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Raquel Machado: A política é essencial à saúde

14 de abril de 2020, 14h40

Por Raquel Cavalcanti Ramos Machado

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A relevância dos problemas trazidos pela pandemia do coronavírus relativizou e empalideceu grandes questões. Ante a imponência dos assuntos vida, saúde, calamidade e sistema público de saúde, quase todos os outros temas se banalizam, como é o caso de alguns problemas econômicos. Nesse mesmo contexto, a política parece ser sem importância, assim como assuntos acessórios dela decorrentes, tais quais as eleições e mais ainda os fundos de financiamento da política.

Um questionamento parece imediato: para que um fundo para a política quando a vida grita, e o Estado precisa de valores necessários à aquisição de produtos para a prestação do serviço de saúde?

A resposta que parece óbvia a um primeiro momento, de que o fundo deve ser logo de imediato destinado à saúde, talvez mereça, porém, algumas reflexões.

A política é relevante mesmo diante das situações mais extremas. Aliás, talvez ela seja mais relevante em situações extremas. Abdicar da política é aceitar que as questões sejam tomadas por um único centro decisório, sem interferência de opiniões opostas, sem ponderações sobre as complexidades de cada escolha.

É interessante, a propósito, lembrar a observação feita por Hannah Arendt em relação à situação dos judeus durante o período nazista. Logo num primeiro momento, eles não se aperceberam da importância de estar na política, do exercício de direitos políticos e de ocupar centros do poder decisório. Fora desse cenário, ficaram sujeitos à retirada dos demais direitos. Como ela relata:

"o antissemitismo alcançou seu clímax quando os judeus haviam, de modo análogo, perdido as funções públicas e a influência, e quando nada lhes restava senão a riqueza".[2]

Precisando da política, necessita-se do aparato que a sustenta. Ditaduras são mais simples e baratas do que democracias. O fundo partidário ou o fundo de financiamento de campanhas seriam impensáveis realmente em um regime autoritário. Não havendo eleições, claro, não há necessidade de seu financiamento.

Seja como for, diante do cenário de pandemia, o valor poderia logo ser destinado inteiramente à saúde, as eleições adiadas, os mandatos alongados, e depois, já com mais calma, e a situação estabilizada, a quantia respectiva poderia ser retomada. Esse raciocínio, porém, merece duas ponderações. Quando as pessoas falam em alongar mandatos, elas não consideram o valor categórico da periodicidade das eleições como fundamental à república, e ignoram também que muitos municípios podem estar sendo dirigidos por pessoas sem habilidade para gerir devidamente a situação, sujeitando o povo a um sofrimento maior, e retirando o direito de mudar seus dirigentes. Além disso, quando uma verba é retirada de uma dotação orçamentária dificilmente retorna para o destino inicial. Ou seja, o valor do fundo provavelmente seria reposto com mais custo para a sociedade.

Num país carente de tantas ações governamentais, a destinação de quantias elevadas aos fundos traz indignação, mesmo em época de normalidade. Poucos têm maturidade cívica e teórica para compreender o custo da democracia.  Ao cidadão comum parece agressivo destinar essa verba a partidos e candidatos, sobretudo considerando a falta de transparência em seu uso, e a crise de legitimidade da classe política. Talvez essa crise leve a se repensar sobre as fontes do financiamento da política, dado que a natureza pública do fundo somente se intensificou após a decisão do Supremo que declarou inconstitucional o financiamento de campanha por pessoas jurídicas. De toda forma, diante dessa decisão do STF e na ausência de outro regramento jurídico que discipline o financiamento da política, a falta de fundos públicos fará com que apenas pessoas já com condição econômica sejam capazes de custear gastos de campanha.

