Direito Civil Atual

Como proteger o consumidor quanto aos bens essenciais na Covid-19

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11 de abril de 2020, 11h11

ConJur
A pandemia gerada pelo novo coronavírus tem acarretado adversas consequências nas relações jurídicas de consumo, principalmente no que concerne aos serviços públicos essenciais e a determinados contratos que tratam de bens de inquebrantável importância para a população. A Lei Federal 13.979/20 dispôs sobre as medidas para o enfrentamento do quadro de calamidade pública instalado e o isolamento, englobando a quarentena e a restrição do traslado de pessoas, têm gerado reflexos para os destinatários finais de bens. Destina-se esta explanação a tratar, de modo breve, da elevação dos preços de itens e de relevantes contratos, como o transporte aéreo e o fornecimento dos serviços de energia elétrica e telecomunicações. Os planos de saúde, os contratos educacionais e os contratos bancários adrede serão objeto de sucinta análise.

O sub-reptício aumento dos valores de determinados itens de consumo, designadamente produtos de assepsia, medicamentos e gêneros alimentícios, impulsionou a Secretaria Nacional do Consumidor a editar a Nota Técnica 8/2020, recomendando “a análise caso a caso de abusividades”. As providências indicadas são salutares, mas exigem investigação que perdurará um longo espaço temporal, não podendo os entes legitimados à proteção coletiva dos vulneráveis aguardá-lo, para pugnarem pela tutela de urgência[1]. A defesa do consumidor não se encontra no mesmo patamar que a liberdade mercadológica, visto que, conquanto sejam princípios vetores da Ordem Econômica, a primeira constitui direito fundamental, pressupondo a necessária intervenção do poder público. Martín-Retortillo e Otto y Pardo propugnam que, em conflitos de tal jaez, não se recorre “à ponderação de bens e valores nem hierarquização”[2].

O transporte aéreo sofreu intenso impacto que engendrou a MP 925/20, restando estabelecido que o reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será efetivado em doze meses e que os consumidores ficarão isentos das penalidades, desde que aceitem a concessão de crédito para utilização neste mesmo prazo. A Senacon firmou Termo de Ajustamento de Conduta com as empresas que executam o serviço, ficando regras para a remarcação dos voos operados a partir de 1/3/2020. Sob o argumento de que a baixa demanda acarretou a redução das operações, previu-se a não exigência da assistência material em caso de atrasos ou cancelamento de voos decorrentes de fechamento de fronteiras; e foram admitidas alterações programadas. Assegurou-se para as empresas a suspensão da cobrança e do pagamento de multas pelo prazo de 180 dias. Atribuiu-se prioridade aos canais de atendimento telefônico e online, concedendo-lhes o prazo de até 45 dias, para resposta aos passageiros, e caso a demanda não seja sanada, poderão “registrar reclamação na plataforma consumidor.gov.br”.

As citadas cláusulas do acordo beneficiam sobremaneira o setor empresarial, não se observando contrapartidas profícuas para os consumidores, especialmente a que veda a cobrança de sanções pecuniárias impostas devido às infrações cometidas pelas empresas em períodos anteriores à pandemia. A eliminação da assistência material, garantida pela Resolução Anac 400/16, é também inaceitável, como pondera Bruno Miragem[3]. O prazo para que as empresas respondam às solicitações dos consumidores é por demais extenso e a eleição da plataforma digital para a busca de soluções não pode obliterar o direito constitucional de acesso à justiça. Não obstante o TAC mencione o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, não há vinculação dos entes que o integram, eis que não participaram da sua formalização.

O acesso à energia elétrica e à água denota-se crucial para o desenvolvimento das atividades necessárias à sobrevivência dos seres humanos, tendo a ANEEL editado a Resolução Normativa 878/2, prevendo três conjuntos de medidas: a vedação da suspensão do fornecimento do serviço para determinadas unidades; a coibição do cancelamento do benefício da Tarifa Social; e benefícios para as empresa do ramo. No entanto, estabeleceu que as medidas previstas “poderão ser reavaliadas a qualquer tempo” e o ideal seria que fossem mantidas em todo o período estigmatizado pela pandemia, protegendo-se devidamente os consumidores de baixa renda.

A Resolução vedou a não interrupção da energia elétrica para as unidades que desenvolvam atividades essenciais, naquelas onde existam usuários de equipamentos vitais, e em prol das consideradas de baixa renda e rural, estendendo o benefício para as que estejam situadas em locais onde não exista posto para o pagamento de faturas. A despeito destas regras, as concessionárias não se encontram impedidas das demais medidas admitidas pela legislação para a cobranças dos débitos. O ideal seria que, no atual momento calamitoso, não encetassem demandas para o pagamento compulsório de valores pelos mais carentes. Ademais, instituiu-se “a anuência tácita pela não entrega mensal da fatura impressa e recebimento por outros canais”, fragilizando a situação dos humildes e dos analfabetos funcionais.

