Opinião

A pandemia como caminho para o fim da banalização do direito à saúde

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14 de abril de 2020, 7h01

A pandemia que vem assolando o mundo trouxe consigo inúmeros desdobramentos, das mais diversas ordens: política, econômica e social. Chama a atenção, entre eles, a comoção e a mobilização generalizadas diante da ineficácia dos sistemas de saúde dos países mais afetados pelo coronavírus, sobrecarregados pelos milhares de casos graves e concomitantes da doença.

Os inúmeros óbitos decorrentes da Covid-19, em especial aqueles causados pela falta de leitos de UTI e respiradores, repercutem mundialmente nas manchetes dos jornais, provocando estarrecimento e solidariedade em larga escala.

De fato, não poderia ser diferente. São vidas humanas perdidas em razão de circunstâncias que poderiam ser evitadas por meio do fornecimento de atendimento médico e hospitalar adequado.

É tão chocante quanto precisa ser que as pessoas morram sem ter tido sequer uma chance. Mas e quando (e onde) a ineficiência do sistema de saúde é um problema crônico, perene, uma verdadeira fábrica diária de vítimas incontáveis?

Nesse gizo, é lamentável a deficiência da saúde pública em nosso país, fato público e notório muito anterior à pandemia do coronavírus.

A assim chamada "judicialização da saúde" é consequência clara da ineficiência do serviço público prestado pelo Sistema Único de Saúde.

Somente no âmbito da Defensoria Pública da União na capital do Rio de Janeiro foram abertos, nos anos de 2018 e 2019, 10.726 Processos de Assistência Jurídica envolvendo pretensões relativas ao direito à saúde, pelos quais os cidadãos hipossuficientes buscavam obter medicamentos, leitos de UTI, tratamentos médicos e procedimentos cirúrgicos.

Além das demandas individuais, destaca-se, entre outras, a atuação da DPU na esfera coletiva para obter a regularização do atendimento a pacientes com câncer e o fornecimento de medicamentos[1] [2].

A análise do quadro revela a propositura de milhares de ações judiciais em face dos entes federativos, com o objetivo de obter provimento jurisdicional que assegure prestações essenciais à garantia do direito à saúde e à vida, e que deveriam ter sido fornecidas, de forma urgente e prioritária, na instância administrativa.

De acordo com matéria veiculada pelo jornal "O Globo" em 18/02/2017, havia, no Rio de Janeiro, em 2012, 13.851 pessoas na fila de espera por intervenções cirúrgicas nos seis hospitais federais da cidade. Quatro anos depois, em 2016, inobstante o ajuizamento de Ação Civil Pública pela Defensoria Pública da União para a regularização e a agilização do atendimento hospitalar, o número de pessoas nessa fila (convenientemente invisível) alcançou a estarrecedora marca de 23 mil pessoas.

Note-se que 2016 foi o ano da promulgação da Emenda Constitucional 95, que promoveu a fixação do teto de gastos para as despesas primárias dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União.

Mas como considerar sustentável que os valores destinados à saúde, cujo sistema já padecia de deficiências gravíssimas, permaneçam limitados desde então, e por duas décadas, sob a incidência apenas da correção pela inflação?

Em breve pesquisa no site do Supremo Tribunal Federal, encontram-se diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a Emenda Constitucional 95/2016, tais como as ADIs 5633, 5643, 5655, 5658, 5680, 5715 e 5734.

A violação a direitos fundamentais e, portanto, a cláusulas pétreas, é denominador comum dos fundamentos de tais ações, assim como a afronta aos princípios da Vedação ao Retrocesso Social, da Separação dos Poderes e da Dignidade da Pessoa Humana.

Contudo, vozes uníssonas defenderam a implantação do teto de gastos como fórmula imprescindível à estabilização econômica do país, a despeito da perspectiva concreta de contínuo desmantelamento dos serviços públicos, entre eles, a saúde.

As mesmas vozes hoje, entretanto, mostram-se sensibilizadas em face do colapso do sistema de saúde da Itália, por exemplo, em razão da pandemia.

Por quê? A falta do leito de UTI na Itália é mais grave do que aqui? Ou a falta do leito de UTI em razão da Covid-19 é mais grave do que a falta do leito de UTI para o paciente com outras doenças?

No documentário francês "A revolução do altruísmo" de Sylvie Gilman e Thierry de Lestrade, o psicólogo Paul Bloom, ao expor os resultados de pesquisas comportamentais realizadas na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, sobre o altruísmo, destaca:

"In a sense, most of the evil in the world is caused by our willingness to distinguish between people who we care about and people we don’t. And this desire to split the world in this way, to split the world into us versus them, shows up very early, shows up at youngest babies we test. And it’s something which lasts our lives, and it’s something that we overcome only with great difficulty. And this split between those we care about and those we don’t is, I think, a fundamental part of human nature, but it leads also to problems in the world."

Na esteira dessa análise, talvez o risco hoje existente de qualquer um de nós, mesmo os privilegiados com o plano de saúde em dia, precisar de um leito de UTI com respirador e não ter acesso a tal contribua para o rompimento definitivo de qualquer raciocínio que, separando o mundo entre "nós" e "eles", torne aceitável que o Sistema Único de Saúde de nosso país seja cronicamente ineficiente.

Já observamos que, no estado atual de calamidade pública reconhecida pelo Decreto Legislativo nº 06 de 2020, as regras do regime fiscal vigente serão flexibilizadas.[3] [4]

Porém, passada a pandemia, e consolidada a capacidade de empatia desenvolvida durante o seu penoso transcorrer, espera-se seja instaurada uma nova ordem constitucional e fática, em que a Carta Maior, a política econômica do país e a opinião pública não concorram, de forma alguma, para a banalização do descaso com o direito à saúde.

É o que necessitamos para que todos os brasileiros, com ou sem coronavírus, tenham, ao menos, uma chance.

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