Opinião

Federalismo emergencial em construção: sobre decisão na ADPF 672

Autores

  • Cláudio Ladeira de Oliveira

    é doutor em Direito professor de Direito Constitucional no cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UFSC e coordenador do GConst - Grupo de Pesquisas em Constitucionalismo Político.

  • Guilherme Soares

    é doutor em Direito pela UFSC procurador do Estado do Paraná e membro do GConst — Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político.

13 de abril de 2020, 14h19

No que diz respeito ao funcionamento do sistema constitucional de “freios e contrapesos”, o Brasil é hoje um ponto fora da curva no contexto internacional. Outras democracias constitucionais parecem comprovar um padrão de atuação amplamente documentado na literatura: “quando emergências nacionais ocorrem, o executivo age, o Congresso aquiesce e os tribunais deferem.”[3]

Diante de uma crise de gravíssimas proporções, o Poder Executivo central intervém impondo restrições a liberdades fundamentais (ex. direito de ir e vir, propriedade etc) que, em tempos de normalidade, seriam rechaçadas como inconstitucionais. No parlamento, as forças de oposição apoiam as medidas excepcionais, ampliando formalmente a capacidade de ação do Executivo – ou tolerando ampliações já realizadas de fato mas não de direito. Por sua vez, tribunais assumem uma postura de maior deferência aos juízos políticos legislativos e, principalmente, ao Poder Executivo.

Nas últimas semanas, a disputa sobre quais medidas devem ser adotadas no combate à pandemia causada pelo coronavírus (Covid-19), colocou em rota de colisão dois grandes campos, gerando um cenário singular de instabilidade política, fragmentação institucional e insegurança jurídica. De um lado, um leque heterogêneo de forças que inclui os governadores estaduais, boa parte do parlamento, parcela crescente da opinião pública, respeitados organismos mundiais da área de saúde — a começar pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – e um conjunto amplamente majoritário de técnicos, respaldados por setor significativo da mídia, em especial televisiva, têm implementado e defendido medidas abrangentes de distanciamento social. De outro lado, o Presidente da República, assessores e parlamentares mais próximos, uma base de simpatizantes minoritária, mas aguerrida (disposta a comparecer às ruas e demonstrar apoio), e parte do empresariado têm apoiado a adoção de medidas de distanciamento social mitigado, o chamado isolamento vertical, que alcança apenas alguns grupos sociais específicos.

Diante da edição de medidas severas de enfrentamento da situação de emergência por parte de Estados e Municípios, suspendendo atividades de ensino em instituições públicas e privadas, impondo restrições ao funcionamento do comércio, vedando a realização de atividades culturais e limitando a circulação de pessoas, o Presidente da República insinuou, em diversas oportunidades, que cogitava editar um decreto suspendendo as “quarentenas” estabelecidas pela maioria dos governadores e muitos prefeitos. Tal embate, travado sob a égide de dispositivos constitucionais de contornos imprecisos e de uma estrutura pouco sedimentada de repartição de competências entre os entes federativos, vem minando o esperado agigantamento do Poder Executivo central no contexto de crise. Em seu lugar, observa-se o surgimento de um verdadeiro federalismo de emergência, em que a insuficiência e a precariedade da atuação do governo central, postas à apreciação do Poder Judiciário ciente de suas limitações institucionais, desaguam no alargamento da esfera de ação constitucionalmente legítima dos governos estaduais e municipais.

O advento do federalismo de emergência teve seu ponto culminante na recente decisão do Min. Alexandre de Moraes proferida no dia 8 do mês corrente, na apreciação do pedido de medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672 Distrito Federal (ADPF 672/DF), proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB). A controvérsia posta no caso diz respeito, dentre outros aspectos, a se o Poder Executivo federal pode, com base na Lei federal nº 13.979/2020, que disciplinou as medidas excepcionais para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, praticar atos contrários às políticas de isolamento social adotadas pelos Estados e Municípios. 

