Opinião

A (in)constitucionalidade da Medida Provisória nº 932/2020

Autor

  • Edvaldo Nilo de Almeida

    é procurador do Distrito Federal sócio do escritório Nilo & Almeida Advogados Associados doutor em Direito Público pela PUC-SP mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e pós-doutorando em Direito Tributário pela Uerj.

13 de abril de 2020, 14h02

Os Serviços Sociais Autônomos foram criados no Brasil por meio de legislação específica que conferiu, a cada um dos entes, a missão constitucional de prestar serviços sociais (artigo 6º da Constituição) em favor de determinado setor, de determinados trabalhadores ou, ainda, da sociedade em geral, especialmente na promoção e na indução ao emprego.

Decerto, os serviços sociais autônomos a cada dia ganham em relevância para a sociedade brasileira e hoje, no âmbito federal, por exemplo, compõem essa forma de organização o Serviço Social da Indústria (Sesi), o Serviço Social do Comércio (Sesc), o Serviço Nacional de Aprendizagem da Indústria (Senai), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), o Serviço Nacional do Transporte (Sest), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat) e o Serviço Nacional de Aprendizagem das Cooperativas (Sescoop).

O Senac, por exemplo, destina-se a tornar unificados os objetivos do sistema de aprendizagem comercial, dentre os quais estão: (I) colocar em prática, em escolas ou centros sob responsabilidade da instituição, a aprendizagem comercial a que se vinculam as empresas com atividades econômicas sob a sua jurisdição; (II) nortear, quanto à implementação do sistema de aprendizagem metódica, as empresas às quais é conferida pela lei tal prerrogativa; (III) promover a organização e a manutenção de cursos práticos ou de qualificação para comerciários adultos; (IV) divulgar novos métodos e técnicas voltadas à prática do comércio, auxiliando os empregadores no planejamento e na efetivação de programas de treinamento de pessoal inserido em distintos níveis de qualificação; (V) oferecer assistência às empresas comerciais no recrutamento, no processo seletivo e no enquadramento de seu pessoal; (VI) auxiliar na obra de difusão e aprimoramento da aprendizagem comercial de formação e do ensino superior que com ele se relacionar de maneira direta.

Ao Sebrae compete planejar, coordenar e orientar programas técnicos, projetos e atividades de apoio às micro e pequenas empresas, em conformidade com as políticas nacionais de desenvolvimento, particularmente as relativas às áreas industrial, comercial e tecnológica. Nesse sentido, a entidade coordena e orientar programas técnicos, projetos e atividades de apoio às micro e pequenas empresas, de acordo com as políticas nacionais de desenvolvimento.

Desse modo, invariavelmente, as sucessivas leis que autorizaram, instituíram ou criaram os serviços sociais autônomos vêm veiculando disposições concretizadoras dos direitos sociais assistenciais, ligadas ao desenvolvimento de categorias profissionais ou econômicas específicas ou, ainda, de políticas públicas fundamentais ligadas à geração de emprego e à promoção da saúde.

Assim, todos os serviços sociais autônomos estabelecidos na ordem jurídica brasileira buscam garantir o acesso aos direitos sociais atualmente previstos no artigo 6º da Constituição Federal.

Decerto, o artigo 6º da CF estabelece como direitos sociais "a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados". Já o artigo 203, III, da CF dispõe que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivo a promoção da integração ao mercado de trabalho.

Nesse rumo, a Lei nº 8.742/93, que dispõe sobre a organização da assistência social no Brasil, prevê que os objetivos são a proteção social, a promoção da integração ao mercado de trabalho, a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, a vigilância socioassistencial e a defesa dos direitos sociais dos brasileiros. Assim sendo, os serviços sociais autônomos, na qualidade de entidades de assistência social criadas por lei, fazem jus ao recebimento das contribuições que lhes são destinadas para concretizar os direitos sociais especificados na Constituição e na legislação de sua criação.

