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Pandemia, horror e discriminação — os piores erros do passado

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11 de abril de 2020, 8h00

Spacca
As secretarias estaduais de saúde divulgaram, na última quinta-feira (9/4), que são 18,1 mil casos confirmados do novo coronavírus (Sars-Cov-2) e 950 as mortes causadas pela Covid-19. O balanço mais recente do Ministério da Saúde, divulgado na mesma data, apontou para 17,8 mil casos confirmados e 941 mortes.[1

A pandemia não é uma gripezinha, perdoe-me, Sua Excelência, o presidente Bolsonaro. Esta afetou violentamente a Europa, como evidenciam os casos da Itália, da Espanha, da França, da Inglaterra e da Alemanha. Nos Estados Unidos, especialmente no Estado de Nova York, os danos humanos, sociais e econômicos são imensos ao ponto de Republicanos e Democratas aprovarem, no Congresso, o Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security Act, para injetar 2 trilhões de dólares na economia nacional que, se espera, possam chegar as mãos dos afroamericanos, latinos, imigrantes, Lgbts e hipossuficientes em geral. Aliás, a rapidez e a justa distribuição destes recursos é uma preocupação de Paul Krugman[2] que aponta, de acordo com dados desta semana, para um total de 15 milhões de desempregados, em virtude da Covid 19, nos Estados Unidos.[3] Com efeito, em face da contaminação transfronteiriça da pandemia, é necessária uma ação internacional coordenada pelos líderes mundiais, como assinala Joseph Stiglitz,[4] e o Brasil não pode se omitir desse dever politico e jurídico. É hora de assumir o protagonismo em defesa da vida e não de afrontar a ciência.

Todas as nações pretendem, pelo meio de políticas públicas, achatar a curva das pessoas infectadas e das mortes. Todavia, nas últimas décadas, não foram investidos recursos suficientes para o combate as pandemias. Esta a causa de não existir uma vacina para a Covid 19. Por outro lado, foram gastos recursos trilhonários, públicos e privados, em todo o mundo na indústria dos combustíveis fósseis (responsável pelo aquecimento global), na indústria bélica, na indústria dos cosméticos e na corrida espacial. Em vários cenários faltam UTIs e ventiladores para as vítimas do coronavírus. Os remédios, mais eficazes, deste modo, continuam sendo as quarentenas e o isolamento social utilizados noutros séculos em pandemias do estilo. Para não dizer que nada evoluiu, hoje agregamos o lavar as mãos, o álcool gel, as máscaras e, ainda, as controversas cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento dos pacientes.

É de se lembrar que uma, das tantas pandemias registradas na história, chegou a Catalunha, em abril de 1348. A peste bubônica, também conhecida como Peste Negra. Jacme D'Agramont escreveu texto em catalão (Regiment de Preservacio a epidemia o pestilencia e mortaldats – Epistola de Maestre Jacme D’Agramont als honrats e discrets segnors pahers e cinseyll de la Ciutat de leyda, 1348), naquele estágio da ciência (ainda não secularizada), para tratar das dúvidas, medos e pânicos decorrentes da peste que atingia a população de Lleyda. Em seu tratado para as autoridades civis de Lleyda, sua cidade natal, receitou um conjunto de medidas preventivas, razoáveis para época, que qualquer um poderia tomar. O ar, para o autor da missiva, provavelmente estava apodrecido por causa do pecado, então a confissão deveria ser a primeira prioridade. As janelas deveriam estar fechadas e o chão polvilhado com vinagre. Era dever comer e beber muito pouco, e tudo deveria ser o mais azedo possível. Peixes viscosos, como enguias e peixes vorazes, como golfinhos, não deveriam absolutamente ser comidos, muito menos patos ou leitões. Um pouco de sangue poderia ajudar. Sexo e banhos deveriam ser evitados a todo custo, porque eles abririam os poros e permitiriam a entrada de ar nocivo e contaminado.[5]