O pano de fundo da controvérsia reside na aplicação do §8º, do § 9º e do § 11 do art. 3º da Lei nº 13.979/2020, todos incluídos pela Medida Provisória nº 926/2020. Esses dispositivos estabelecem que as medidas restritivas adotadas no combate à epidemia deverão resguardar os serviços públicos e as atividades essenciais, ambos a serem disciplinados, mediante decreto, pelo Presidente da República. A aplicação isolada desses preceitos permitiria, ao menos em tese, que o Presidente da República definisse unilateralmente quais são as atividades essenciais e, por este ato, excluísse as atividades por si eleitas como essenciais da incidência das medidas restritivas eventualmente impostas sobre elas por Estados, Distrito Federal e Municípios.

Vale ressaltar que as disposições da Medida Provisória 926/2020 são objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341 – Distrito Federal (ADI 6341/DF), da relatoria do Min. Marco Aurélio. Nela houve o deferimento parcial de medida cautelar. Na ocasião, o Min. Marco Aurélio esclareceu que as providências inseridas pela Medida Provisória no art. 3º da Lei nº 13.979/2020 não afastam atos a serem praticados por Estado, Distrito Federal e Município, considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior.

Na decisão da ADPF 672/DF, o Ministro Alexandre de Moraes foi além. Após assentar que a gravidade da pandemia acarreta a obrigatoriedade da adoção pelo Poder Público, em todos os níveis de governo, “de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para apoio e manutenção do Sistema Único de Saúde”, o relator reconheceu a existência de divergência de posicionamento entre autoridades de níveis federativos diversos. Ante essa divergência, o Ministrou buscou no princípio federativo (art. 1º, caput, da CF) e na estrutura constitucional de repartição de competências que lhe dá conformação (arts. 23, II e IX, 24, XII e 30, II, da CF), com especial menção à organização descentralizada do sistema de saúde (art. 198 da CF), os parâmetros superiores para solução da controvérsia, em detrimento do disposto na Lei nº 13.979/2020. Nesse sentido, o Min. Alexandre de Moraes determinou que a aplicação da referida lei federal e de seus dispositivos conexos não pode cercear o exercício por Estados, Distrito Federal e Municípios, no âmbito de seus respectivos territórios, da sua competência administrativa comum para cuidar da saúde e da assistência pública (art. 23, II, da CF), nem prejudicar o exercício pelos Estados e pelo Distrito Federal da sua competência concorrente para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, da CF) ou inibir o exercício pelos Municípios de sua competência legislativa  suplementar (art. 30, II, da CF). A decisão declarou, ainda, que as competências administrativas e legislativas atribuídas pela Constituição aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios permitem a estes entes federativos adotar medidas restritivas excepcionais durante a pandemia, “tais como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, a atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras, independentemente da superveniência de ato federal em sentido contrário”.

As questões enfrentadas na ADPF 672 não comportam respostas simples e nem recomendam conclusões apressadas. A complexidade dos critérios constitucionais de repartição de competências entre os entes federados suscita inúmeras dúvidas mesmo em tempo de normalidade. A questão que se coloca não é tanto “encontrar” a distribuição de competências já claramente estabelecida na Constituição, mas sim “construir” critérios de distribuição que se mostrem razoáveis e guardem suficiente fidelidade às disposições constitucionais. Ao invés de “ponderação de valores” como “saúde” e “economia” (de resto, uma oposição unilateral, que não é fiel à complexidade do problema), a questão central é definir quem detém autoridade política para decidir.

É verdade que definir a autoridade decisora e não o conteúdo da decisão gera riscos adicionais. Não se pode ignorar, por exemplo, o risco de que a decisão da ADPF 672 faça surgir um “federalismo de descoordenação”. É o que poderia resultar de uma decisão final em plenário que afirme a plena competência municipal para utilizar os mecanismos previstos na Lei 13.979/2020, sem a necessidade de observar critérios institucionais de coordenação (o que implica necessariamente alguma hierarquia entre os entes). Isso poderia comprometer a capacidade de enfrentamento à pandemia nos níveis estadual e nacional.

Em contextos de crise (como é o caso da atual pandemia), contudo, as técnicas jurídicas e conceitos interpretativos convencionais, formulados em época de normalidade, deixam de fornecer uma orientação segura para o exercício da jurisdição.

