Opinião

Debate correto é sobre o adiamento, não a unificação das eleições

Autor

  • Ana Claudia Santano

    é coordenadora geral da Transparência Eleitoral Brasil; membro fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep); observadora Eleitoral Nacional e Internacional em diversas missões na América Latina; doutora e mestra em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidade de Salamanca Espanha; com período pos-doutoral em direito público econômico na PUCPR e em direito constitucional na Univ. Externado Colômbia; professora e pesquisadora em direito constitucional direito eleitoral e direitos humanos.

13 de abril de 2020, 14h16

Dentro do marco da pandemia da Covid-19, o não tão novo debate sobre a unificação das eleições surgiu na pauta pública. Diante da emergência pública e do cada vez mais limitado tempo de ação, a problemática da realização das municipais de 2020 se impõe, abrindo, infelizmente, espaço para voluntarismos políticos.

O adiamento do pleito previsto para este ano já é algo tomado em consideração na esfera política e institucional. Porém, é necessário alertar que adiar as eleições não é o mesmo que unificá-la com o pleito de 2022. São discussões bem delimitadas entre si e com pouquíssimos pontos de contato. É devido a isso que, ao invés de buscar sufocar esse debate, devemos afrontá-lo diretamente, como recomendou recentemente Daniel Falcão [1], sob pena de não haver tempo hábil para agir depois.

Em primeiro lugar, cabe recordar que a questão da unificação das eleições já foi rechaçada pela Câmara dos Deputados em 2015. Em 10 de junho daquele ano, o Plenário rejeitou por 225 votos a 220 a emenda constitucional que previa a coincidência das eleições municipais, das legislativas e da presidencial. Com isso, tem-se que o debate que se trava neste momento é repetido, não trazendo nenhum novo aporte, já que o panorama que o embasa também não mudou. O que mudou foi a existência de emergência pública, que pode fundamentar a decisão pelo adiamento das eleições. Porém, a emergência decretada não pode ser a base da unificação das eleições, por não terem conexão entre si. Trata-se da utilização de uma razão existente para uma providência alheia, como às vezes se verifica no Brasil, principalmente no que se refere à legislação eleitoral ou aos casos concretos nessa esfera.

Em segundo lugar, é necessário expor o que dizem os defensores da unificação. Uma das razões mencionadas para a unificação das eleições são os partidos políticos. Como geralmente são acusados pela deterioração da democracia, a comumente afirmada crise de representação é indicada como um resultado do mau comportamento das agremiações, desconsiderando outros elementos que incidem sobre esse momento de questionamento da própria democracia.

Em artigo recente, Adilson de Abreu Dallari afirma que a unificação das eleições responde ao modelo partidário escolhido pela Constituição (caráter nacional), colaborando para que não mais se falsifique a representação com eleições regionais. Além disso, as eleições simultâneas desmotivam a criação de "legendas de aluguel" e, por correspondência, diminuiriam a corrupção, a demagogia e a negociação obscura advindas do que ele chama de "arranjos de conveniência". [2]

Sobre o caráter nacional constante na Constituição Federal de 1988, a razão dessa exigência é que a ordem constitucional não desejava que debates ou influências políticas fossem confinadas a rincões regionalistas, considerando a trajetória histórica da política brasileira, em que muitos dos episódios de insurgência vieram de partidos regionais, sendo, portanto, uma medida para fomentar a unidade nacional. No entanto, o conceito de "caráter" empregado pela CF/88 não significa "âmbito" nacional. O que se tem como "caráter" é que o partido deve ter propostas nacionais, para todo o território do país. Contudo, ao regular a criação de partidos na Lei n° 9.096/95, o requisito do caráter nacional para a criação de partidos foi resumido a partir do conceito de âmbito, com uma fórmula matemática que distribui o suposto apoiamento de eleitores entre os estados do Brasil. [3] Os partidos, na verdade, já são considerados a partir de suas estruturas nacionais para outros fins, como o tamanho de sua bancada na Câmara dos Deputados para fins de cálculo de financiamento eleitoral e horário eleitoral gratuito. No entanto, é um erro pensar que a política brasileira se resume a Brasília quando o país conta com 5.570 municípios.

