Opinião

Vírus do autoritarismo na pandemia do coronavírus

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11 de abril de 2020, 18h51

O presente texto não vem questionar os critérios técnicos científicos do isolamento horizontal para fins de evitar a propagação do vírus e o debate econômico que defende o isolamento vertical. Também não deseja ingressar nas razões ideológicas que cercam o debate. Mesmo porque as posições contrapostas estão misturadas e invertidas. O que se deseja abordar são os limites dos poderes do Estado na limitação do direito de ir e vir e na livres iniciativa econômica — sob a premissa de que se o isolamento é a estratégia correta, deve ser voluntário.

Importante artigo de Raúl Zibechi veio tratar da militarização da crise do Corona vírus. O autor denuncia que “É necessário voltar aos períodos do nazismo e do estalinismo, há quase um século, para encontrar exemplos de controle de população tão extenso e intenso como os que acontecem na China, nesses dias, com a desculpa do coronavírus. Um gigantesco panóptico militar e sanitário, que limita a população”. Continua revelando que as cidades parecem “campo de concentração a céu aberto pela imposição de quarentena a todos os seus habitantes (…) Cidades desertas, onde transita apenas gente da segurança e da saúde.”[1]

Nesse contexto, foi realizada pesquisa, divulgada em 6 de abril, demonstrando que 76% da população aprova o isolamento[2], denotando o apoio popular às medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Acompanhando esse sentimento popular, em 8 de abril, o Supremo Tribunal Federal, por meio do ministro Alexandre de Moraes, decidiu que o governo federal não pode derrubar decisões de estados e municípios sobre restrições na atividade econômica e circulação de pessoas que correspondam a formas de combate ao avanço da atual pandemia[3].

O pedido formulado pela OAB na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 672 à corte constitucional visava impedir a presidência do governo federal de interferir no trabalho técnico do Ministério da Saúde e nas decisões dos governadores. Na decisão o Min. Alexandre de Moraes afirmou ser grave a divergência de posicionamentos entre autoridades dos diversos níveis federativos, concluindo que não compete ao poder executivo afastar decisões de governos estaduais que adotaram medidas “reconhecidamente eficazes para a redução de número de infectados e de óbitos”, posicionamento que faz coro com a opinião majoritária da população, mas diverge do presidente da república — este defende a “voltar à normalidade” e o fim do “confinamento em massa” resultante de “pavor” que os meio de comunicação teriam espalhado[4].

Com efeito, o medo move o sentimento da população que apoia massivamente essa espécie de controle populacional, ocorre que esse medo pode se voltar contra o cidadão – vale recordar a máxima: o preço da liberdade é a eterna vigilância.

Temos um novo “inimigo interno”, invisível, o coronavírus. No imaginário vem cair como uma luva em terra que já foi fértil a doutrina de segurança nacional, que se fundamentou contra os “inimigos da pátria”. Esses inimigos vão mudando de tempos em tempos; os comunistas, os subversivos, depois traficantes e hoje a questão da saúde pública toma o lugar.

A política higienista não é inédita no Brasil, já vivemos as consequências dela no início do século XIX, e fomos o primeiro país do mundo a ter carteira de identidade, controle sob hotéis e transformamos cidades com as destruições dos cortiços sob a justificativa da higiene. Mesmo assim, hoje nos deparamos, em pleno século XXI, com enormes favelas sem água ou sabão. Antes do positivismo a ideologia higienista contra o pobre, o negro, o estrangeiro e as atitudes de “mendigos e ébrios”, “vadios e capoeiras” e “prostitutas e cáftens”, que serão criminalizados pelo Código Penal de 1890 e suas alterações, a fim de limpar a cidade do que era considerado “fezes sociais” e suas atitudes “viciosas” e propagadoras de “doenças[5]”.

