Paradoxo da Corte

Em defesa da constitucionalidade do julgamento colegiado virtual

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

14 de abril de 2020, 8h00

Na edição de quinta-feira passada (9/4), o caderno especial Aliás do Estadão publicou formidável artigo de Mario Vargas Llosa (O irmão Justiniano), no qual ele confessa, com muita convicção, que os demônios da peste que assola o mundo terão realizado um bom trabalho se, ao menos, pequena parcela da sociedade, graças à quarentena forçada, estiver se dedicando a boa leitura!

De fato, desfrutando desse período de inusitado isolamento e enorme consternação, também aproveitei para colocar minha leitura em dia, buscando passar o tempo, debruçando-me sobre alguns livros que havia adquirido para oportuna apreciação. Entre eles, destaco a recente obra do professor inglês Richard Susskind, intitulada Online Courts and the Future of Justice (Oxford, 2019). Trata-se de trabalho instigante e atualíssimo, no qual o autor vaticina que, num futuro próximo, em prol do maior acesso à justiça e, ainda, em atendimento ao princípio da duração razoável do processo, não existirão mais julgamentos presenciais, mas apenas e tão-somente virtuais.

Diante dessa premissa, Susskind suscita, no âmbito do processo inglês, a questão da legalidade dos julgamentos virtuais, à luz do famoso artigo 6º da Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos Humanos (Convenção de Roma), que, além de outras garantias processuais, assegura às partes a publicidade dos julgamentos.

Cumpre lembrar que o artigo 93, inciso IX, da nossa Constituição da República, igualmente, determina, como regra, a publicidade, nos seguintes termos: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade…”.

Daí o natural interesse em examinar as ponderações de Susskind sobre essa importante questão. Em primeiro lugar, observa ele a distância temporal em que redigido aquele referido tratado europeu dos dias atuais. Em 1950, ninguém poderia imaginar que os julgamentos pudessem ser realizados em ambiente virtual, à distância, por meio eletrônico. Todavia, exorta que não se pode confundir “presença física” com “publicidade”. A rigor, é igualmente insustentável supor que, se as portas dos tribunais estivessem abertas (open justice), o julgamento seria efetivamente mais justo (fair trial). Na verdade, inexiste qualquer entrave técnico que impeça o acesso online de eventuais interessados às sessões remotas. Ademais, para Susskind, não tem sentido o julgamento presencial, quando a lei não autoriza, durante o julgamento, a intervenção dos advogados dos litigantes. Observa ainda que, em geral, no sistema processual do commom law, não há qualquer disposição legal impondo que a discussão da causa, em grau de apelação, seja feita em sessão pública. Após os arrazoados apresentados pelas partes, o julgamento do recurso se efetiva em câmara secreta, proclamando-se o resultado, pelos meios normais de comunicação processual, até que seja publicado o inteiro teor da decisão.

A predominância do processo escrito em segundo grau de jurisdição também prevalece na experiência jurídica dos Estados Unidos da América. A esse respeito, recomendo um interessante artigo escrito pelo meu colega de magistério, professor Carlos Bastide Horbach (Qual é a utilidade da sustentação oral nos tribunais?, Revista ConJur, 9/2/2014). Relata ele que, há alguns anos, durante um julgamento em Brasília, no Supremo Tribunal Federal, o juiz Clifford Wallace, da Corte de Apelação do 9º Circuito dos Estados Unidos, então presente à sessão como visitante, ficou muito surpreso quando lhe foi explicado o procedimento dos respectivos julgamentos, ou seja, a apresentação do sumário da causa (relatório), seguindo-se eventual sustentação oral e voto do relator, com a imediata e pública discussão e colheita dos votos, na maioria das vezes, já redigidos, dos demais ministros. O juiz americano, perplexo, perguntou então: qual a utilidade da sustentação oral? E isso, porque “no sistema judicial americano, seja na Suprema Corte ou em tribunais de apelação, a discussão dos casos sub judice se dá em sessões fechadas das quais participam somente os juízes, as chamadas conferências. Nelas, não são admitidos nem mesmo assessores ou garçons, sendo que, na Suprema Corte, cabe ao associate justice mais moderno a pitoresca tarefa de servir água para os colegas, abrir a porta da sala de conferências e atender ao telefone… Antes das conferências, porém, e após a distribuição de memoriais — briefs — ocorre a única parte pública do processo decisório dos tribunais americanos, consistente nos oral arguments, em que os advogados das partes são chamados a apresentar suas razões perante o tribunal. Nessa ocasião, são questionados pelos juízes acerca dos pontos controversos da demanda, estabelecendo-se, assim, um debate efetivo sobre o tema em análise”.