A Resolução foi assaz benéfica para as concessionárias, visto que foram suspensas as penalidades sobre medição e as multas, ficando desobrigadas da disponibilização de estrutura para o atendimento dos consumidores. A possibilidade de realização de leitura dos medidores em intervalos diferentes, ou a não realização da atividade, não significa que podem as empresas impor cobranças arbitrárias, utilizando-se do “faturamento pela média aritmética”. Foram suspensos os prazos para o ressarcimentos e compensações dos consumidores; e afastou-se a incidência da devolução em dobro na ocorrência de faturamento incorreto por motivo relacionado à calamidade. Não devem, porém, se utilizar desta justificativa para tentar se eximir da responsabilidade objetiva pela má prestação do serviço por fatos que não estejam interligados com a disseminação do agente viral.

A Agência Nacional de Telecomunicações divulgou o Compromisso Público “Manutenção do Brasil Conectado”, subscrito pelas empresas do setor, no bojo do qual, constam a confirmação de quatro medidas, que envolvem: a prestação continuada dos serviços; a priorização das atividades de saúde e segurança pública; a adequação dos mecanismos para a quitação de faturas; e a divulgação de informações sobre a pandemia, sendo que atenção especial será dispensada “aos consumidores que utilizam créditos pré-pagos. A atribuição de maior relevância para estes contratos é questionável e criticável, uma vez que as pessoas não podem ser discriminadas pelo simples fato de estarem pagando antecipadamente pelos serviços. Por intermédio dos despachos 8/2020/SAF e 9/2020/SAF, a autarquia adotou providências favoráveis às empresas, determinando a suspensão excepcional da incidência de juros e de multa de mora sobre os tributos e outras receitas.

Até o presente momento, não se tem conhecimento de atos normativos lançados pela Anatel assegurando que, efetivamente, os consumidores não serão prejudicados quanto aos seus direitos basilares de usufruírem os serviços, preservando-se a qualidade e continuidade das conexões[4] e a facilitação para a quitação de faturas. A LGT e o Marco Civil da Internet reafirmam a importância do sistema informatizado para milhares de pessoas. Não se trata de questão que implique em um simples compromisso das operadoras do setor, mas, sim, do dever destas de garantirem que os brasileiros possam se comunicar e adquirir bens essenciais para a sua sobrevivência.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar vem expedindo orientações que podem ser reunidas em cinco blocos: a obrigatoriedade do exame para a identificação da COVID-19; a flexibilização das regras para o registro e a acreditação das operadoras; a amenização das exigências para a utilização do capital destas; a intitulada Telessaúde; e a ampliação e/ou suspensão de prazos para consultas, procedimentos e tratamentos. Limitou-se a autarquia reguladora a expedir, como determinação protetiva dos consumidores, a compulsória realização da avaliação sobre a moléstia por meio da RN 453/20. Nenhuma providência para a intensificação quanto à fiscalização das empresas do setor restou ordenada, mesmo sendo a saúde o bem jurídico sem o qual não se consegue sobreviver[5]. Os contratos coletivos, por adesão ou empresariais, que vêm sendo alvos de constantes rescisões imotivadas, não foram objeto de qualquer medida, evitando-se a sua extinção.

No que concerne à amenização das regras concernentes à criação e ao funcionamento das operadoras, conforme as Resoluções Normativas 447/20, 450/20, 452/20 e 454/20, torna-se imperiosa a fiscalização da autarquia no sentido de se evitar que sejam instituídas pessoas jurídicas desestruturadas que prestem serviços desqualificados e insatisfatórios. Quanto à utilização de recursos reservados, a ANS objetiva a sua flexibilização, mas urge que não ocorram desvios, gerando o posterior aumento das mensalidades. As empresas serão beneficiadas com a prorrogação de prazos para o cumprimento de obrigações, o envio de informações, e o ressarcimento ao SUS, mas que estas benesses não lhes sirvam para que sejam afrouxados os deveres legais e as penalidades.

