Opinião

Liberdade de expressão e redes sociais: a que ponto chegaremos?

Autores

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • João Victor Rozatti Longhi

    é defensor público no Estado do Paraná e doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da USP.

13 de janeiro de 2021, 11h09

"As democracias que se tornaram fascistas pecaram gravemente por sua leniência ou por conceitos muito legalistas de liberdade de expressão" (Karl Loewestein) [1]

Em lições preliminares sobre redação, aprendemos que textos narrativos começam com fatos. E não são necessárias muitas palavras para rememorar o que ocorreu em Washington (DC), Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021. O mundo todo assistiu estarrecido à invasão e à depredação do Congresso americano, interrompendo-se a sessão que posteriormente validou os votos do colégio eleitoral para a eleição de Joe Biden como futuro presidente do país. Quatro pessoas morreram e outras ficaram feridas.

O ainda presidente do país, Donald Trump, insuflava os invasores por meio do seu Twitter. A rede social então, ineditamente, suspendeu a conta do usuário por 12 horas e foi acompanhada por Facebook e Instagram, que também anunciou — por meio de seu criador, Mark Zuckerberg, na própria rede — que suspenderia a conta de Trump [2].

A medida divide opiniões sobre a questão da liberdade de expressão.

Afinal, a rede social pode retirar unilateralmente conteúdos, suspender contas, bloquear perfis etc.?

Como ponto de partida, o argumento de que a natureza jurídica das redes sociais é a de um serviço no mercado de consumo e de que os "termos de uso", "políticas de conteúdo" etc. são, a rigor, cláusulas contratuais às quais o usuário "leu, compreendeu e concordou" com um clique.

Transpondo-se à realidade brasileira, os que se opõem à resposta pura e simplesmente com esse argumento se lastreiam em uma série de aprofundamentos, tais como o de que o provedor de aplicação de rede social, nos termos do artigo 19 do Marco Civil da Internet, cuja constitucionalidade é questionada com repercussão geral, somente será responsabilizado uma vez notificado judicialmente de que um conteúdo seria ilícito e que a opção legislativa foi essa com o intuído de proteger a "liberdade de expressão", como diz a lei. A conduta do provedor de retirar unilateralmente conteúdos poderia inclusive ser considerada como um abuso do direito (artigo 187, CC), ensejando responsabilidade civil [3]

Por outro lado, críticos da opção brasileira salientam que mesmo nos Estados Unidos, onde há uma suposta cultura de liberdade de expressão mais permissiva que em países da Europa continental e no Brasil, a regra sobre responsabilidade civil na internet (Seção 230 do U.S. Code) adota o princípio do notice and takedown, desobrigando a vítima de procurar a Justiça, bastando a prova da comunicação extrajudicial ao provedor para que este retire o conteúdo em tempo hábil.

Tal visão argumenta que a lei brasileira seria inclusive inconstitucional, pois trata como lícitos a priori conteúdos cuja ilegalidade é flagrante, que violam não só os termos de uso do site, mas são criminosos ou ao menos carregam um conteúdo tóxico que demandaria um outro tratamento legal.

Seriam exemplos os perfis falsos, casos em que as vítimas vivem um calvário de der de ajuizar várias demandas contra os provedores, indicando os links específicos para a retirada dos conteúdos e, para eventualmente tentar conseguir alguma indenização, requerem judicialmente o fornecimento dos dados do criador e o IP de quem postou, sendo obrigados a posteriormente ajuizar outra série de demandas contra os provedores de conexão para assim por ventura obterem dados pessoais ligados a esses IPs, achando o verdadeiro causador do dano. Quando os IPs não são "maqueados" por softwares facilmente encontrados na internet, esbarram na falta de capacidade financeira do autor do dano e o ilícito não é reparado para a vítima. Mas gera cliques, likes, dados para o provedor, que lucra com isso.

Outro caso seria o do discurso de ódio, com conteúdo racista, misógino, homofóbico etc. Em que pese se reconheça a dificuldade de estabelecer limites a priori sobre o que é lícito ou não em falas consideradas preconceituosas, mesmo a doutrina mais tendente a exaltar a liberdade de expressão reconhece que "o rigor da lei deve ficar reservado para o discurso de ódio extremo, que é aquele que tem o proposito de lesar direitos dos integrantes do grupo discriminado ou que busque incitar à violência ou à lesão desses direitos." [4] (grifo dos autores). 

Como o artigo 21 do MCI trata da pornografia de vingança de forma diversa, adotando a sistemática da responsabilidade civil do provedor pela notificação extrajudicial, levanta-se a possibilidade de se usar a sistemática da exceção aos perfis falsos e ao discurso de ódio extremo como meio de se interpretar o artigo 19 do MCI à luz da Constituição e, assim, evitar-se uma declaração de inconstitucionalidade optando-se por uma interpretação conforme.