Esta carta de 1348 de D’Agramont, sem dúvida, pode ser considerada o primeiro tratado sobre uma peste, ou pandemia.[6] Outros tratados logo o seguiram, e a leitura dos mesmos passou a ter caráter instrutivo, em tempos sem internet e redes sociais. O progresso da referida praga na Ásia Central, na Europa e no Oriente Médio teve o avanço anunciado por rumores. Governantes e pessoas comuns sabiam que a pandemia estava chegando. Povo e autoridades queriam se preparar, com medidas de prevenção e precaução, para suportar o que sabiam, certamente, seria bem mais do que uma perturbação profunda na vida cotidiana. A experiência mostrou, escreveu D'Agramont, "que quando uma casa pega fogo todos os vizinhos ficam com medo". Tratados como o dele pretendiam acalmar os vizinhos – “os alfabetizados, pelo menos” que poderiam compartilhar “o conselho com os analfabetos” – dando a eles uma sensação de controle sobre uma situação coletiva que estava, de fato, sob jugo do desconhecido e do gerenciamento desinformado e rudimentar do risco.

Os pobres certamente foram as maiores vítimas do referido evento. Fato curioso é que passados quase 800 anos, o cenário é idêntico no caso da Covid-19. De fato, Nova York, devastada pela pandemia tem, entre suas vítimas mortais, uma proporção duas vezes maior de negros, latinos e pobres em relação aos americanos brancos e ricos.[7]

O texto de D’Agramont foi escrito sem o benefício da observação empírica. Ele se baseou no que ele chamava modestamente de pouca ciência que ele aprendeu ao estudar pestilências registradas na Bíblia e por Hipócrates. A taxa de mortalidade da praga de 1348 atingiu entre 30 e 60% da população (os números são controversos) e o patógeno responsável, a maioria dos historiadores concorda, foi a bactéria yersinia pestis, mas existem estudos que atribuem à causa da mesma à febre hemorrágica, ou ao antraz.[8]

Estudiosos medievais atribuíam a peste a causas tanto universais (conjunções astrológicas infelizes) quanto particulares (ares corrompidos e desequilíbrios morais). Não se podia, de fato, controlar as estrelas, mas se podia regular o que a medicina grega chamou de coisas mutáveis, como o exercício e a emoção, que se pensava (com acerto) afetar a saúde. No mundo médico islâmico e cristão, os escritores faziam advertências contra o sexo e os banhos e elogiavam a comida azeda e os cheiros fortes. Em um relatório de 1348, a Faculdade de Medicina de Paris alertou que certas populações eram mais suscetíveis à doença: “aquelas cheias de humores malignos; aqueles que seguem um estilo de vida ruim, com muito exercício, sexo e banho; as pessoas com preocupações persistentes; e aqueles seres humanos corpulentos com uma pele avermelhada.[9]"

Tratados anteriores da praga foram escritos em vernáculos locais, e não em latim, como D'Agramont disse, "para o benefício do povo e não para a instrução do médico". Depois que a praga voltou, em 1360–1361, a leitura de obras literárias conselhos sobre pragas cresceu ainda mais.[10] Da Epidemia, de John de Burgundy, foi um best-seller, pós-1361, publicado em vários idiomas. No livro o autor instruiu os leitores a tomar suplementos alimentares – "uma boa dose terapêutica do tamanho de um feijão" – e cheiros aromáticos em clima frio, com sugestões de compras divididas pelo nível de orçamento e classe social: “âmbar-gris, almíscar, alecrim e coisas semelhantes, se o cidadão fosse rico; cravo, noz-moscada, maçãs e coisas semelhantes, se fosse pobre.[11]”

Peste e crise, de acordo com o grande medievalista de Harvard, Spencer Strub, assim, entraram na consciência anglófona de mãos dadas. Histórias medievais e modernas ainda refletem essa associação. Os cronistas monásticos registravam a pestilência como apenas um aspecto de uma calamidade geral na década de 1340, anunciada por terremotos e um inverno excepcionalmente quente, acompanhada de guerra e fome. Uma narrativa de longa data sustenta que a Peste Negra foi a maior crise do século XIV e provocou desordem na ordem feudal europeia.[12]