Na verdade, as eleições municipais possuem características próprias, pois estão muito mais próximas dos eleitores, há mais contato e, provavelmente, reflitam mais a vontade da soberania popular do que as nacionais. Em muitos casos, a participação popular nas eleições municipais é mais alta do que nas nacionais, justamente por causa da aproximação do processo eleitoral com as pessoas. As pautas municipais são totalmente distintas das nacionais, pois atendem às demandas que são próprias de cada municipalidade e região do país. A forma de fazer campanha é diversa, bem como a maneira decidir pelo voto. [4] Diante disso, os partidos brasileiros, mesmo tendo esse âmbito nacional, não se comportam igualmente em seus diferentes níveis, e isso nem deve ocorrer, devido à autonomia partidária. Partidos são também entes estrategistas quando buscam a vitória nas urnas.

Os partidos se direcionarão conforme a sua chance de vitória for maior. [5] Na Ciência Política, há pesquisas empíricas indicando que, em caso de eleições simultâneas, a eleição que é percebida pelo eleitorado como a mais importante vai influenciar diretamente as demais. Isso é possível de ser verificado pelo efeito arrasto, ou seja, quando a opção de voto para a eleição tida como a mais importante pelas pessoas condiciona o voto para as demais, gerando um tipo de uniformização nessa decisão. A tendência é que a eleição para a presidência seja entendida como a mais relevante pelos votantes, sufocando as demais eleições. [6] Isso faz com que os candidatos a presidente influenciem diretamente a decisão de voto para os cargos inferiores, o que gera concentração de votos em determinadas forças políticas e, após algumas eleições, uma diminuição no número de partidos justamente por causa dessa concentração. Isso também impacta sobre a formação de maiorias parlamentares, o que tende a excluir paulatinamente as minorias e também confere um respaldo importante ao presidente eleito, já que os eleitores tendem a votar em seus aliados nas casas legislativas, o que pode comprometer o controle com base nos freios e contrapesos próprios da dinâmica dos poderes. [7]

Todo esse cenário pode levar a uma situação de nacionalização da política, em que as pautas municipais ou regionais desaparecem perante a magnitude e a força da agenda nacional. Até porque mesmo a propaganda eleitoral dos níveis inferiores cederá diante da agenda nacional que se impõe, pois na distribuição do horário eleitoral gratuito, por exemplo, além da divisão entre mais candidatos, os partidos apostarão cada vez mais em quem tem mais chance de vitória e nas pautas mais apelativas.

Quando há eleições em anos distintos, intercaladas por um intervalo, esse efeito de arrasto e de sufoco dos pleitos em níveis inferiores do país diminui consideravelmente, servindo como um instrumento de accountability ou de responsabilidade para o representante que continua no cargo. Há a oportunidade de crítica por parte do eleitorado sobre os eleitos e, principalmente, sobre a maioria da situação. Com a unificação das eleições, as estratégias partidárias ficarão ainda mais acentuadas, retirando da cidadania esse poder de se pronunciar contra o governo de turno, podendo causar o afastamento das pessoas dos temas políticos devido ao tempo que se tomará entre os pleitos. [8]

Já a criação de "legendas de aluguel" não será impactada porque não se alterarão as regras para a criação de partidos. O que pode ocorrer, e isso já contrapõe o que também Dallari alega, é que as estratégias partidárias em torno da vitória nas urnas fomentarão ainda mais os discursos demagógicos e os negócios obscuros, pois, dentro de uma lógica racional, as agremiações adotarão medidas que possam maximizar as suas chances de sucesso eleitoral, não havendo um código de ética a ser seguido. A demagogia, assim como o populismo, poderá contaminar ainda mais os debates políticos, colocando em risco a própria ideia de democracia diante da provável falha na implementação das promessas feitas. O populismo, que já vem sendo indicado como uma das razões para que exista um descontentamento tão grande com a democracia como se verifica na atualidade, fará parte das estratégias dos partidos, que nada terão a perder se assim procederem. [9]

Já a corrupção, que se combate muito mais com medidas de transparência e punição, poderá ser até fomentada devido ao aumento de incentivos para a sua prática. Como não haverá qualquer mudança nas regras de prestação de contas, por exemplo, o objetivo de ganhar nas urnas irá se sobrepor ao cumprimento dessa legislação, que, como é sabido, já é bem deficitária. Na verdade, o controle pode piorar, e muito, com a unificação das eleições, considerando a pressão sobre a Justiça Eleitoral, que deverá analisar um número elevadíssimo de contas com os mesmos prazos legais e com a mesma capacidade institucional. Aqui se deve considerar que as eleições unificadas podem chegar a ter mais de 3 milhões de candidatos [10], o que vai impactar diretamente no funcionamento da Justiça Eleitoral e no cumprimento de seus deveres.