Seria possível pensar em baratear campanhas e em economizar na realização de atividades partidárias. Dado que sacrifícios devem ser feitos por todos em período de crise, ainda mais dessa magnitude, destinar parte dos dois fundos seria a saída mais equilibrada.  Mas nesse caso ou mesmo na hipótese de transferência integral, tal decisão caberia ao Poder Legislativo, por lei, em atendimento à pressão social e ao jogo político democrático e não ao Poder Judiciário, como já se teve exemplo, em algumas decisões de juízes federais. A atribuição de elaboração do Orçamento pelo Poder Legislativo tem um sentido histórico desde a Magna Carta de João Sem Terra, como forma de fazer com que as receitas e gastos públicos estejam previstos em norma elaborada pelos representantes do povo. O Poder Judiciário não tem competência para interferir em questões orçamentárias genéricas, sem que essa interferência se destine ao atendimento específico de um direito fundamental lesionado. A questão orçamentária requer uma compreensão da globalidade das receitas e despesas, com contrapartida para cada nova receita gerada, competência essa que dificilmente é bem desenvolvida pelo Poder Judiciário em seu ativismo.

De qualquer forma, não importa a decisão tomada, é importante ter em mente o caráter excepcional de medidas dessa natureza em uma democracia (redirecionamento de fundo eleitoral, possível adiamento das eleições como já tratamos em outro artigo), devendo-se refletir com rigor sobre os limites que devem ter. Pensar no futuro eleitoral é o que garante a democracia.

A democracia é, de fato, um regime político caro e complexo. Sua construção é lenta e diretamente dependente da educação política de um povo e do caráter dos líderes eleitos, portanto, da sua confiabilidade após as eleições. É possível que muitos cidadãos se revoltem com os eleitos sem condições técnicas de liderar ou, pior, que traem a confiança moral neles depositada, gerando revoltas e frustrações dentro do regime democrático, mas não fosse ele, não poderíamos sequer refletir livremente sobre o destino de verbas orçamentárias na gestão do interesse público, nem discutir a melhor forma de combater a pandemia. Só nos caberia aceitar a decisão tomada pelo Governo, qualquer que fosse ela, ainda que envolvesse nem debater o assunto[3]. Devemos assim recordar a lição de Manuel Castells, segundo a qual “aprender a viver no caos talvez não seja tão nocivo quanto conformar-se à disciplina de uma ordem”[4], e seguir aprimorando nosso sistema democrático, acolhendo e integrando seus dilemas[5], ao invés de cultivar qualquer ilusão de autocracia. Quando se insiste que “não há solução fora da política”[6], aqui no bom sentido de política[7], é por tratar-se de uma histórica verdade da experiência. Combatamos, portanto, o corona, sem esquecermos a importância da política.

 


[2]ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo.

Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 24.

[3] Interessante observar que alguns regimes fechados negaram inicialmente a propagação do vírus, e no Turcomenistão, por exemplo, o próprio uso da palavra foi proibido. https://super.abril.com.br/sociedade/quais-paises-ainda-nao-tem-casos-de-coronavirus/, acessado em 13/04/2020.

[4] Ruptura: A crise da democracia liberal, Manuel Castells, Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 148.

[5] MOUFFE, Chantal. The Democratic Paradox. London: Verso, 2000, p. 135.

[6] É importante, a propósito, não confundir a relevância da política no trato da saúde e no enfrentamento de crises, com a possibilidade da politização de temas que devem ser encarados já como escolhas sociais. A política, por exemplo, deve se atentar à Ciência e seguir suas razões. Apenas para concretizar tais razões, sem polarizar cenários já arquitetados, deve-se valer da política, para, por exemplo, negociar a compra de medicamentos, decidir sobre os caminhos menos tormentosos para atingir determinados fins sociais, como, no caso, para reduzir a propagação do vírus.

[7] A que faz referência Hannah Pitkin, por exemplo, quando afirma que política é a combinação de barganhas e compromissos diante de acordos irresolúveis e conflituosos a serem feitos. PITKIN, Hanna Fenitchel. The Concept of Representation. Berkeley: University of California Press, 1967, p. 218.