Portanto, o provedor não só poderá retirar o conteúdo — e bloquear posts e contas com postagens dessa natureza — como deverá, de modo não somente a se resguardar da própria responsabilidade como mitigar danos que não atingem somente a um ou outro indivíduo ofendido, mas a toda a sociedade. Claro que poderão ocorrer abusos, mas a rigor tal sistema de responsabilidade assim engendrado seria congruente com um poder que as redes sociais têm e sempre tiveram: moderar o conteúdo de acordo com o que interpretam como correto, exercendo o poder de polícia que as cláusulas contratuais lhes conferem. Restaria menos espaço, então, para o provedor ser leniente com aqueles que sistematicamente violam seus termos de uso em troca da atenção de milhões de usuários [5]Tratar-se-ia, portanto, de algo inerente ao risco de seu negócio.

Por último, a questão da desinformação. O PL 2630/20 (Lei das Fake News) traz mecanismos — criticados em regra por quem defende visão mais permissiva aos discursos extremos e, em tese, à liberdade de expressão — como a necessidade de guarda de metadados em caso de comunicação de massa (mensagens idênticas enviadas um grande número de usuários) e a criação de um conselho ligado ao Congresso Nacional para de alguma maneira dirigir a conduta de players privados com tamanho poder informacional no escopo de mitigar os danos das chamadas fake news.

Apesar da amplitude ainda maior do problema da desinformação, já que é tão ou mais tênue a linha que separa o lícito do ilícito nesse caso, é certo que a responsabilidade civil aqui poderia passar por uma regulação que reconheça a dimensão coletiva do problema, partindo-se da premissa que "(…) o controle judicial, com seus métodos analógicos, tende a ser insuficiente no combate à desinformação digital" [6]

Uma interpretação conforme do artigo 19 do MCI deveria ao menos se posicionar sobre a pertinência de se considerar qualquer conteúdo como legítimo exercício da liberdade de expressão e se manter um sistema de notificação judicial como a regra de combate a algo tão nefasto para a democracia e para a saúde pública de forma atomizada em detrimento de soluções massificadas e coletivas. Mas, por ora, o Brasil também coloca a desinformação no lugar comum da notificação judicial.

Retornando-se à realidade americana, Richard Delgado e Jean Stefanic destacam: "Quando neonazistas e supremacistas brancos marcharam em Charlottesville, o fizeram em nome da liberdade de expressão (…)" [7]

Em 6 de janeiro de 2021, os mesmos ideais justificaram a "bravura" e "coragem" da invasão ao Congresso americano com incentivo do ainda presidente Trump, ato regado a muita desinformação e teorias conspiratórias. Onde o mundo vai parar? Talvez as democracias ocidentais devam repensar com seriedade o que é lícito ou ilícito nas redes sociais antes que seja tarde demais.

 


[1] “Democracies which have gone fascist have gravely sinned by their leniency, or by too legalistic concepts of freedom of public opinion.”LOWENSTEIN, Karl. Militant democracy and fundamental Rights II. The American Political Science Review, Vol. 31, No. 4 (Aug., 1937), pp. 638-658. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1948103. Acesso em: 07 jan. 2021. p. 652-653. Tradução livre.

[3][3] Cf. ZAMPIER, Bruno. Bens digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 2. ed. Indaiatuba, SP: Foco, 2021. p. 246 e ss.

[4] ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Liberdade de expressão em tempos de cólera. Rio de Janeiro: GZ, 2020. p. 305.

[5] Nesse sentido: “Lawmakers and even employees of the companies said the platforms had waited too long to take serious action against Mr. Trump. At Facebook, dozens of workers noted that the company had only suspended Mr. Trump from posting after Democrats had secured the presidency and control of the Senate, according to people familiar with the internal conversations.” THE NEW YORK TIMES. Facebook Bars Trump Through End of His Term. Mike Isaac and Kate Conger. Jan. 7, 2021. Updated 5:12 p.m. ET. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/01/07/technology/facebook-trump-ban.html?auth=login-facebook. Acesso em 07 jan. 2021.

[6] MORAIS, José Luis Bolsan de; FETSUGATTO, Adriana Martins Ferreira. Democracia desinformada: eleições e fake news. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021. p. 115.

[7] "When neo-Nazis and white supremacists marched in Charlottesville, they marched under the banner of free speech […]". DELGADO, Richard; STEFANIC, Jean. Must we defend the nazis? Why the first amendment should not protect hate speech and white supremacy. New York: New York University Press, 2018. p. 160. Tradução Livre.

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