Opinião

O ativismo judicial do STF como resposta à crise da Covid-19

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14 de abril de 2020, 16h20

O Governo Federal tem adotado diversas providências voltadas a enfrentar a situação de crise decorrente da infecção pelo novo coronavírus (Covid-19). Exemplo disso é a Medida Provisória nº 936/2020, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (PEMER). Entre outros mecanismos, referido diploma admite a celebração de acordo individual entre empregado e empregador para a redução de jornada de trabalho e de salário ou para a suspensão temporária do contrato de trabalho, independentemente da intermediação por sindicatos.

A dispensa da participação dos sindicatos na formalização desses acordos motivou a Rede Sustentabilidade a questionar a validade de dispositivos da MP n. 936/2020 por meio do ajuizamento da ADI n. 6.363. O processo tramita sob a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, que, em decisão proferida no dia 6/4/2020, acolheu, em parte, a pretensão cautelar da Rede para dar interpretação conforme a Constituição ao § 4º do artigo 11 da MP n. 936/2020. Na ocasião, o magistrado assentou que os mencionados acordos devem ser comunicados pelos empregadores ao sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes.

Sem desconsiderar que a decisão mencionada deriva de juízo de cognição sumária, observa-se que a fundamentação articulada por Lewandowski padece de falhas relevantes, as quais fragilizam seu poder de convencimento. As deficiências apontadas na sequência revestem-se de especial gravidade em razão da importância das medidas que compõem o PEMER.

Em primeiro lugar, não é difícil notar que a decisão sob análise procede a uma excessiva simplificação do processo de concretização constitucional apropriado à solução de casos difíceis, tais como o suscitado na ADI n. 6.363. Em outras palavras, a decisão de Lewandowski oferece uma resposta subcomplexa a uma questão de alta complexidade, cuja apreciação deveria levar a sério o singular contexto fático que a envolve e os diversos princípios constitucionais pertinentes ao caso.

A gravidade da crise vivenciada no País foi objeto de mero registro na parte introdutória da fundamentação apresentada por Lewandowski, tendo sido, a partir daí, solenemente desconsiderada pelo magistrado. Em vez de buscar uma solução adequada à singularidade da situação submetida à sua avaliação, o relator optou por conferir ao caso uma resposta formalista, construída a partir de diretrizes interpretativas que remontam a critérios hermenêuticos típicos do século XIX. Essa constatação é extraída, especialmente, da seguinte passagem da decisão:

"Ora, num exame ainda perfuntório da inicial, próprio desta fase processual, parece-me que assiste razão, em parte, ao partido político que a subscreve. Com efeito, a análise dos dispositivos do texto magno nela mencionados revelam que os constituintes, ao elaborá-los, pretenderam proteger os trabalhadores levando em conta a presunção jurídica de sua hipossuficiência contra alterações substantivas dos respectivos contratos laborais sem a assistência dos sindicatos que os representam".

Como se nota, além de restringir sua análise aos princípios suscitados na petição inicial, o relator embasa sua conclusão na hipotética vontade histórica dos constituintes, ou seja, na mens legislatoris. Trata-se de critério tipicamente utilizado pela Escola da Exegese para lidar com as situações em que a letra da lei era considerada insuficiente, casos em que se admitia o recurso à intenção do legislador.

Essa concepção acerca da interpretação jurídica não se concilia, entretanto, com os desenvolvimentos dos giros linguístico e hermenêutico que marcaram a filosofia do século XX. Como assevera Alexandre Araújo Costa (2008, p. 350), "a elaboração de um método capaz de ser aplicado impessoalmente e que conduza a um sentido preexistente é uma utopia incompatível com concepções modernas de linguagem e de história".

Em uma ordem social complexa, marcada pelo dissenso, não há normas previamente prontas e acabadas a serem simplesmente descobertas pelo intérprete, mas, sim, normas que são por ele atribuídas ao texto constitucional, por meio de mecanismos de seleção. O intérprete não se limita, pois, a explicitar o significado unívoco de uma disposição normativa a partir de um parâmetro fixo, a exemplo da vontade do legislador. A postura manifestada pelo relator revela, nesses termos, um regresso ao formalismo positivista, que distancia o direito da realidade social e dos contornos do caso concreto, conferindo-lhe rigidez incompatível com a flexibilidade demandada para o oferecimento de soluções satisfatórias em um contexto social altamente complexo e contingente (NEVES, 2013).

Em casos difíceis, como o analisado nesse processo, o mínimo que se espera de uma decisão do STF é a avaliação dos diversos princípios envolvidos e das compreensões conflitantes a seu respeito. Além do sopesamento explícito entre princípios e perspectivas concorrentes, a singularidade da situação examinada exige que o processo de concretização constitucional inclua considerações pragmáticas sobre as possibilidades fáticas de aplicação das normas em disputa. Este último aspecto se traduz na apreciação acerca da adequação e da necessidade da solução apresentada pelo julgador.