A carta fundante da democracia brasileira de 1988 tem no seu artigo como fundamento da República brasileira a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Estão presentes no texto constitucionais garantias das liberdades individuais no artigo 5º, assim como a proteção à livre iniciativa econômica, no artigo 170. De outro lado, a Constituição prevê a possibilidade de suspensão de garantias, em seu artigo 137[6], com a possibilidade do presidente da República solicitar a decretação de estado de sítio em caso de “comoção grave” ou a “ineficácia de medida durante estado de defesa” ou “declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada”, com limitação de 30 dias, e somente nesses casos medidas para “obrigação de permanência em determinadas localidades” “detenção em edifícios” “restrições relativas a inviolabilidade de correspondência” e mesmo a “suspensão de liberdades de reunião” a “intervenção nas empresas de serviços públicos”. Veja, não estamos vivendo os pré-requisitos para estado de sítio, mesmo sendo a saúde um dos fundamentos do artigo sexto da constituição.

A aprovação da Lei 13.979 de 2020, que dispõe sobre o enfrentamento de emergência do coronavírus concede uma série de poderes às “autoridades”, sem a exata definição de competências, possibilitando medidas de isolamento e quarentena. Possibilita a “restrição excepcional e temporária de rodovias, portos ou aeroportos”. Possibilita a requisição de bens e serviços de pessoas físicas ou jurídicas, com indenização posterior. Garante a autorização do Ministério da Saúde, excepcional e temporária de produtos mesmo sem registro da Anvisa. e determinação compulsória de determinados atos, assim como de estudos ou investigação epidemiológica, exumação, necropsia, cremação e de manejo de cadáveres.

Ocorre que o isolamento é exclusivo para “separação de pessoas doentes ou contaminadas”, além de objetos. Portanto, a lei cria uma condição ao exercício do poder de isolamento da autoridade, qual seja, a existência de teste conclusivo de que o destinatário da ordem de isolamento esteja contaminado.

A quarentena de igual forma somente pode ser direcionada a atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação que não estejam doentes de “maneira a evitar a propagação de coronavírus”. Esses poderes, portanto, são limitados e não suspende a garantia de ir e vir de pessoas. Mesmo a “excepcional e temporária” restrição de rodovias, portos e aeroportos precisa de prévia recomendação técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

A emergência sanitária e a necessidade de proteção da vida e a edição de norma nova sem regulamentação acabou por gerar, mesmo que de boa-fé, ações que extrapolam a norma, as competências Federais, Estaduais e Municipais. Isso em especial em um país em que não são cumpridos os objetivos das fundamentais da República, especialmente aquele determinado pelo artigo 3º da Carta Magna, que é erradicar a pobreza e garantir o bem estar de todos. Como resultado, temos enorme parcela da população sob fragilidade, que agora se vê diante de situação ainda mais complicada.

É preciso encontrar equilíbrio na manutenção das garantias constitucionais da liberdade de ir e vir, da livre manifestação do pensamento, vedando por evidente divulgação de informações que coloquem em risco a população. Mas acima de tudo entender que, exceto nos casos de evidente contaminação comprovada, o Direito Penal não é o caminho para lidar com a situação de pandemia.

Bem por isso, os ‘Crimes contra a Saúde Pública” previstos no Código Penal “causar epidemia” (artigo 267), e “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” (artigo 268), não se aplicam as pessoas não contaminadas que decidam negar o isolamento ou a quarentena.

De modo que o caminho democrático é a conscientização da população, se é quarentena e isolamento que poderão auxiliar a controlar a pandemia, deve a imposição à liberdade ser voluntária e motivada pelo ideal de contribuir com a saúde pública. As liberdades individuais de quem não coloca em risco a saúde pública não podem ser sacrificadas com justificativa da crise causada pelo coronavírus, sob pena de no futuro as autoridades encontrarem novos pretextos para tolher a liberdade do cidadão.


1 ZIBECH, Raúl. Coronavírus: a militarização das crises. In: Coronavírus e a luta de classes. São Paulo: Terra Amos, 2020, P. 37.

2 https://exame.abril.com.br/brasil/76-dizem-que-isolamento-social-e-o-mais-importe-agora-aponta-datafolha/

3 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441075

4 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/24/bolsonaro-pede-na-tv-volta-a-normalidade-e-fim-do-confinamento-em-massa.ghtml

5 FERNANDES, Fernando Augusto. Voz Humana: a defesa perante os tribunais da república. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

6 Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

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