Opinião

Do "senso humanitário" à indisponibilidade de tornozeleiras

Autor

  • Tiago Bunning

    é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra) conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024) advogado e professor.

13 de abril de 2020, 7h02

Fomos todos surpreendidos (ou não[1]) em 11 de março de 2020 quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) em razão do surto mundial da Covid-19 atribuiu ao vírus o caráter de pandemia. Com o Coronavírus se alastrando mundialmente sua chegada ao Brasil foi irreversível.

Atualmente, qualquer tentativa de transcrição do número de infectados ou de mortes em decorrência do vírus estaria desatualizada no momento da consulta pelo leitor, e por isso dispensamos a quantificação do caos.

Partindo da premissa de que o isolamento social e a higiene são as principais formas de combate a propagação do coronavírus (Covid-19) segundo a própria OMS[2], uma parcela do Poder Judiciário se atentou ao risco de propagação da pandemia no sistema carcerário, e logo no dia 12 de março de 2020 noticiou-se a primeira liberdade concedida em humanitária decisão oriunda da 13a Vara Criminal da Comarca de Salvador[3], seguida de incontáveis decisões de 1a e 2a Instância, bem como do Superior Tribunal de Justiça[4], além da liminar proferida pelo Min. Marco Aurélio na ADPF 347/DF (posteriormente caçada pelo Pleno do STF).

Nesse ambiente, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação CNJ n. 62 orientando em seus artigos 4o e 5o a reavaliação da prisão (preventiva e definitiva) de presos em grupo de risco, mulheres em situação gestacional, lactantes ou mães, idosos, indígenas e pessoas com deficiência que se enquadrassem em grupo de risco. Com essa  análise, é nítido que não houve uma carta de alforria ou qualquer ordem de soltura generalizada, buscou-se apenas uma providência unificada de política criminal minimalista e assegurada em fundamento humanitário excepcional.

Esse senso humanitário chegou até a 13a Vara da Justiça Federal de Curitiba/PR, responsável pela Operação Lava-Jato e famosa por suas impiedosas decisões, que concedeu prisão domiciliar ao ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (Pedido de Prisão Preventiva n. 5052211-66.2016.4.04/7000/PR)[5] e o mesmo foi feito em relação ao famigerado João de Deus[6]. Em ambos os casos, pessoas idosas e acometidas por doenças que lhe colocavam no grupo de risco com maior taxa de letalidade em decorrência do Coronavírus (Covid-19).

Mas, assim que as liberdades começaram a ser concedidas a cultura punitiva (o Ato 1 no cenário do caos) expôs suas garras mais cruéis apelando aos costumeiros argumentos positivistas de prejuízo ao “cidadão honesto”[7] (vulgo, “cidadão de bem”) acrescida de termos duros e jocosos, tais como “solturavírus”[8] e “justiça infectada”[9], completamente inapropriados com o momento delicado que se vive, e que foram utilizados para reivindicar prudência (?) ao Poder Judiciário, mas que verdadeiramente só assanham a sociedade em sua parcela também punitivista ou desinformada pela indústria do medo – ou ambos.   

Chegaram a alegar que na Itália e na China não houve muitos presos infectados numa análise proporcional[10], mas nesse ponto talvez não tenham percebido que na lista por taxa de encarceramento (que calcula o número de encarcerados para cada 100 mil habitantes), a China fica na 135o posição, a Itália tem taxa que se equipara a da Bahia que, por sua vez, é o estado que apresenta a menor taxa no Brasil com 103 presos a cada 100 mil habitantes, enquanto o Brasil é o 26o da lista com 335 presos para cada 100mil/hab[11]. Na verdade a percepção desses dados só interessa a classe punitiva quando a ideia é nos distanciar da expansão encarceradora americana. 

Retomando, não se pode esquecer que a Itália e a China – e até mesmo os Estados Unidos — não tiveram o reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” de seus respectivos sistemas carcerários declarada pelo órgão máximo do Poder Judiciário Nacional, tal como ocorreu com o Brasil no julgamento da ADPF 347/DF pelo STF. Por tudo isso, é impossível comparar o incomparável em suas medidas desproporções.

Mas, não demorou muito para que o Ato 2 no cenário caos entrasse em cena com a noticiada indisponibilidade de tornozeleiras eletrônicas ocasionando uma “fila de espera”[12] de pessoas que tiveram sua liberdade concedida, pelo risco causado pela pandemia, mas que se encontram reféns da insuficiência estatal. Por mais estranho que pareça, é natural ao fenômeno da transcarcerização que onde faltam vagas no sistema prisional, futuramente o déficit seja de equipamentos de monitoração eletrônica.[13]

Talvez, tenham esquecido que é pacífico o entendimento de que a falta de pagamento de fiança não impede a concessão da liberdade, e isso foi reiterado pelo Superior Tribunal de Justiça em recente decisão liminar em habeas corpus coletivo concedido pelo Min. Sebastião Reis Júnior no HC 568.693/ES, já no período de pandemia ocasionada pelo Coronavírus (Covid-19).[14] Nesse ambiente, a conclusão é de fácil compreensão, pois assim como a indisponibilidade de recursos do próprio acusado não é suficiente para segregação de sua liberdade, por óbvio que a insuficiência de recursos estatais também não permite sua manutenção em cárcere.