Portanto, essa alegação de que a unificação das eleições tem o condão de melhorar os partidos vai contra as evidências colhidas em décadas pela Ciência Política. Na verdade, aparenta ser uma fuga dos partidos, outra mais, no lugar de realmente se enfrentar o problema da democracia interna das agremiações ou outros fatores que provocam a erosão democrática.

O que se deve pensar é em como resolver o impasse das eleições de 2020 diante da pandemia e do estado de emergência pública que existe. Deve-se focar a discussão no eventual adiamento das eleições. A unificação aqui somente "pegou carona", o que pode abrir espaço para voluntarismos. Tempos como os atuais exigem prudência e reflexão. A democracia brasileira já claudica diante de tantas ameaças. Unificação, não.

 


[1] Cf. <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/03/as-discussoes-sobre-a-suspensao-ou-nao-das-eleicoes-municipais-devem-ocorrer-neste-momento-sim.shtml> Acesso em 02 abr. 2020.

[2] DALLARI, Adilson de Abreu. Eleições: questões sobre periodicidade e representatividade. Consultor jurídico. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-abr-02/interesse-publico-eleicoes-questoes-periodicidade-representatividade> Acesso em 03 abr. 2020.

[3] MEZZAROBA, Orides. Introdução ao Direito Partidário Brasileiro. 2° ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 250-251.

[4] GENDZWILL, Adam; STEYVERS, Kristof. Comparing Local Elections and Voting: Lower Rank, Different Kind… or Missing Link? ECPR Joint Sessions – Université catholique de Louvain, Mons, Belgium, UCL Mons. 8 – 12 April 2019. Disponível em: < https://ecpr.eu/Events/PanelDetails.aspx?PanelID=7676&EventID=121> Acesso em 03 abr. 2020.

[5] DOWNS, Anthony. An economic theory of democracy. New York: Harper and Row, 1957.

[6] Claro que há a possibilidade de que temas locais possam se destacar. No entanto, a tendência é de que o eleitorado entenda que as eleições presidenciais sejam as mais importantes.

[7] Cf. SHUGART, Matthew; CAREY, John M. Presidents and Assemblies – Design and Electoral Dynamics. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 242-243; MOLINA V. José Enrique. Consecuencias políticas del calendario electoral en América Latina: ventajas y desventajas de elecciones simultáneas o separadas para presidente y legislatura. América Latina Hoy, n° 29, Salamanca, 2001. p. 16-17; OLIVEROS, Virginia; SCHERLIS, Gerardo. Reformas políticas: internas abiertas obligatorias y unificación electoral en las elecciones de 2005. In: CHERESKY, Isidoro (ed.). La política después de los partidos. Buenos Aires: Prometeo, 2006. p. 376-377.

[8] DIAS, Joelson; SILVEIRA, Marilda; FALCAO, Daniel. Unificação das eleições: quem mais perde é o eleitor. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; ROLLEMBERG, Gabriela. Teses sobre a reforma política. Memória da participação da ABRADEP nas reformas de 2015. Brasília: ABRADEP, 2016. p. 29-41.

[9] TEIXEIRA, Nuno Severiano. Três reflexões inacabadas sobre populismo e democracia. Relações Internacionais, Lisboa, n. 59, p. 75-83, set. 2018.

[10] Levantamento feito pelo ex-Ministro do TSE, Henrique Neve Não são admitidas quaisquer restrições.s, a partir de dados de 2015 consolidados no Tribunal Superior Eleitoral, sem considerar eventuais coligações. Este levantamento foi apresentado na audiência pública realizada na Câmara dos Deputados convocada pela Comissão Especial para a Reforma Política, em 09 de abril de 2015. Cabe mencionar que, como os dados são de 2015, os números representam uma realidade aproximada, podendo inclusive ter aumentado devido ao número de partidos e eventual alteração no número de vereadores em alguns municípios havida desde então.

Autores

  • Brave

    é professora do programa de pós-graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil — UniBrasil, pós-doutora em Direito Público Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca (Espanha).

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