Opinião

Considerações sobre propostas de mudanças tributárias em face da crise

Autores

  • Evandro Zaranza

    é mestre em Direito professor da UNI-RN e ex-presidente da Comissão de Defesa do Contribuinte da OAB-RN.

  • André Elali

    é professor associado de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) visiting scholar na Queen Mary University of London e no Max-Planck-Institüt für Steuerrecht.

14 de abril de 2020, 10h24

O momento de crise global, instaurada com a Covid-19, restaurou um debate no Brasil a respeito de dois temas tributários complexos e controversos: deve-se ou não instituir o IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas) e como aplicar-se-ia um eventual empréstimo compulsório? Pretendemos, em breves linhas, expor algumas considerações a respeito de tais temas diante da premissa da grave crise que vivenciamos.

É lição clássica na doutrina que a tributação é o sistema mais estável de sustentação financeira dos Estados [1] e deve visar, com a sua função secundária, à regulação dos mercados, isto é, à eliminação de falhas dos mecanismos de mercado. [2] No Brasil, o sistema foi moldado de forma a preservar a Federação, por isso distribuiu de modo rígido as rendas tributárias. A Constituição outorga à União Federal a competência para instituir o IGF e o empréstimo compulsório, tributos que passam a ser discutidos em projetos de leis bastante controversos.

Em relação ao primeiro dos temas suscitados, tem-se que a discussão de criação do IGF não tem muita pertinência com a crise atual (Covid-19). E isso porque: 1) não teria efeitos práticos sobre os impactos gerados pela Covid-19 porque tal modalidade de tributo deveria respeitar a anterioridade anual e também a chamada anterioridade nonagesimal, além de atender à vedação da irretroatividade tributária; em outros dizeres, as obrigações somente valeriam em 2021, não gerando receitas imediatamente, afastando-se a conexão com eventual despesa com a saúde neste momento de crise; 2) o aumento de tributos acaba gerando diminuição de arrecadação em longo prazo (curva de Lafer), porquanto os agentes econômicos acabam mudando seus comportamentos no mercado para maximizar suas eficiências, especialmente em épocas de crise e instabilidade do sistema econômico; e 3) tributar uma "grande fortuna" tem um enorme problema prático quando ela não está depositada num banco, e, sim, representada por patrimônio que é difícil de ser avaliado. Não por outra razão, o professor Ricardo Lobo Torres [3], durante sua importante obra, destacou que essa modalidade de imposto "tem se mostrado frustrante e, não raro, retórica e ideológica. Impostos sintéticos sobre o patrimônio são velharias conhecidas desde a Idade Média, que aos poucos foram substituídos por tributos mais racionais. (…) É um tributo arcaico, injusto, de difícil administração e prejudicial à economia." Outro aspecto é a vedação constitucional prevista no artigo 167, inciso IV, quanto à vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, o que dificulta a utilização do IGF para o combate à crise da Covid-19.

Popular na década de 90, o imposto foi adotado por 12 países da Europa e hoje apenas quatro o mantêm, sendo pouco efetivo e gerando uma evasão de contribuintes (ou erosão das bases). A França é um exemplo da fuga de contribuintes. A migração do capital para domicílios fiscais menos onerosos é um fato incontroverso, gerando, inclusive, agravamento do que se denomina de concorrência fiscal. [4] O conflito entre jurisdições fiscais é tema recorrente no direito internacional e suscita enormes consequências negativas para o controle de distorções econômicas e sociais, justificando mecanismos como o BEPS na OCDE [5] em face da disruptura de algumas atividades econômicas (economia digital), da mobilidade do capital e da erosão das bases tributárias. Aliás, diversas jurisdições adotaram uma política fiscal nas últimas duas décadas com retórica ideológica em favor da solidariedade fiscal, gerando a criação de impostos de solidariedade, por isso incidindo sobre "fortunas". Ocorre que esse método de imposição fiscal acaba sendo expressão de uma ideologia socialista. [6] O combate aos paraísos fiscais e a constatação de ineficácia desse tributo que onera novamente uma base já onerada motivaram seu fim em alguns países.  Por outro lado, França, Itália, Bélgica  e Irlanda estabeleceram multas simbólicas (ao redor de 2%) aos contribuintes que trouxessem seu patrimônio evadido de volta às jurisdições de residência recentemente. Em outras palavras, "os direitos humanos são bons quando servem ao Estado Social, mas o mercado é melhor quando se pensa em termos hegemônicos empresariais globais"[7] A denúncia, como bem anotado por Fernando Zilveti, [8] alerta formuladores de política fiscal a pensar melhor suas fórmulas de distribuição de riqueza, mesmo que isso seja conveniente politicamente para aqueles de orientação socialista. O tributo capitário, portanto, é um mal de difícil reparação para o sistema tributário e para os direitos do contribuinte.