Entre nós, entendo que seria ideal esse sistema, simplesmente porque menos, muito menos, hipócrita! No entanto, o argumento da imaginada relevância — mesmo na atualidade — da sustentação oral, redundaria num óbice aos julgamentos virtuais quando esta vem admitida pela lei processual.

Bem equacionada a questão, anoto, em primeiro lugar, que, no direito brasileiro, não há qualquer texto legal impositivo de que a discussão sobre o recurso em julgamento seja feita em sessão presencial. Veja-se bem: a nossa Constituição impõe, expressamente, a “publicidade do julgamento” e não dos debates que antecedem o veredito! No Brasil, a discussão da causa, vale dizer, do recurso, em sessão aberta a quem quer que seja, tem origem na praxe do direito lusitano, que foi recepcionada pelo nosso sistema jurídico.

Se realmente houvesse exigência de que os julgamentos fossem públicos, as sentenças somente seriam válidas quando proferidas em audiência, na presença das partes! Todos nós sabemos que as sentenças são, na grande maioria das vezes, “publicadas em cartório”, com a subsequente intimação pelo Diário da Justiça, “impresso ou eletrônico”, nos termos dos artigos 231, inciso VII, e 270, do Código de Processo Civil. Publica-se, portanto, o ato decisório, longe da presença dos advogados das partes (portanto, sem publicidade), que tomarão ciência (e aí sim é dada a devida publicidade!) pela respectiva intimação.

Ademais, na pesquisa que realizei a propósito de toda essa importante temática, constatei outrossim que a intervenção dos advogados, em segundo grau, ao ensejo do julgamento da causa, não provém de nossa tradição luso-brasileira. Não constava do Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, que criou o Supremo Tribunal Federal e tampouco de seu regimento interno de 1891, bem como da revisão deste, feita em 1909.

A primeira referência à possibilidade de sustentação oral perante os tribunais, ao que parece, é a do artigo 1.286 do Código do Processo do Estado da Bahia, de 1916, que fora redigido e depois comentado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Eduardo Espínola, ao preceituar: “Na ocasião do julgamento, o presidente mandará apregoar as partes pelo porteiro, e, achando-se ellas presentes por seus advogados, ser-lhe-ás dada a palavra, após a leitura do relatório para, si quiserem, fazerem as considerações que lhes aprouver, falando o apellante em primeiro lugar”.

Bem mais tarde, provavelmente sob a influência do ideário de Giuseppe Chiovenda sobre os consectários da oralidade, então muito difundido entre alguns processualistas sul-americanos e, em particular, brasileiros, o jurista Pedro Batista Martins, guindado à função de legislador, admitiu a sustentação oral em nosso primeiro diploma processual federal, promulgado pelo Decreto-lei 1.608, de 18 de setembro de 1939. Dispunha, com efeito, o artigo 875 do Código de 1939: “Na sessão de julgamento, feita pelo relator a exposição dos fatos, o Presidente, se o recurso não for de agravo ou embargos declaratórios, dará a palavra sucessivamente ao recorrente e ao recorrido, pelo prazo improrrogável de quinze (15) minutos a cada um, para a sustentação das respectivas conclusões, passando o Tribunal a julgar, de acordo com o seu regimento interno”.

