Direito Civil Atual

O Direito Privado e o Direito do Consumidor em tempos de Covid-19

Autores

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

13 de abril de 2020, 10h22

Os ventos da pandemia obrigam o legislador e o intérprete a adaptar os institutos do direito privado, que, neste momento crítico, devem harmonizar e compor os interesses de todos os grupos produtivos, como referencial ou âncora para que possamos todos, de mãos dadas, ultrapassar esta nova crise da melhor forma.

Em primeiro lugar, é de se destacar uma preocupação com a revisão e conservação dos contratos cativos de longa duração ou de trato sucessivo, que se prolongam no tempo, como planos de saúde e mensalidades escolares, que, caso a caso, dependendo das condições sócio-econômicas das partes, devem ter suas prestações ajustadas ao caos provocado pela pandemia, com situações como perda de renda ou emprego pelas partes. A boa-fé objetiva, em suas funções de interpretação (art. 113, CC, alterado pela Lei da Liberdade Econômica1), de controle (art. 187, CC) e de integração (art. 422, CC), assim como o princípio da justiça contratual, terão relevantes funcionalidades em tais situações. O superendividamento dos consumidores fator endêmico à nossa sociedade, certamente será agravado.

A teoria da imprevisão, tal qual prevista no Código Civil, artigo 478, para a revisão dos contratos, pressupõe a superveniência, extraordinariedade e imprevisibilidade do fato, o que se aplica ao atual contexto catastrófico trazido pela pandemia da Covid-19. Trata-se de uma situação excepcional, cujas repercussões sociais e econômicas, bem como a restrição à liberdade, inclusive contratual, e propriedade individual não encontram paralelo na história brasileira recente.

Da mesma forma, diversos contratos atravessarão uma impossibilidade de cumprimento, tendo em vista o caso fortuito ou força maior (Código Civil, artigo 393, parágrafo único). Em muitos casos, isso decorrerá das restrições impostas pelo poder público, no tocante ao encerramento das atividades de determinados estabelecimentos comerciais. É o caso de atividades como o transporte intermunicipal de passageiros, da operação aeroviária de passageiros internacionais e nacionais originada em Estados em que a circulação da Covid-19 for confirmada, de eventos e atividades com presença de público, aulas na rede pública e privada de ensino, funcionamento de academias de ginástica ou shopping centers, dentre outras.

Por outro lado, em relação a serviços que possam ser prestados à distância, como é o caso de profissionais liberais como advogados ou contadores, não há que se falar em impossibilidade da prestação.

Os bens de consumo, seja maior ou menor sua essencialidade, não poderão ter reajustes excessivos, sob pena de ofender a legislação (Código de Defesa do Consumidor, artigo 39, X, que considera como prática abusiva elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços).

Eventuais alegações de impossibilidade ou dificuldade de realização da prestação ajustada em razão da pandemia, bem como os meios necessários para mitigação de danos ao consumidor, são exigentes de amplos deveres de informação, com esclarecimentos prévios e claros, sob pena de responsabilização pelo fato ou pelo vício do produto ou serviço. 2

Não é por outro motivo que, no dia 30 de março de 2020, foi apresentado ao Senado projeto de lei emergencial, sob o número 1.179/2020, que prevê diversas medidas temporárias, a serem adotadas durante o estado de pandemia. O parecer final do projeto 1.179, elaborado pela senadora Simone Tebet, contempla com acerto diversas sugestões apresentadas pela doutrina, que certamente contribuíram para aperfeiçoar a versão final.

O projeto suspende prazos de prescrição (art. 3º) e usucapião (art. 14), posterga até 2021 a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), por mais 36 meses (art. 25) e impede a alegação do caso fortuito e força maior para dívidas antigas.

A inspiração do projeto certamente remete à famosa Lei Faillot que em França de 1918, tratou da revisão dos contratos em virtude da excepcionalidade agravada no cumprimento das prestações convencionadas por conta do colapso econômico decorrente da Primeira Guerra Mundial. Tais medidas se fazem necessárias, em virtude do princípio da solidariedade social, que recomenda a distribuição das perdas decorrentes da pandemia por todo o tecido da coletividade.

O artigo 8º, objeto de emenda, se refere à restrição do direito de arrependimento de que trata o artigo 49 da Lei 8078/90 nas operações de comércio eletrônico, até 30 de outubro de 2020. É verdade que o delivery se tornou a regra em muitas situações hoje, e, com propriedade, o dispositivo tem sua restrição de eficácia limitada à entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e medicamentos.

Considerando que o comércio eletrônico, em tempos de quarentena, tornou-se modelo mais usual, justifica-se o direito de arrependimento pelo risco mais acentuado na contratação, devido ao meio eletrônico, mas a mitigação da regra, de forma temporária, aos bens consumíveis, não ameaça a aplicação histórica do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor pela jurisprudência, mas, devido à solidariedade social, se justifica.

O artigo 9º, dotado de forte sensibilidade social, prevê que não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o artigo 59, parágrafo primeiro, I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei 8.245/91, até 30 de outubro de 2020.

A prisão civil do devedor de alimentos, por força do artigo 19, até 30 de outubro de 2020, será cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações.

O projeto traz consigo vários pontos positivos, como o artigo 19, que prioriza a realização remota de assembleias condominiais e reuniões, com a possibilidade de participação e votação por meio da rede mundial de computadores (Internet), de modo a reduzir a circulação e aglomeração da pessoas, por motivos de saúde.

O princípio da obrigatoriedade dos contratos, salvo para fatos decorrentes da pandemia da Covid-19, é a tônica do projeto de lei, que afasta qualquer retroatividade. O projeto de lei esclarece que os efeitos da pandemia equivalem ao caso fortuito ou força maior, mas não serão aproveitadas as obrigações vencidas antes do reconhecimento da pandemia (artigo 6º.). Em outras palavras, trata-se de uma intervenção mínima para garantir o cumprimento dos contratos O artigo 7º enuncia expressamente que não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins da teoria da imprevisão (arts. 478 a 480 do Código Civil), o aumento da inflação, a variação cambial e a desvalorização ou substituição do poder monetário. Já o parágrafo segundo do mesmo dispositivo exclui da aplicação do Código de Defesa do Consumidor as relações estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários.

Que neste momento crítico a solidariedade social e a colaboração entre as partes sejam as medidas dos remédios a serem aplicados numa crise de consequências imprevisíveis, sobretudo no amparo aos vulneráveis, especialmente aqueles mais pobres e marginalizados, considerado o objetivo da República Federativa do Brasil no sentido da redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, I e III, Constituição da República).

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ)


1 O dispositivo ganhou dois novos parágrafos por força da Lei 13.874/19, ganhando mais peso a autonomia privada: “§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

III – corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º. As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

2 MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de Coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais. São Paulo, v.1015, maio 2020, p.07.(texto ainda não publicado, disponibilizado pelo autor).

Autores

  • é Promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital – Rio de Janeiro.; professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ); professor permanente do doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense (PPGDIN); doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ; e diretor do Brasilcon – Instituto de Política e Direito do Consumidor.

  • é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia e diretor do Instituto de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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