Opinião

Você tem algo contra a testemunha?

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13 de abril de 2020, 6h32

Era um caso de roubo. O indivíduo foi preso “em flagrante”, em local diverso e horas depois do incidente. Segundo o Boletim de Ocorrência, nada de ilícito foi encontrado com o suspeito. A justificar a detenção, havia dois autos de reconhecimento formal positivo, feitos pelas vítimas do roubo.

Depois, no processo, provou-se que nunca houve o reconhecimento das vítimas. Mas, naquela altura, esse detalhe já não era relevante. Ouvidos, os policiais confirmaram que não existiu o reconhecimento formal na delegacia, como constava no Boletim de Ocorrência. O reconhecimento foi feito com uma foto do acusado, que os policiais tiraram com suas câmeras de celular. Mas essas fotos não estavam nos autos. Tinham sido apagadas.

No depoimento, os policiais disseram ter encontrado com o acusado uma capinha de celular, mas isso não estava no Boletim de Ocorrência nem tinha sido apreendida. Os policiais não souberam responder se ela havia sido restituída à vítima. Ao final, os policiais afirmaram que o réu teria confessado, em “off”, o cometimento do crime.

No interrogatório, o acusado esclareceu o porquê não poderia ter sido o autor do roubo. Foi detido em local muito distante, por mera “atitude suspeita”. Também havia a questão temporal, corroborando sua inocência. Na sua mochila, havia apenas uma muda de roupa que usava para trabalhar. Ademais, afirmou que jamais havia confessado aos policiais qualquer prática criminosa.

Foi então que o juiz fez a fatídica pergunta. Não, ele não estava interessado no que o acusado lhe contara. O juiz queria saber apenas uma coisa. “Mas, me diga uma coisa, o senhor tem algo contra os policiais que o prenderam? Teria algum motivo para eles quererem prejudicá-lo?” O acusado respondeu que não tinha nenhum problema com os policiais que o prenderam.

Então, como num passe de mágica, todas as deficiências do processo foram resolvidas. Se o acusado não tinha sido capaz de responder satisfatoriamente a pergunta do juiz sobre eventual inimizade com as testemunhas, não havia motivo para duvidar das testemunhas.

Os policiais não estavam no local do crime. As vítimas não reconheceram o suspeito. Mas a pergunta do juiz tinha resolvido toda a complexa atividade de julgar. Estava aberto, então, o caminho para a condenação com base em um simples raciocínio: se o próprio réu não é capaz de elencar motivos para desafiar a credibilidade dos policiais, não há motivo para desconsiderar o relato deles.

Não se trata de um caso único. Acontece todos os dias. O processo penal tornou-se absolutamente dispensável, que se resolve por meio de uma única pergunta, simples e objetiva. Não é exagero. Tudo parece irrelevante, exceto a pergunta do juiz sobre eventual problema pregresso em relação às testemunhas da acusação. Se não houver um motivo justificado, a condenação é certa.

É doloroso ver a Justiça ignorando diariamente séculos de ciência e estudo, ao virar as costas para os melhores métodos de apuração de fatos criminosos. Nossos juízes encontraram um atalho, muito mais rápido, para chegar à “verdade” dos fatos.

Não ignoremos a realidade. Policiais enganam-se, tanto quanto nós nos enganamos. Policiais mentem, tanto quanto nós mentimos. Juízes são parciais e preconceituosos, tanto quanto nós o somos. E sim, encontrando algum produto do crime, é preciso apreender para que sirva de indício probatório.

Trata-se de premissas universais, que vêm norteando, ao longo de séculos, a criação das regras processuais. Não é nenhuma novidade no campo epistemológico. E todos os países democráticos acolheram, em de sua legislação processual, esse desenvolvimento civilizatório para mitigar os aspectos subjetivos no momento de julgar um fato. No Brasil, no entanto, caminhamos em sentido contrário.

Ninguém deseja impunidade. Todo cidadão tem direito à repressão devida contra os violadores de nosso pacto social. Mas é preciso advertir para a quase certeza de que erros serão cometidos ao ignorar as regras processuais. O processo torna-se arbítrio. Torna-se uma roleta russa, na qual o cano do revólver está sempre voltado ao réu.

O acusado dos fatos acima narrados é inocente, mas continua preso, pelo simples fato de não ter respondido satisfatoriamente à pergunta do juiz sobre eventual inimizade com a testemunha. Disse a verdade, mas não foi suficiente.

Há em nossas cadeias muitos inocentes como o rapaz acusado de roubo. Não é fácil medir o tamanho da injustiça. Ao contrário dos casos dos filmes norte-americanos, não haverá exames de DNA redentores que salvarão essas pessoas. Na maioria dos casos, são indivíduos pobres que não conseguirão entender sequer a razão pela qual foram condenados. As facções criminosas têm sabido acolher e manipular essa indignação.

Se queremos nos abeirar da dimensão dessa injustiça, não fechemos os olhos à incrível quantidade de casos “resolvidos” com base em provas heterodoxas; por exemplo, reconhecimentos pessoais falhos, objetos relacionados ao delito não apreendidos e depoimentos testemunhais não repetidos em juízo. E, além disso, há de se prestar redobrada atenção nos casos em que surgir a fatídica pergunta: “Você tem algo contra a testemunha?”

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