No boletim de 1348, a Faculdade de Medicina de Paris observou que "o inverno não estava tão frio como deveria ter sido". A faculdade atribuiu o problema a Marte, que estava "encarando Júpiter com um aspecto hostil". Obviamente os invernos quentes não são o produto do infortúnio astrológico mas, como reforça Strub, de dois séculos de extração e consumo de combustíveis fósseis. As externalidades negativas das mudanças climáticas vão estimular novas pandemias. Enquanto à Covid 19 se espalhar, derrubando a economia mundial, mais pessoas sofrerão e morrerão. Os pobres e os vulneráveis sofrerão mais, como sói acontecer em catástrofes, cada vez mais presentes na rotina da humanidade. Não há razão para pensar que os governos estejam preparados para agir precautoriamente, gerindo riscos, para prevenir os efeitos sociais desses desastres. De fato, corremos o risco de repetir os piores erros do passado[13] e o que é pior, ampliá-los.

Ao longo da história estrangeiros, prostitutas, judeus e pobres foram responsabilizados por surtos de peste.[14] Alguns médicos, clérigos e governantes medievais rejeitaram essa odiosa superstição, mas outros encorajaram o preconceito. O próprio D'Agramont alertou que alguém estava envenenando poços.[15] O poeta francês Guillaume de Machaut atacou a "vergonhosa Judéia" e celebrou os sentimentos anti-semitas que brotavam em toda a Europa.[16]

A direita norte-americana respondeu ao coronavírus com uma sinofobia racista e politicamente utilitária. O mesmo fez, aliás, um dos filhos do presidente da República no Brasil recentemente, gerando imensa polêmica e um inconveniente diplomático com a China.

Em suma, no caso brasileiro, cabe ao Estado e aos indivíduos assumirem, em relação à pandemia, os seus deveres constitucionais de prevenção e de precaução, que emanam do artigo 225 da Constituição Federal, sob pena de responsabilização nas esferas cível, administrativa e criminal. A hora é de ficar em casa e seguir rigorosamente os comandos das autoridades alinhadas à Organização Mundial de Saúde para atrasar a propagação do vírus e achatar as curvas de contaminação e de mortes. Posteriormente, será necessário o debate público, em um obrigatório exercício da cidadania, para que se exija investimentos dos governantes no sentido da contratação de mais médicos e de profissionais de saúde (com salários condignos), construção de mais hospitais, compra de mais ventiladores (respiradores), novos financiamentos para pesquisas científicas e a descoberta, em tempo, de vacinas, com preço acessível, contra os vírus potenciais causadores de pandemias. No mesmo sentido, cabe ao povo brasileiro reivindicar a implantação de planos governamentais, preventivos, precautórios e emergenciais, contra as crises econômicas e sociais (notadamente para a preservação das vidas, dos empregos e das empresas) que estão por vir nesta era de instabilidade social, econômica, ambiental, climática e, especialmente, política.


1Fonte: G1. Casos de Coronavirus no Brasil em 09 de abril. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/09/casos-de-coronavirus-no-brasil-em-9-de-abril.ghtml. Acesso em: 09.04.2020.

2KRUGMAN, Paul. The Covid-19 Slump Has Arrived. In: The New York Times. https://www.nytimes.com/2020/04/02/opinion/coronavirus-economy-stimulus.html?searchResultPosition=5. Acesso em: 10.04.2020.

3 KRUGMAN, Paul. Will We Flunk Pandemic Economics?. In: The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/06/opinion/coronavirus-economy.html?smid=fb-share&fbclid=IwAR2ekD3Dl0M-o13ukWcBvUub0DurhfX3uJRNnUAc7uypWlGrCDk4w2sqh5Q. Acesso em: 10.04.2020.

