Opinião

Juízes criminais lavam as mãos diante do novo coronavírus

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13 de abril de 2020, 6h07

Todas evidências indicam que o novo coronavírus está se espalhando nos presídios superlotados e insalubres do país, onde o isolamento é impossível.

O Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação 62/2020, com medidas para evitar a propagação do vírus em presídios, como a revisão das prisões provisórias e saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto de presos que, embora não estejam no grupo de risco, estão em estabelecimentos com ocupação superior à capacidade. Também sugere prisão domiciliar para todos em regime aberto e semiaberto.

Passadas quase três semanas, a reação dos juízes criminais tem sido lenta: os juízes limitaram-se a decidir casos pontuais e colocar em prisão domiciliar apenas aqueles em grupo de risco comprovado (mais de 60 anos ou doenças preexistentes diagnosticadas), ignorando que a propagação do vírus nos presídios vai sobrecarregar o sistema de saúde, com  mais demanda por leitos de UTI e ventiladores. Isso sem contar com a disseminação da doença para as famílias de milhares agentes penitenciários e a grande possibilidade de novas rebeliões e fugas, caso nada seja feito. E que presos morrerão. Muitos.

A Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo informou que até agora foram soltos apenas 1.578 presos em cumprimento a decisões judiciais baseadas no risco da Covid-19. Sem gerar crise na segurança pública, ao contrário do que diz o ministro Luiz Fux.

São raras as decisões pensadas de forma coletiva, como a bem-vinda decisão do Superior Tribunal de Justiça que determinou a soltura de todos presos do país que tiveram liberdade condicionada à fiança, mas que ainda estavam presos.

A pandemia da Covid-19 está revelando — ou reafirmando para os observadores mais próximos — a indiferença de parte expressiva da magistratura em relação aos presos e a tendência de esquivar-se de sua responsabilidade pela superpopulação carcerária, proliferação das facções criminosas e abuso de autoridade nos presídios.

Ao analisar pedido de prisão domiciliar de mulher custodiada em presídio superlotado, um Desembargador de São Paulo, com ironia que não cabe neste triste momento, negou o pedido porque "dos cerca de 7.780.000.000 habitantes do planeta Terra, apenas três: Andrew Morgan, Oleg Skripocka e Jessica Meier, ocupantes da estação espacial internacional (…) por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado coronavírus".

Em outro caso, uma juíza negou pedido de prisão domiciliar de preso hipertenso, pois quem viola a lei “não teria muita dificuldade, ou freios internos para violar regras sanitárias para permanência em domicílio" (Folha de S. Paulo, 2 de abril).

A situação é agravada pela ausência de testes de Coronavírus em presídios, o que faz com que pedidos de prisão domiciliar formulados em favor de detentos de locais com notícias de mortes e suspeitas concretas de infecção sejam negados com base no argumento evasivo de que não há “prova” da relação com a pandemia. Em uma penitenciária de Guarulhos, dois presos morreram no dia 28 de março “após sentirem falta de ar”, um deles com 43 anos. Não há notícia de que tenham sido testados.

O comportamento alheio à realidade tem respaldo político: há dois dias, o Ministro da Justiça Sérgio Moro postou no twitter que não havia “nenhum caso de preso infectado confirmado até o momento”, desprezando as inúmeras suspeitas em presídios de todo o país e a impossibilidade de assegurar essa informação.

De acordo com dados do Depen, o Brasil possuía 773.151 pessoas privadas de liberdade em 2019, sendo que 33% desses sequer foram condenados. A situação dos presídios, que já era caótica e violadora de direitos humanos básicos, tornou-se desesperadora com o Coronavírus. Se não conseguimos isolar presos ou higienizar os presídios, a única solução emergencial possível será o cumprimento da Recomendação do CNJ, respeitando a quarentena daqueles sintomáticos e garantindo o uso da prisão para os crimes mais graves e violentos (enfim, é o que a lei e a Constituição ordenam, até hoje em vão, diante da resistência dos juízes).

Não há tempo (nem leitos) para transferência de responsabilidade. Os juízes têm o dever de evitar uma enorme tragédia e corrigir um déficit histórico de accountability: há décadas o judiciário renuncia ao seu papel social no enfrentamento da tragédia humana que são nossas cadeias. Se mantiver essa conduta indiferente à realidade e seguir resistindo às evidências e às leis que determinam o uso excepcional da prisão, estará contribuindo para agravar uma crise humanitária e social sem precedentes nesse século.

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