Opinião

A política é essencial à saúde e ao enfrentamento de crises

Autor

  • Raquel Cavalcanti Ramos Machado

    é mestre em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará doutora em Direito pela USP advogada ex-coordenadora do mestrado e do doutorado em Direito na UFC ex-chefe do departamento de Direito Público por dois mandatos professora de Direito Eleitoral Direito Administrativo e Teoria da Democracia da UFC visiting research scholar da Wirtschaft Universistat Vienna (2015 e 2016) professora pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade Paris Descartes (2017) professora pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Firenze (2018) membro do Instituto Cearense de Direito Eleitoral (Icede) e da Comissão de Direito Eleitoral da OAB coordenadora da área acadêmica da Transparência Eleitoral Brasil e membro da Abradep.

14 de abril de 2020, 14h40

A relevância dos problemas trazidos pela pandemia do coronavírus relativizou e empalideceu grandes questões. Ante a imponência dos assuntos vida, saúde, calamidade e sistema público de saúde, quase todos os outros temas se banalizam, como é o caso de alguns problemas econômicos. Nesse mesmo contexto, a política parece ser sem importância, assim como assuntos acessórios dela decorrentes, tais quais as eleições e mais ainda os fundos de financiamento da política.

Um questionamento parece imediato: para que um fundo para a política quando a vida grita, e o Estado precisa de valores necessários à aquisição de produtos para a prestação do serviço de saúde?

A resposta que parece óbvia a um primeiro momento, de que o fundo deve ser logo de imediato destinado à saúde, talvez mereça, porém, algumas reflexões.

A política é relevante mesmo diante das situações mais extremas. Aliás, talvez ela seja mais relevante em situações extremas. Abdicar da política é aceitar que as questões sejam tomadas por um único centro decisório, sem interferência de opiniões opostas, sem ponderações sobre as complexidades de cada escolha.

É interessante, a propósito, lembrar a observação feita por Hannah Arendt em relação à situação dos judeus durante o período nazista. Logo num primeiro momento, eles não se aperceberam da importância de estar na política, do exercício de direitos políticos e de ocupar centros do poder decisório. Fora desse cenário, ficaram sujeitos à retirada dos demais direitos. Como ela relata:

"o antissemitismo alcançou seu clímax quando os judeus haviam, de modo análogo, perdido as funções públicas e a influência, e quando nada lhes restava senão a riqueza".[2]

Precisando da política, necessita-se do aparato que a sustenta. Ditaduras são mais simples e baratas do que democracias. O fundo partidário ou o fundo de financiamento de campanhas seriam impensáveis realmente em um regime autoritário. Não havendo eleições, claro, não há necessidade de seu financiamento.

Seja como for, diante do cenário de pandemia, o valor poderia logo ser destinado inteiramente à saúde, as eleições adiadas, os mandatos alongados, e depois, já com mais calma, e a situação estabilizada, a quantia respectiva poderia ser retomada. Esse raciocínio, porém, merece duas ponderações. Quando as pessoas falam em alongar mandatos, elas não consideram o valor categórico da periodicidade das eleições como fundamental à república, e ignoram também que muitos municípios podem estar sendo dirigidos por pessoas sem habilidade para gerir devidamente a situação, sujeitando o povo a um sofrimento maior, e retirando o direito de mudar seus dirigentes. Além disso, quando uma verba é retirada de uma dotação orçamentária dificilmente retorna para o destino inicial. Ou seja, o valor do fundo provavelmente seria reposto com mais custo para a sociedade.

Num país carente de tantas ações governamentais, a destinação de quantias elevadas aos fundos traz indignação, mesmo em época de normalidade. Poucos têm maturidade cívica e teórica para compreender o custo da democracia.  Ao cidadão comum parece agressivo destinar essa verba a partidos e candidatos, sobretudo considerando a falta de transparência em seu uso, e a crise de legitimidade da classe política. Talvez essa crise leve a se repensar sobre as fontes do financiamento da política, dado que a natureza pública do fundo somente se intensificou após a decisão do Supremo que declarou inconstitucional o financiamento de campanha por pessoas jurídicas. De toda forma, diante dessa decisão do STF e na ausência de outro regramento jurídico que discipline o financiamento da política, a falta de fundos públicos fará com que apenas pessoas já com condição econômica sejam capazes de custear gastos de campanha.