No ano seguinte, em 1940, o Supremo Tribunal Federal reformou o seu regimento interno, para adotar a nova regra no artigo 184, que então passou a admitir a sustentação oral após o relatório do recurso em julgamento.

Alguns anos depois, em 1951, o advogado da turma de 1929 das Arcadas de São Francisco e deputado federal por São Paulo (PSP), Castilho Cabral, apresentou o Projeto de Lei 44/51, visando a alterar a redação do supra transcrito artigo 875, a partir de uma sugestão do renomado advogado e professor Noé Azevedo, a permitir a sustentação oral após o voto do relator. Segundo consta da proposta, publicada no Diário do Congresso Nacional, de 31 de março de 1951, a sustentação oral somente teria efetiva utilidade se o advogado pudesse intervir, não para debater, mas sim para apontar alguma omissão ou equívoco de fato que pudesse chamar a atenção, não apenas do relator, mas sobretudo dos demais julgadores. Tal projeto foi aprovado, transformando-se na Lei 2.970, sancionada, em 24 de novembro de 1956, pelo presidente Juscelino Kubitschek, que alterou a redação do artigo 875, passando a admitir a sustentação oral após o voto proferido pelo relator: “Na sessão de julgamento, feita a exposição dos fatos e proferido o voto pelo relator, o Presidente, se o recurso não for de embargos declaratórios, dará sucessivamente, ao recorrente e ao recorrido, a palavra pelo prazo improrrogável de quinze minutos a cada um, para a sustentação das respectivas conclusões, prosseguindo-se de acordo com o regimento interno do Tribunal, depois de dada novamente a palavra ao relator para que, expressamente, confirme ou reconsidere o seu voto”.

Destaco que Noé Azevedo, ao sugerir tal modificação, na privilegiada condição de presidente do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, secção de São Paulo, segundo consta da justificativa do referido projeto de lei, baseara-se na premissa de que, nos domínios do Tribunal de Justiça de São Paulo, já àquela época, em que, por certo, imperava uma relação de muito maior cordialidade entre juízes e advogados do que lamentavelmente se constata na atualidade, “um simples aparte do advogado procurando desfazer um erro ou equívoco do relator, possibilitando aos demais desembargadores, que não examinaram os autos do processo, melhor conhecimento da causa, era proibido com tal rigor, que, quando o advogado a ele se atreve, por mais experiente que seja, é recebido como uma afronta ao tribunal”!

Não obstante, essa prerrogativa, de sustentação após o voto do relator, foi desprezada pelo revogado Código de Processo Civil de 1973, uma vez que o artigo 554, previa que: “depois de feita a exposição da causa pelo relator, o presidente, se o recurso não for de embargos declaratórios ou de agravo de instrumento, dará a palavra, sucessivamente, ao recorrente e ao recorrido…”.

Cumpre-me relembrar que o vigente Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), no artigo 7º, inciso IX, de sua redação original, ressuscitara aquela benfazeja disciplina do diploma de 1939, ao prescrever, entre os direitos do advogado, o de: “sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se prazo maior for concedido”.

Essa regra, contudo, que jamais tivera eficácia, foi declarada inconstitucional, em 2006, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento, por maioria, em sessão plenária, da ADI 1.105, então ajuizada pelo Procurador-Geral da República, da relatoria designada do ministro Ricardo Lewandowski, forte no inconsistente fundamento de que a sustentação oral após o voto do relator, “afronta o devido processo legal, além de poder causar tumulto processual, uma vez que o contraditório se estabelece entre as partes”. Quando nada, restaram desconsideradas a realidade e a cooperação processual que, para a moderna ciência do processo, deve pautar o comportamento de todos os protagonistas do processo.

O artigo 937 do vigente Código de Processo Civil e os regimentos internos dos tribunais, de um modo geral, continuam autorizando a sustentação oral imediatamente após a leitura do relatório pelo relator — que hoje simplesmente não é feita, ex officio, ou porque “determina-se” a dispensa pelo advogado que, presente na tribuna, irá sustentar!

Essa é a realidade!