No caso em análise, o relator não deveria ter desconsiderado, portanto, os diversos princípios que poderiam respaldar uma solução diversa da que foi por ele acolhida. Além dos dispositivos suscitados na petição inicial artigo 7º, incisos VI, XIII e XXVI; e 8º, incisos III e VI, da Constituição , a questão enfrentada na ADI n. 6.363 também é informada, entre outros postulados, pelos artigos 1º, inciso IV; 3º, incisos I e III; 6º; e 170, caput e incisos III e VIII, do texto constitucional.

Em um cenário de risco iminente de extinção de milhões de postos de trabalho, a adoção de medidas voltadas a proteger as atividades empresariais é essencial para a manutenção das relações de emprego e para viabilizar o atendimento às necessidades básicas do trabalhador e de sua família. Consequentemente, a preservação do PEMER contribui, nesse contexto singular, para a adequada concretização não apenas dos princípios da valorização do trabalho humano e da busca do pleno emprego, mas também dos direitos sociais estipulados pelo artigo 6º da Constituição. Afinal, a supressão repentina da fonte de renda de parcela substancial dos trabalhadores brasileiros geraria situação generalizada de marginalização social e agravaria o quadro de desigualdade verificado no País.

Embora não se negue a relevância dos princípios da irredutibilidade salarial e da autonomia coletiva, a atribuição de caráter absoluto a tais postulados, a ponto de impedir sua ponderação com outros preceitos constitucionais mesmo em situações de crise extrema, não se revela razoável, tendo-se em vista o critério da adequação. Ao condicionar a redução de salários à realização de negociações coletivas em tempos de isolamento social e quarentena, a decisão examinada erige gravíssimos obstáculos à consecução das finalidades perseguidas por meio da edição da MP n. 936/2020.

Após a implementação da Reforma Trabalhista, as entidades sindicais sofreram redução significativa em suas receitas, o que agravou a crise já vivenciada pelo sistema sindical brasileiro. É altamente improvável que sindicatos desaparelhados economicamente e destituídos de quadro de pessoal suficiente sejam capazes de processar, no prazo fixado por Lewandowski, as diversas solicitações de análise de acordos individuais que lhes serão encaminhadas. A exigência de negociação coletiva imposta pelo STF converter-se-á, na melhor das hipóteses, em mera formalidade capaz de atrasar a produção dos efeitos dos acordos firmados individualmente. Na pior delas, funcionará como fator de inibição à continuidade das relações empregatícias, em prejuízo da própria categoria representada.

Ademais, o contexto fático caracterizado pela pandemia da Covid-19 afasta as razões que, corriqueiramente, justificam a exigência de participação dos sindicatos nas negociações salariais. De fato, o princípio da autonomia coletiva busca compensar, juridicamente, a desigualdade fática pressuposta entre empregado e empregador. Ocorre que a crise ora verificada submete parte relevante dos empregadores a situação de vulnerabilidade, os quais também passam a depender de medidas de proteção estatal para sua própria subsistência. Ao mesmo tempo que viabiliza o enxugamento da folha salarial em favor dos empregadores, a MP n. 936/2020 estabelece compensações aos empregados, a exemplo da criação de uma nova espécie de garantia provisória de emprego e da preservação de benefícios aos trabalhadores durante o período de suspensão contratual, bem como da previsão de pagamento de verba emergencial custeada pela União e de ajuda compensatória mensal arcada pelo empregador.

Nesse quadro, a atribuição de um sentido fixo às normas citadas na peça vestibular, que não leva a sério a realidade social em que são aplicadas e as demais disposições incidentes no caso, deixa exposta a fragilidade da argumentação apresentada por Lewandowski, o que prejudica, de maneira decisiva, a força persuasiva do seu julgado e sua capacidade de legitimar-se socialmente.

A segunda crítica à decisão proferida na ADI n. 6.363 diz respeito à técnica de julgamento empregada por Lewandowski. Quanto a esse aspecto, o ministro relator alega ter conferido interpretação conforme ao § 4º do artigo 11 da MP n. 936/2020, com o objetivo de condicionar a eficácia dos acordos de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho à prévia manifestação dos sindicatos dos empregados. Apenas no silêncio ou com a anuência das entidades sindicais é que as partes da relação trabalhista podem dispor, individualmente, sobre tais assuntos.

Trata-se de uma espécie inusitada de interpretação conforme, uma vez que acrescenta ao artigo 11, § 4º, da MP n. 936/2020 uma cláusula normativa nova, sem respaldo no texto do dispositivo impugnado e em nítida subversão à vontade do legislador a qual havia sido utilizada como critério para desvendar o significado das disposições constitucionais incidentes no caso. Ao que parece, o próprio relator se apercebeu da excentricidade do uso que conferia à técnica da interpretação conforme e, buscando defender-se de possíveis objeções, alegou que a solução por ele proposta assumia o aspecto de uma sentença aditiva, conforme admitiria a doutrina do jurista português Carlos Blanco de Morais.