Em matéria de impostos, o legislador é obrigado a buscar uma circunstância que diferencie os que podem dos que não podem suportar os gastos públicos. O fato gerador dos impostos deve ser a existência de capacidade contributiva. Historicamente, a doutrina insere o imposto sobre "grandes fortunas" como um tributo sobre o patrimônio, não obstante as várias denominações recebidas nos diferentes sistemas fiscais. Na práxis, pergunta-se: como o IGF será, em sendo instituído, cobrado no Brasil? Quem tem "grande fortuna"? Na prática, esse imposto, no Brasil, acabaria por incidir sobre a classe média, já bastante onerada com os tributos sobre o consumo e sobre a renda. Seria caótico porque acabaria se tornando uma extensão dos tributos existentes e poderia assumir feições de verdadeiro confisco, porquanto essa forma de tributação do patrimônio sem bases claras remonta às sociedades agrárias, violando, quase sempre, as noções de capacidade contributiva e de igualdade. Isso foi discutido de modo profundo na Alemanha, onde o imposto sobre o patrimônio (Vermögensteuer) onerava cidadãos e empresas de modo global. O Tribunal Constitucional, entretanto, suspendeu a cobrança porque não há critérios claros e racionais para a avaliação das suas bases, o que o tornaria, nesse modelo, confiscatório e desigual. Enquanto não regulamentado o método de avaliação, o imposto não pode ser cobrado. O IGF, por outro lado, oneraria uma renda ou um patrimônio já tributados anteriormente. Isso coloca um ponto a ser confrontado com uma sociedade que baseia sua atuação na ordem econômica e nos limites do poder do Estado Fiscal.

Em suma, o IGF: 1) não atenderia à exigência de permitir aumento imediato de arrecadação para fazer face a despesas extraordinárias; 2) por se tratar de imposto, não poderia ter vinculação a fundos/gastos específicos; 3) geraria desestímulos num mercado já caracterizado por forte crise econômica e social; 4) poderia gerar distorções na tributação de patrimônio que já é onerado e que não teria o condão de se classificar como "grande fortuna"; 5) caracterizaria uma medida contrária a medidas de liberdade econômica e de valorização do investimento em momento de reorganização da economia nacional; e 6) poderia, em tese, violar as noções de igualdade fiscal e, como consequência, de capacidade contributiva.

Por outro lado, a instituição de empréstimo compulsório, do ponto de vista técnico, poderia se justificar em face da necessidade de eventual aumento de receita para enfrentamento da crise na saúde ou da própria economia. A Constituição outorga à União competência privativa, que somente poderá ser exercida nas exceções previstas no seu artigo 148, e desde que respeitadas as limitações ao poder de tributar próprias de tal espécie tributária. A finalidade de tal espécie de tributo é suprir despesas absolutamente necessárias e extraordinárias, sendo insubsistente o seu uso como forma de absorção de poder aquisitivo como buscado outrora, por meio da Medida Provisória 168/90, com vista ao controle da inflação, o mesmo se dizendo da simples antecipação de arrecadação.

Assim, o sistema constitucional permite a sua instituição nos seguintes moldes: calamidade pública, entendida não somente como catástrofes da natureza, mas qualquer evento cujos efeitos ponham em perigo o equilíbrio do organismo social ou o cerne econômico nacional; despesas extraordinárias, somente as absolutamente necessárias, após esgotados os fundos públicos, inclusive os de contingência. Faz-se imperativa a prova consistente da insuficiência do tesouro; guerras externas, com a noção aferida mediante análise das regras de direito internacional público, inegavelmente a hipótese mais grave; investimento público emergencial e de relevante interesse nacional: dada a amplitude interpretativa dos termos, faz-se necessária a observância de motivo cabal, periclitante, que permita a utilização do tributo em tela.

Dessa forma, percebe-se que, em casos excepcionais, está o ente tributante autorizado a se utilizar do empréstimo compulsório como forma de arrecadação. Tanto é que, nas três primeiras hipóteses acima aduzidas, não se obedece ao princípio da anterioridade, já que pela demora do processo legislativo a medida perderia, sem dúvida, sua eficácia. Na última hipótese, entretanto, para não abrir espaço à discricionariedade de se tributar alegando emergência ou relevante interesse nacional termos vagos, próprios de conceitos indeterminados que o direito utiliza para regular o sistema —, entende a maior parte da doutrina que se faz necessária a apuração desses requisitos pelo Poder Legislativo, como medida própria de cautela e de proteção aos direitos dos contribuintes.