Seria possível pensar em baratear campanhas e em economizar na realização de atividades partidárias. Dado que sacrifícios devem ser feitos por todos em período de crise, ainda mais dessa magnitude, destinar parte dos dois fundos seria a saída mais equilibrada.  Mas nesse caso ou mesmo na hipótese de transferência integral, tal decisão caberia ao Poder Legislativo, por lei, em atendimento à pressão social e ao jogo político democrático e não ao Poder Judiciário, como já se teve exemplo, em algumas decisões de juízes federais. A atribuição de elaboração do Orçamento pelo Poder Legislativo tem um sentido histórico desde a Magna Carta de João Sem Terra, como forma de fazer com que as receitas e gastos públicos estejam previstos em norma elaborada pelos representantes do povo. O Poder Judiciário não tem competência para interferir em questões orçamentárias genéricas, sem que essa interferência se destine ao atendimento específico de um direito fundamental lesionado. A questão orçamentária requer uma compreensão da globalidade das receitas e despesas, com contrapartida para cada nova receita gerada, competência essa que dificilmente é bem desenvolvida pelo Poder Judiciário em seu ativismo.

De qualquer forma, não importa a decisão tomada, é importante ter em mente o caráter excepcional de medidas dessa natureza em uma democracia (redirecionamento de fundo eleitoral, possível adiamento das eleições como já tratamos em outro artigo), devendo-se refletir com rigor sobre os limites que devem ter. Pensar no futuro eleitoral é o que garante a democracia.

A democracia é, de fato, um regime político caro e complexo. Sua construção é lenta e diretamente dependente da educação política de um povo e do caráter dos líderes eleitos, portanto, da sua confiabilidade após as eleições. É possível que muitos cidadãos se revoltem com os eleitos sem condições técnicas de liderar ou, pior, que traem a confiança moral neles depositada, gerando revoltas e frustrações dentro do regime democrático, mas não fosse ele, não poderíamos sequer refletir livremente sobre o destino de verbas orçamentárias na gestão do interesse público, nem discutir a melhor forma de combater a pandemia. Só nos caberia aceitar a decisão tomada pelo Governo, qualquer que fosse ela, ainda que envolvesse nem debater o assunto[3]. Devemos assim recordar a lição de Manuel Castells, segundo a qual “aprender a viver no caos talvez não seja tão nocivo quanto conformar-se à disciplina de uma ordem”[4], e seguir aprimorando nosso sistema democrático, acolhendo e integrando seus dilemas[5], ao invés de cultivar qualquer ilusão de autocracia. Quando se insiste que “não há solução fora da política”[6], aqui no bom sentido de política[7], é por tratar-se de uma histórica verdade da experiência. Combatamos, portanto, o corona, sem esquecermos a importância da política.

 


[2]ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo.

Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 24.

[3] Interessante observar que alguns regimes fechados negaram inicialmente a propagação do vírus, e no Turcomenistão, por exemplo, o próprio uso da palavra foi proibido. https://super.abril.com.br/sociedade/quais-paises-ainda-nao-tem-casos-de-coronavirus/, acessado em 13/04/2020.

[4] Ruptura: A crise da democracia liberal, Manuel Castells, Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 148.

[5] MOUFFE, Chantal. The Democratic Paradox. London: Verso, 2000, p. 135.

[6] É importante, a propósito, não confundir a relevância da política no trato da saúde e no enfrentamento de crises, com a possibilidade da politização de temas que devem ser encarados já como escolhas sociais. A política, por exemplo, deve se atentar à Ciência e seguir suas razões. Apenas para concretizar tais razões, sem polarizar cenários já arquitetados, deve-se valer da política, para, por exemplo, negociar a compra de medicamentos, decidir sobre os caminhos menos tormentosos para atingir determinados fins sociais, como, no caso, para reduzir a propagação do vírus.

[7] A que faz referência Hannah Pitkin, por exemplo, quando afirma que política é a combinação de barganhas e compromissos diante de acordos irresolúveis e conflituosos a serem feitos. PITKIN, Hanna Fenitchel. The Concept of Representation. Berkeley: University of California Press, 1967, p. 218.

Autores

  • é advogada, professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do grupo de pesquisa e extensão em Direito Eleitoral "Ágora: Educação para a cidadania: denúncia e esperança" e do projeto "Observatório Eleitoral do Ceará" (www.observatorioeleitoralce.com).

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