomendação nº 62/2020, do Conselho Nacional de Justiça, que prevê a prisão domiciliar do devedor de alimentos como medida de contenção sanitária. Com isso, há fundado receio de que a tormentosa saga executória enfrentada pelo credor de alimentos se intensifique. 

O último argumento a ser apresentado gira em torno da ponderação, técnica decisória positivada na codificação processual no artigo 489, § 2º. É certo que os magistrados, independentemente do juízo ao qual estão vinculados, terão decisões dramáticas a tomar no período de quarentena. O momento torna praticamente todos os casos como "difíceis" e acirra os direitos em tensão. Nessa linha, como os casos podem ser de “colisão entre normas” (na dicção do Código), a tomada de decisão poderá depender do emprego da técnica da ponderação. Acerca dos alimentos, porém, a ponderação mais relevante já foi feita pelo próprio legislador: tanto a Constituição da República quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente consagram o interesse que deve prevalecer nessas relações, por meio dos princípios da proteção integral, da prioridade absoluta e do melhor interesse da criança (art. 227 da CR/88, arts. 1º e 4º do ECA).

Deste modo, por mais complexa que seja a situação narrada pelo alimentante, a redução ou a exoneração dos alimentos não pode se tornar regra, ou direito absoluto, no período do combate ao Covid-19. Se houve, em algum momento, uma decisão estabelecendo uma obrigação alimentar, a tutela da subsistência do alimentando deve ser o ponto mais relevante do caso. Os magistrados terão, mais do que nunca, a missão de separar o joio do trigo, de afastar comportamentos oportunistas que pegam embalo na pandemia.

A sociedade está diante de grandes desafios, cujo enfrentamento demanda solidariedade, colaboração e responsabilidade. Esses mesmos nortes podem ser utilizados para reforçar a necessidade de que o devedor de alimentos priorize honrar a obrigação que, afinal de contas, só existe como decorrência constitucional do seu livre planejamento familiar.

Não se está a sustentar aqui que as relações de família se dão em uma redoma imune ao que toda sociedade vem experimentando. Acredita-se que sim, muitos devedores de alimentos sofrerão abalos significativos em suas finanças. Porém, na difícil e complexa tarefa de eleger prioridades e de por vezes escolher o que "cortar" (para usar o conhecido dito popular), o que se defende é que não se corte a carne dos filhos, vulneráveis e inocentes.

Em um tempo em que nunca se falou tanto na importância de priorizar a vida e a integridade física, urge lembrar que o pagamento da pensão alimentícia é essencial para a manutenção dessas duas condições básicas do ser humano. Não é por outra razão que são direitos fundamentais, de modo que os pagamentos que garantem sua efetivação não podem ser suspensos, reduzidos e alterados sem a mais completa avaliação de fundamentos e provas.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ)

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    é professora da graduação e da pós-graduação strictu sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Conselheira da OAB/PR. Diretora do Departamento de Direito Civil do Instituto dos Advogados do Paraná. Coordenadora da Clínica Jurídica Advocacia Disruptiva e do Observatório jurisprudencial em Direito de Família e Sucessões junto ao Núcleo de Prática Jurídica da UFPR. Advogada. Mediadora da ARBITAC e da CAMFIEP.

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