Quanto à destinação do produto arrecadado, deve haver previsão específica na lei complementar disciplinadora que esta fará frente ao suprimento das despesas decorrentes do evento que motivou sua instituição, inadmitido o uso diverso, sob pena de inconstitucionalidade. Assim é que, no nascimento jurídico do tributo, como nas demais espécies tributárias, tem-se como sujeito ativo o Estado e passivo o particular que a ele se sujeita. Ocorre que, no âmbito do empréstimo compulsório, essa é somente uma primeira fase (tributária) de arrecadação. Dado o seu caráter restituível, há de ser iniciada, em um segundo momento, outra fase (administrativa), a de devolução dos valores recolhidos. Nesse segundo instante, portanto, deve necessariamente o fisco promover a devolução em moeda corrente, e devidamente corrigida. Esse ponto, não mais objeto de calorosos debates, foi deveras questionado quando da criação do empréstimo compulsório à Eletrobrás, que previu a restituição na forma de "obrigações da Eletrobrás", não em moeda corrente, com metodologia e índice próprios para correção monetária, tidos posteriormente pela jurisprudência como inidôneos. Situação também polêmica foi defrontada pela instituição de empréstimos compulsórios sobre aquisição de veículos e aquisição de combustíveis, no Decreto-Lei 2.288/86.

Dada a natureza sui generis da figura, pouco utilizada no Brasil, as controvérsias sobre sua criação ou aplicação têm sido uma constante. Ora se assemelhando a impostos, a empréstimos públicos, o empréstimo compulsório apresenta nuances variáveis, mas com estes inconfundíveis. Primeiramente, porque possui vinculação da receita à despesa que fundamentou sua instituição, e a segundo porque como espécie tributária não admite natureza simplesmente contratual, voluntária. No caminho entre arrecadar o tributo e simplesmente devolvê-lo ao contribuinte, há muitos passos a percorrer, todos esses muito próximos ao limite patrimonial do particular, do temido confisco, dos excessos ou arbitrariedades. Desde o método arrecadatório à forma de devolução, devem ser respeitados os princípios da tributação.

No momento de grave crise de saúde pública, com efeitos sociais e econômicos, justifica-se, de um ponto de vista técnico-jurídico, a instituição do empréstimo compulsório para fazer face a despesas com a calamidade instaurada, seja para investir em saúde para tutelar a sociedade, seja ainda para investir na recuperação da economia. Essas destinações, entretanto, têm de constar expressamente por se tratar de hipótese de tributo vinculado à despesa pública. Ademais, haveria de se aplicar as políticas tributárias em conformidade com a ordem econômica, evitando-se incoerências do sistema com sérios efeitos sociais e econômicos. A intersecção entre mecanismos fiscais, com controle adequado da despesa pública e o equilíbrio do mercado, é um caminho sem volta para a solução dos tantos problemas que afligem o país.

Entretanto, destaque-se o registro do professor Fernando Facury Scaff[9] de que "o enfrentamento desta crise não passa pelo aumento de tributos. Trata-se de um erro de perspectiva que pode ceifar vidas". Como bem acentuado, deve haver um debate sobre a despesa pública, centrando-se esforços na redução de gastos ineficientes e não prioritários. Esse tema envolveria uma reformulação, inclusive, da estrutura federativa. Assim, concordamos que, de um ponto de vista técnico, caberia a instituição de um novo tributo vinculado, mas que, do ponto de vista da economia e dos comportamentos sociais, não seria adequado aumentar a tributação, e, sim, reorganizar a despesa pública de modo a evitar desestímulos a um mercado em crise.

 


[1] Cf. Nicholas Kaldor. An Expenditure Tax. Oxon: Routledge, 2003, p. 173, Reprinted – First Edition – 1955.”

[2] Cf. Luís Eduardo Schoueri. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 4.

[3] Cf. Ricardo Lobo Torres. O Imposto sobre Grandes Fortunas no Direito Comparado, pp. 96-107, in: A Reforma do Sistema Tributário, Coordenação: Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo: RT, 2005.

[4] Cf. André Elali. A Crise Financeira Global sob a Ótica da Concorrência Fiscal Internacional. In: Revista Direito Tributário Atual n. 23. São Paulo: Dialética/IBDT, 2009, pp. 88-ss.

[5] Importante consignar o ceticismo nesses mecanismos de controle da concorrência fiscal, como registrado por Joacim Englisch e Anzhela Yevgenyeva, in: The “Upgraded”Strategy Against Harmful Tax Practices Under the BEPS Action Plan. In British Tax Review vol. 58, (620/637) p. 636.

[6] SCHMIDT, Jean. L’impôt. Paris: Dalloz, 1995, p. 54.

[7] ZIEGLER, Jean. Das Imperium der Schande, der Kampf gegen Armut und Unterdrückung. Munique: Random House, 2008, p. 303.

[8] ZILVETI, Fernando. A Evolução Histórica da Teoria da Tributação – Análise das estruturas sócio-econômicas na formação do Sistema Tributário Global. Tese de Livre-Docência Departamento de Direito Financeiro e Tributário. São Paulo: USP, 2012, pp. 345-ss.

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