4 WORLD ECONOMIC FORUM. World leaders must unite in tackling COVID-19, says Joseph Stiglitz. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2020/04/internationalizing-coronavirus-covid19-globalization-leadership. Acesso em: 10.04.2020.

5 D’AGRAMON, Jacme. Regiment de Preservacio a Epidemia o Pestilencia e Mortaldats. Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/regiment-de-preservacio-a-epidemia-o-pestilencia-e-mortaldats–0/html/ff2eff76-82b1-11df-acc7-002185ce6064_4.html. Acesso em: 10.04.2020.

6 WINSLOW, C.-E. A., and M. L. DURAN-REYNALS. “JACME D'AGRAMONT AND THE FIRST OF THE PLAGUE TRACTATES.” Bulletin of the History of Medicine, vol. 22, no. 6, 1948, pp. 747–765. JSTOR, www.jstor.org/stable/44442234. Acesso em: 10.04. 2020.

7 THE NEW YORK TIMES. Virus Is Twice as Deadly for Black and Latino People Than Whites in N.Y.C.Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/08/nyregion/coronavirus-race-deaths.html?fbclid=IwAR1AzyLXY5ytwxjCgURw8WReut0NEFQXyvi_f2x20vPTHFKrYQRgqTpUtLc#click=https://t.co/Co7C6PrZmn. Acesso em: 10.04.2020.

8 WINSLOW, C.-E. A., and M. L. DURAN-REYNALS. “JACME D'AGRAMONT AND THE FIRST OF THE PLAGUE TRACTATES.” Bulletin of the History of Medicine, vol. 22, no. 6, 1948, pp. 747–765. JSTOR, www.jstor.org/stable/44442234. Acesso em: 10.04.2020.

9 WINSLOW, C.-E. A., and M. L. DURAN-REYNALS. “JACME D'AGRAMONT AND THE FIRST OF THE PLAGUE TRACTATES.” Bulletin of the History of Medicine, vol. 22, no. 6, 1948, pp. 747–765. JSTOR, www.jstor.org/stable/44442234. Accessed 10 Apr. 2020.

10 STRUB, Spencer. Illness & Crisis, from Medieval Plague Tracts to Covid-19. The New York Review of Books. Disponível em: https://www.nybooks.com/daily/2020/03/25/illness-and-crisis-from-medieval-plague-tracts-to-covid-19/. Acesso em: 10.04.2019.

11 CAMPBEL, Anna Montgomery. The Black Death and Man of Learning. New York: Columbia University Press, 1931.

12 STRUB, Spencer. Illness & Crisis, from Medieval Plague Tracts to Covid-19. The New York Review of Books. Disponível em: https://www.nybooks.com/daily/2020/03/25/illness-and-crisis-from-medieval-plague-tracts-to-covid-19/. Acesso em: 10.04.2019.

13 STRUB, Spencer. Illness & Crisis, from Medieval Plague Tracts to Covid-19. The New York Review of Books. Disponível em: https://www.nybooks.com/daily/2020/03/25/illness-and-crisis-from-medieval-plague-tracts-to-covid-19/. Acesso em: 10.04.2019.

14 STRUB, Spencer. Illness & Crisis, from Medieval Plague Tracts to Covid-19. The New York Review of Books. Disponível em: https://www.nybooks.com/daily/2020/03/25/illness-and-crisis-from-medieval-plague-tracts-to-covid-19/. Acesso em: 10.04.2019.

15 D’AGRAMON, Jacme. Regiment de Preservacio a Epidemia o Pestilencia e Mortaldats. Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/regiment-de-preservacio-a-epidemia-o-pestilencia-e-mortaldats–0/html/ff2eff76-82b1-11df-acc7-002185ce6064_4.html. Acesso em: 10.04.2020.

16 STRUB, Spencer. Illness & Crisis, from Medieval Plague Tracts to Covid-19. The New York Review of Books. Disponível em: https://www.nybooks.com/daily/2020/03/25/illness-and-crisis-from-medieval-plague-tracts-to-covid-19/. Acesso em: 10.04.2019.

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    é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, "Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental".

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