Sobre o tema, não se nega que o dogma do legislador negativo tem sido deixado de lado pelo STF, ainda que de forma pouco transparente e consistente. Ademais, a dicotomia entre decisões de acolhimento e de rejeição mostrou-se insuficiente para descrever as diversas espécies de decisões atualmente proferidas em sede de controle de constitucionalidade. O uso de técnicas decisórias alternativas, inclusive com a produção de efeitos aditivos, deve ser feito, entretanto, de forma criteriosa, o que não se observa no caso analisado.

De fato, as decisões aditivas e as decisões de interpretação conforme são modalidades inconfundíveis entre si. Conforme esclarece Morais (2011, p. 379), as sentenças aditivas são, tipicamente, decisões de acolhimento; por sua vez, "(…) a convocação da interpretação conforme com a Constituição como critério que preside à formulação de juízos em matéria de constitucionalidade implica sempre uma decisão de rejeição".

Além disso, enquanto as decisões aditivas possuem um componente de adição ou integração como traço característico, constituem requisitos essenciais às decisões de interpretação conforme o respeito mínimo pela letra da lei e a observância da vontade objetiva do legislador e do espírito da norma. Essa é a compreensão de Morais (2011, p. 386), em cujas palavras "(…) a interpretação conforme à Constituição não pode reduzir-se a um pretexto para o Tribunal poder distorcer o texto, ou retorcer o espírito da lei, de forma a fazer com que a disposição impugnada diga aquilo que não diz".

A decisão de Lewandowski destoa, de forma nítida, dos critérios descritos pelo próprio jurista apontado como seu referencial teórico. A suposta interpretação efetuada pelo ministro do STF adicionou ao artigo 11, § 4º, da MP n. 936/2020 uma condição de validade e eficácia aos acordos individuais de trabalho que, além de não encontrar respaldo em seu texto normativo, discrepa sensivelmente do objetivo almejado pelo presidente da República com a edição do referido diploma, conforme se depreende de sua exposição de motivos.

A atividade exercida pelo relator não pode ser adequadamente descrita, portanto, como mero ato de interpretação. Ao adicionar referida condição ao artigo 11, § 4º, da MP n. 936/2020, o magistrado estabeleceu um preceito novo, distinto do que havia sido instituído pelo presidente da República, o qual restou assimilado à regra prevista no artigo 617 da CLT. A norma criada como resultado da decisão de Lewandowski não poderia nem sequer derivar de autêntica decisão aditiva, que somente é admissível, segundo Morais (2011), quando a integração não dependa da realização de escolhas políticas por parte do julgador e possa ser feita a partir dos próprios elementos da norma impugnada ou de disposição constitucional autoaplicável. No caso em tela, o relator substituiu a opção presidencial pela sua própria, utilizando-se do mencionado dispositivo da CLT como efetivo parâmetro para sua atividade integrativa.

Assim, partindo-se do próprio referencial teórico eleito pela decisão analisada, nota-se a inadequação da atividade hermenêutica desenvolvida por Lewandowski, que não se amolda nem à categoria das decisões aditivas, nem à classe das decisões de interpretação conforme. Aliás, o jurista português citado pelo relator com o intuito de respaldar sua operação criativa é, na verdade, um crítico ferrenho da postura excessivamente ativista do STF. A frequência e a agressividade com as quais o STF tem avançado sobre atribuições de outros poderes estatais e, em algumas ocasiões, do próprio Poder Constituinte levaram Morais (2017) a caracterizá-lo como "(…) uma corte constitucional sem paralelo entre as demais (…)", que não tem hesitado em derrogar tacitamente o texto constitucional.

Em conclusão, constata-se que o ministro Lewandowski, ao modificar o conteúdo normativo da MP n. 936/2020, proferiu decisão que, além de interferir na esfera de atribuições dos Poderes Executivo e Legislativo, põe em risco a efetividade do PEMER. Não obstante a gravidade e a relevância de sua intervenção judicial, o magistrado apresentou argumentação deficitária para fundamentá-la, deixando de atender, desse modo, ao elevado ônus argumentativo que atraiu para si. Cabe ao Plenário do STF sanar as falhas apontadas na decisão antes que os danos por ela provocados aos empregados e empregadores se tornem irreversíveis.

REFERÊNCIAS
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica. 2008. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

MORAIS, Carlos Blanco de. Justiça constitucional: o direito do contencioso constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. t. 2.

MORAIS, Carlos Blanco de. Supremo não tem hesitado em derrogar tacitamente a Constituição Federal. Entrevistador: Brenno Grillo. Consultor Jurídico, São Paulo, 2 abr. 2017.

NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

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