Convido os meus estimados colegas a uma reflexão em tom provocativo: é realmente útil a sustentação oral nos dias que correm?

Vamos imaginar que sim, sobretudo perante as turmas julgadoras que prestam o obséquio da atenção aos nossos argumentos… De qualquer modo, no formato atual, como, geralmente, não mais se apresenta o relatório, nada pode o advogado fazer quando o relator comete erro ou significativa omissão sobre algum fato relevante da questão! Apenas para invocar singelo exemplo da minha experiência: recentemente, sustentei perante o prestigioso Tribunal de Justiça bandeirante, num recurso em mandado de segurança contra ato judicial proferido em segundo grau de jurisdição. Após a minha sustentação, o relator, como inequívoca advertência, dirigiu-se a mim, asseverando que o meu constituinte havia se precipitado na impetração do mandado de segurança, uma vez que, com a oposição de embargos de declaração contra a decisão atacada, o prazo para o mandamus estava interrompido! É certo que o desembargador relator, ao fazer tal afirmação, faltou à aula da faculdade em que se formou, porque simplesmente mostrou desconhecer que o prazo para a impetração do mandado de segurança é decadencial (artigo 23 da Lei 12.016/2009) e, portanto, não se interrompe! Os embargos de declaração não são dotados de efeito suspensivo (artigo 1.026 do Código de Processo Civil). Não sabe ele, outrossim, que a ação de mandado de segurança, como é cediço, não se equipara a recurso! Pior: os demais integrantes da turma julgadora acompanharam o relator, porque, à toda evidência, sem qualquer manifestação, igualmente, devem também ter faltado à mesma aula ou não prestado a devida atenção às minhas palavras! E, assim, sentindo-me absolutamente impotente, não pude ou não tive a ousadia de requerer a palavra pela ordem… Tenho, pois, a mais plena convicção, de advogado militante há mais de 40 anos, que de nada adiantaria qualquer objeção que pudesse fazer, no sentido apenas e tão-somente de cooperar com o julgamento!

Dúvida não há de que, cada um de nós, advogados, poderia revelar as suas infindáveis situações pessoais de profunda decepção, não propriamente com o resultado do julgamento, mas, no limite, com o absoluto descaso ao direito do jurisdicionado que bate às portas dos tribunais!

Assim, nesse contexto de pura realidade, diante do que procurei expor — embora sinceramente lamente muito —, apresentam-se três inexoráveis conclusões, a saber:

a) em primeiro lugar, não há razão alguma para oposição ao julgamento virtual de todos os recursos nos quais não é permitida a sustentação oral, porque o julgamento presencial será sempre igual;

b) com absoluta certeza, somente valerá a pena apresentar oposição, quando o advogado da parte considerar a real probabilidade de que, perante determinadas câmaras julgadoras, pelo compromisso de seus respectivos integrantes com a nobre profissão que exercem, será ouvido com a devida atenção; e, por fim,

c) mesmo nessa hipótese, não se descortina qualquer obstáculo considerável para que a sustentação oral seja efetivada em ambiente virtual, como, aliás, admitido pelo artigo 937, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil, e secundado pelo próprio Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em recente ofício enviado ao presidente do Superior Tribunal de Justiça, no qual solicitada a regulamentação da realização de sustentação oral por meio da implantação de sessões de julgamento por videoconferência, frisando-se, ainda, que tal requerimento, é formulado “no interesse de aprimorar o exercício da jurisdição nesse egrégio Superior Tribunal de Justiça, observando o interesse da promoção de maior publicidade, sem prejuízo das prerrogativas do advogado”.

No entanto, a despeito de todas estas considerações conclusivas, tenho convicção de que, no tocante às atribuições do Supremo Tribunal Federal, nem mesmo a grave crise gerada pela pandemia justifica a ampliação do rol de processos submetidos ao plenário virtual, sem qualquer participação física dos advogados, sobretudo aqueles de maior relevância jurídica, como, por exemplo, as ações de controle concentrado de constitucionalidade e os recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida.

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