Avaliar quais seriam as eventuais consequências negativas das decisões é parte indispensável do exercício da jurisdição, sobretudo em época de crise. Aliás, um tal “consequencialismo” invariavelmente recomenda a adoção de padrões de decisão mais deferentes aos juízos políticos do Executivo e Legislativo.

O problema dos limites que a jurisdição constitucional deve observar na revisão de atos legislativos e administrativos, todavia, em época de grave emergência e excepcionalidade institucional, ganha contornos críticos, uma vez que a necessária autocontenção judicial implica na prevalência de uma das autoridades políticas em conflito.

Por isso é provável que o plenário do STF, quando discutir a ADPF 672, considere também o problema enfrentado pelo Min. Dias Toffoli em sua decisão monocrática na Suspensão de Segurança (SS) n° 5362, proferida no mesmo dia da decisão do Min. Alexandre de Moraes. Na SS 5362, Toffoli enfrentou problema surgido por conflito entre um decreto municipal mais restritivo à prática do comércio e um decreto estadual que estabelecia limitações mais brandas à mesma atividade. Em sua decisão, prevaleceu o decreto estadual, sob o argumento de que, muito embora o executivo municipal possa impor as pretendidas restrições à circulação de pessoas (de que tratava o decreto municipal) “deveria ele estar respaldado em recomendação técnica e fundamentada da ANVISA (…).”

A consideração adequada dos problemas de autoridade e de autocontenção judicial revelam quão apressado é celebrar a decisão do Min. Alexandre de Moraes na ADPF 672 como uma afirmação da “supremacia constitucional” sobre a competências discricionárias do Poder Executivo. Nessa perspectiva, ela seria uma prova de que, em época de emergência, a o Supremo Tribunal Federal rejeita uma postura de deferência às decisões políticas do Executivo (a regra geral, mundo afora) e reafirma uma postura de ampla revisão e controle judicial dos atos administrativos. A decisão seria então um ato heroico do “guardião da Constituição”, o STF, que submete o poder executivo federal, e a imensa máquina pública a ele subordinada, aos limites constitucionais a que todas as instituições políticas estão hierarquicamente subordinadas. Enfim, uma vitória da Constituição sobre a política.

É preciso observar que ao invés de uma vitória do “Direito” sobre a “política”, a decisão do Min. Moraes é resultado de uma ampla construção política que é anterior e externa ao Tribunal. Embora imponha limites ao exercício do poder discricionário do Presidente da República, tal decisão é dependente de um processo de mobilização de parcela significativa da opinião pública. Além disso, é respaldada por uma concertação de forças políticas organizadas que incluem governadores de Estados e parlamentares federais de coloração ideológica bastante diversa, quando não antagônica. É bastante plausível supor que integrantes de cortes superiores não são indiferentes ao ambiente fracionado da disputa sobre a forma correta do enfrentamento à pandemia.

Por fim, mesmo um tribunal disposto a adotar uma postura de deferência aos juízos políticos do Executivo em época de crise, ao exercer as competências de árbitro de conflitos federativo pode deparar-se com a seguinte questão: a qual poder executivo, de qual âmbito da federação, deve ser prestada a deferência? Em época de crise, via de regra é o executivo federal que amplia suas competências e intervém nas liberdades fundamentais, sob juízo complacente do judiciário, que tolera tais intervenções como um mal menor indispensável para enfrentar o mal maior – a pandemia. Ora, o que ocorre no Brasil é que o presidente da República tem conclamado a uma “volta à normalidade”, se recusado a adotar muitos dos instrumentos excepcionais de restrição das liberdades e prometido expedir decretos para impedir os executivos nos Estados e Municípios de adotarem as medidas extraordinárias. É contra isso que a decisão reage: impede a imposição federal da “volta à normalidade”, permitindo que os executivos estaduais e municipais exerçam juízo discricionário para impor restrições às liberdades. Emerge, assim, o federalismo de emergência, gestado pela política e suportado pelo Direito.

 


[3] POSNER, Eric. VERMEULE, Adrian. Terror in the Balance: security liberty, and the Courts. New York: Oxford University Press, 2007, p. 3.

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