Com finco na Portaria MS 467/2020, a ANS recomendou que as operadoras autorizem os atendimentos médicos à distância. O ideal seria que avançasse mais, assegurando penalidades para as empresas que descumprissem esta regra, não se limitando a recomendá-la. Poderia estabelecer valores condizentes para os profissionais de saúde que, diante da necessidade do paciente, pudessem deslocar-se até onde este se encontra, para o examinar com acuidade. A ANS ampliou e suspendeu determinados prazos para a concretização de consultas, tratamentos e procedimentos, exceto os casos de urgência e emergência que terão recepção imediata do paciente. Permanece o atendimento nos prazos normais para os casos em que o médico assistente justifique por meio de atestado, bem como os tratamentos que não podem ser interrompidos ou adiados por colocarem em risco a vida do paciente.

O Ministério da Educação baixou a Portaria 343/20 e a Secretaria Nacional do Consumidor editou as Notas Técnicas 4/20 e 14/20, que tratam, respectivamente, de serviços educacionais privados e das creches e berçários, advindo, em seguida, a MP 934. Autorizou-se a substituição de aulas presenciais por atividades remotas por meio digital, vedando-se, a priori, para os cursos de Medicina, bem como quanto em face das práticas profissionais de estágios e de laboratório dos demais cursos, mas a Portaria MEC 345/20 as liberou. As instituições de ensino poderiam optar pela posterior reposição integral, desde que cumprissem os dias letivos e horas-aulas. No entanto, a MP 934/20 dispensou a observância ao mínimo de dias de efetivo de trabalho, chancelando ainda a abreviação dos cursos de Medicina, Farmácia, Enfermagem e Fisioterapia.

As referidas providências não podem ser adotadas de forma unilateral pelas instituições de ensino, competindo-lhes ouvir a comunidade acadêmica do modo mais amplo possível. Optando pelas aulas executadas pelos meios tecnológicos, a qualidade terá que ser preservada, garantindo-se aos discentes o conteúdo devido. A abreviação da conclusão dos citados cursos poderá gerar impactos negativos na aquisição dos conhecimentos necessários ao exercício profissional. A Nota Técnica 14/2020, expedida pela Senacon, não recomenda que as instituições de ensino reduzam os valores dos pagamentos mensais ou aceitem a sua postergação. Desconsidera a situação extremamente preocupante vivenciada pelos consumidores e, inclusive, sugere a aplicação de multas para o cancelamento e que os eventuais reembolsos sejam postergados. Existe, contudo, projeto de lei que tenciona buscar amenizar as mensalidades escolares e/ou conceder certa moratória para as quitações.

Diversos consumidores não conseguirão cumprir as obrigações assumidas quanto a vários outros contratos, principalmente, os de natureza bancária. Na Alemanha, foram instituídos mecanismos de “dilação de termos de obrigações contratuais”, permitindo “a invocação da ‘exceção de ruína pessoal’”; e/ou a descaracterização dos efeitos da mora “para futuros pagamentos, ainda que não se crie uma hipótese de liberação geral de devedores”[6]. O Brasil ainda não dispõe de regras sobre a problemática, sendo crucial a disciplina da matéria em prol dos consumidores, mormente os mais fragilizados economicamente. Conclui-se que resoluções normativas, medidas provisórias e notas técnicas não podem sobrepujar o microssistema consumerista, competindo aos Instrumentos da Política Nacional de Consumo atuação enérgica e combatente para assegurar o equilíbrio econômico no atual momento caótico.


1 Conferir os artigos 39, incisos IV, V, X e XIII, assim como o 51, inciso IV, e parágrafo 1º, do CDC, bem como os crimes tipificados pelas Leis 1.521/51 e 8.137/90.

2 MARTÍN-RETORTILLO, Lorenzo; PARDO, Ignacio de Otto y. Derechos Fundamentales y Constitución. Madrid: Editorial Civitas S.A, 1992, p. 144.

3 MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, vol. 1015/2020, p. 1-9, maio 2020.

4 Cf.: BÜLOW, Peter.; ARTZ, Markus. Verbraucherprivatrecht. 6. Auflage. Heidelberg: C.F. Müller GmbH, 2018, p. 78. FRIES, Martin. Verbraucherrechtsdurchsetzung. Tübingen: Mohr Siebeck, cop. 2016, p. 126.

5 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos de Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 128. Cf.: FIN-LANGER, Laurence. L’équilibre contractuel. Paris: LGDJ. 2002.

6 Cf.: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Alemanha aprova legislação para controlar efeitos jurídicos da Covid-19. São Paulo, Revista Consultor Jurídico, Coluna Direito Civil Atual, 25 de março de 2020. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. A célebre lei do deputado Failliot e a teoria da imprevisão. São Paulo, Revista Consultor Jurídico, Coluna Direito Civil Atual, 02 de abril de 2020.

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