Neste exato sentido decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ao reconhecer que: “A indisponibilidade de tornozeleiras eletrônicas é resultado da crise financeira, não podendo o ônus da má administração da máquina estatal repercutir no direito de liberdade do agravado.”[15]

Outra analogia possível é partir da Súmula Vinculante 56 que não autoriza a manutenção do condenado em regime mais gravoso pela falta de estabelecimento adequado, cuja intepretação impossibilita que se mantenha encarcerado qualquer pessoa pela indisponibilidade de equipamento de monitoração eletrônica. Em ambos os casos a insuficiência das condições legais é causada pelo Estado e não pode ser suprimida pelo encarceramento, sob pena do próprio Estado ter que ressarcir os danos causados pela segregação ilegal, tal como reconhecido pelo STF no RExt 580.252[16].

Concluindo, é impossível negar a eficácia preventiva da monitoração eletrônica diante de pesquisas quantitativas[17], mas sua função deve ser redutora, abrangendo os espaços resguardados a uma política criminal minimalista e não ampliando malha de controle penal, sob pena de funcionar como mera alteração do controle social. Sem devaneios, a tornozeleira eletrônica é medida cautelar substitutiva (Art. 319, X, CPP) e por isso deve tomar o lugar da prisão e não da liberdade (Art. 282, parágrafo 6o, CPP).

Por isso, ao ser concedida a liberdade ou a prisão domiciliar mediante monitoração eletrônica a única providência razoável – quiçá possível – é a concessão da liberdade, mediante determinação de futura colocação do equipamento quando encontrar-se disponível, espelhando-se em prudente decisão do Tribunal de Justiça do Piauí[18]

Afinal, quem condiciona a expedição e o cumprimento de alvarás de soltura num cenário em que a própria liberdade ficou escanteada diante da necessidade vital de proteção da saúde, certamente nasceu sem aquilo que Eduardo Galeano escolheu chamar de glândulas de consciência e só por isso ainda dorme um sono solto nesse mundo do avesso à espera do Ato 3.[19]

 


[1] Um relatório da CIA divulgado em 2009 previu a possibilidade de uma pandemia viral global. Veja: https://www.conjur.com.br/2020-mar-17/relatorio-cia-previu-possibilidade-pandemia-coronavirus

[3] “Sabemos que as Autoridades Penitenciárias estão preocupadas e adotarão medidas para isolar os presos de outras pessoas, a fim de evitar a contaminação generalizada. Entretanto, entendo que também devo fazer a nossa parte e imbuído do espírito humanitário, substituo a prisão preventiva pelas seguintes medidas cautelares diversas (…)” (Autos n. 0531710-02.2019.8.05.0001)

[4] Cita-se a título de exemplo o primeiro precedente proferido pelo Ministro Rogério Schietti Cruz no HC 565.799/RJ em 17/03/2020 e o restabelecimento de liminar em HC coletivo determinado pelo Ministro Nefi Cordeiro no HC 568.752/RJ em 26/03/2020.

[7] Nota pública emitida pela Associação MP Pró-Sociedade. Disponível em: https://twitter.com/m_ppro/status/1240342353665232896 

[8] Termo utilizado pelo Ministro Sérgio Moro, disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/prisoes-coronavirus-e-solturavirus/

[9] Termo utilizado pelo Ministro Luiz Fux, disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-justica-infectada-hora-da-prudencia-24337119

[10] Novamente em artigo assinado pelo Ministro Sérgio Moro e citado acima.

[13] AMARAL, Augusto Jobim do. Entre serpentes e toupeiras: a cultura do controle na contemporaneidade (ou sobre o caso do monitoramento eletrônico de presos no Brasil). In: Sistema Penal & Violência. Porto Alegre, v. 2, n.2 p. 75-89, jul./dez., 2010, p. 81.

[14] Nesse sentido, considerando o crescimento exponencial da pandemia em nosso País e no mundo e com vistas a assegurar efetividade às recomendações do Conselho Nacional de Justiça para conter a propagação da doença, concedo a liminar para determinar a soltura, independentemente do pagamento da fiança, em favor de todos aqueles a quem foi concedida liberdade provisória condicionada ao pagamento de fiança, no estado do Espírito Santo, e ainda se encontram submetidos a privação cautelar de liberdade em razão do não pagamento do valor. (STJ, HC 568.693/ES, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Decisão Monocrática, Dje. 31/03/2020).

[15] TJRJ, AgEx 0430384-14.2016.8.19.0001, Rel. Des. Claudio Tavares de Oliveira Júnior, 8a Câmara Criminal, j, 26.04/2017.

[16]Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.” (Tese definida no RE 580.252, Rel. Min. Teori Zavascki, red. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, P, j. 16-2-2017, DJE 204 de 11-9-2017, Tema 365)

[17] Pesquisa do IPEA realizada em 2015 constatou uma média de 24,4% de reincidência nos casos de prisão domiciliar com monitoração eletrônica (IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Reincidência criminal no Brasil: relatório final de atividades da pesquisa sobre reincidência criminal, conforme Acordo de Cooperação Técnica entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ipea (001/2012) e respectivo Plano de Trabalho. Rio de Janeiro, 2015).

[18] “Oficie-se à MMa. Juíza da 2a Vara Criminal da Comarca de Parnaíba (PI) para que determine a expedição de MANDADO endereçado à Unidade Gestora de Monitoração Eletrônica, fazendo-se nele constar que, em caso de indisponibilidade do aparelho, deverá a referida Unidade comunicar ao juízo a quo tão logo receba o equipamento, para que seja intimado o acusado, ora paciente, a fim de que compareça ao local e proceda à colocação da tornozeleira eletrônica, cumprindo-se, assim, a medida cautelar de que trata o item IX.” (TJPI, HC 0711296-73.2018.8.18.0000, 1a Câmara Especializada Criminal, Rel. Des. José Francisco do Nascimento, j. 30/01/2019).

[19] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Editores, 2018, p. 200.

Autores

  • Brave

    é mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Bolsista Capes). Especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Advogado e Professor.

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