A prestação desses serviços não decorre da lei ou do decreto que instituiu cada ente, mas, sim, da consecução dos objetivos fundamentais da República (artigo 3º da Constituição), especialmente o de garantir o desenvolvimento nacional (artigo 3º, inciso II, da CF) e o de reduzir as desigualdades sociais (artigo 3º, inciso III, da CF). Ademais, a atividade das entidades do "sistema S" estão diretamente afetas à implementação dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição (à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência) e da assistência social, prevista no artigo 203 da Constituição.

Assim, a Medida Provisória nº 932/2020, ao reduzir em 50% as alíquotas das contribuições sociais destinadas a essas entidades, acaba por violar frontalmente os artigos 3º, 6º e 203 da Constituição, porquanto prejudica desproporcionalmente atividades sociais que visam exatamente ao "suposto" objeto da norma provisória, que é a promoção do emprego. Essa desoneração da folha de pagamento apenas para os serviços sociais autônomos é medida inócua, já que ela mesma prejudica abusivamente os serviços que têm por norte garantir a manutenção da produção e do emprego na sociedade brasileira e que, devido ao desaquecimento da economia, já estão trabalhando com cerca de 30% da sua arrecadação ordinária.

Mas não é só.

Da leitura da norma constitucional do artigo 149 da Constituição Federal elencam-se três modalidades de contribuições: as sociais, as de intervenção no domínio econômico e as de interesse de categorias profissionais ou econômicas. Referidas contribuições possuem natureza jurídica tributária autônomas, diferente de impostos, taxas, contribuições de melhoria ou empréstimo compulsório. Outra característica singular dessas contribuições é a destinação da sua arrecadação, pois nem sempre é destinada ao Estado, mas também a pessoas jurídicas que não integram, diretamente, a estrutura administrativa estatal, como as autarquias e as entidades privadas que colaboram com o Poder Público.

A natureza das contribuições tributárias que financiam o "sistema S", que existe como instrumento para a concretização de direitos sociais, exige um cuidado maior ao lidar com os recursos recebidos pelas entidades do serviço social autônomo. Por certo, o caráter finalístico é elemento que diferencia as contribuições sociais de outras espécies tributárias e, ao mesmo tempo, determina a destinação a ser dada ao produto das arrecadações.

Se o artigo 149 da Constituição Federal prevê a possibilidade de a União instituir contribuições para a garantia de direitos sociais, por exemplo, a instituição desse tributo tem de ser destinada ao seu desiderato, em regra, sob pena de se retirar a lógica normativa do texto constitucional.

Esse argumento da finalidade das contribuições sociais encontra validade jurídica na estrutura desses tributos dentro da Constituição Federal, porquanto o artigo 149 da CF vinculou expressamente a instituição de contribuições às áreas para as quais foram criadas, mediante a utilização da expressão "como instrumento de atuação nas respectivas áreas", ou seja, como meio de atuação nas áreas sociais, de intervenção de domínio econômico e de categorias profissionais ou econômicas.

Decerto, o artigo 149 da Constituição Federal prevê a competência tributária privativa da União para "instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas". Acerca das contribuições de seguridade social, o artigo 195 dispõe que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além das contribuições sociais a que alude o dispositivo.

Por sua vez, o artigo 240 da Carta Magna esclarece que as contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, não se incluem naquelas listadas no citado artigo 195. Assim, a alteração da destinação das contribuições do "Sistema S" representa uma violação à finalidade das contribuições sociais, prevista nos artigos 149 e 240 da Constituição.

Por fim, o aumento exacerbado de 100% da taxa de retribuição da Receita Federal do Brasil para arrecadação das contribuições do "sistema S" configura nítido confisco, pois representa uma interdição desproporcional ou injusta apropriação estatal, comprometendo de forma abusiva ainda mais as atividades sociais das entidades. Nesse contexto, entende-se que a Medida Provisória nº 932/2020, diante dos óbices constitucionais materiais, traduzidos na violação aos artigos 3º, 6º, 149, 150, IV, 203, III, e 240 da Constituição, não passa igualmente pelo crivo da razoabilidade que condiciona a análise dos atos estatais.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!