Opinião

Covid-19: Deveres e responsabilidades advindas das contratações públicas

Autor

  • Marinês Restelatto Dotti

    é advogada da União especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora da obra "Governança nas contratações públicas: aplicação efetiva de diretrizes responsabilidade e transparência".

10 de abril de 2020, 9h29

Em 6 de fevereiro de 2020 foi publicada a Lei nº 13.979, dispondo sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto deste ano.

Entre as várias ações implementadas pelo referido diploma, encontram-se as relativas a procedimentos licitatórios, à contratação direta de bens e serviços destinados ao enfrentamento da emergência e aos contratos decorrentes desses processos.

De ressaltar-se que o referido diploma não excluiu a regra do prévio procedimento licitatório, insculpida no artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, para as aquisições de bens e serviços necessários ao atendimento da emergência de saúde pública. Contudo, com o propósito de atender não só à emergência, mas também aos princípios da celeridade e da eficiência, simplificou procedimentos previstos no regime jurídico de licitações existente. A lei, com a finalidade de abreviar as contratações públicas, também instituiu hipótese de dispensa de licitação para a aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública.

As contratações decorrentes da Lei nº 13.979/2020, nada obstante a situação emergencial que as sustentam, não afastam o dever de observância do princípio da igualdade, que se cumpre evitando-se que os atos de convocação e os contratos admitam, prevejam, incluam ou tolerem cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou do domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto da contratação.

Não pode prosperar a justificativa do gestor público de que a cláusula ou condição restritiva, impertinente ou irrelevante decorreu de situação emergencial e de que não houve obstáculo à competitividade em razão do razoável número de participantes no certame realizado.

Nos dizeres de julgado do Tribunal de Contas da União, diversos dispositivos legais têm por objetivo tutelar um bem considerado relevante. Por exemplo: a proibição de avanço de sinal vermelho no trânsito tem como fim evitar acidentes e a perda de vidas. O fato de alguém avançar o sinal vermelho e não haver um acidente não significa que o ato irregular não tenha ocorrido. É o que se chama de falácia de inversão de causa e consequência: não é porque houve a participação de várias empresas ou eventual disputa do objeto que não se configura a restrição de competitividade, mesmo porque, se ela não existisse (a restrição), é possível que mais e mais empresas pudessem participar, aumentando a concorrência. (Acórdão nº 224/2020 Plenário, Processo nº 037.042/2019-0)

Mesmo diante de situação emergencial, deve a administração pública tratar isonomicamente todos os que afluírem ao certame, evitando cláusulas ou condições restritivas, impertinentes ou irrelevantes para o específico objeto da contratação. Nas contratações diretas também se apresentaria a possibilidade de eventual direcionamento ilícito na medida em que a escolha do contratado, nada obstante o seu teor discricionário, esgrimisse indevidamente com a satisfação dos requisitos expressos em lei, quais sejam a caracterização da situação emergencial, a justificativa do preço ou a razão da escolha do contratado. Em qualquer hipótese, o tratamento isonômico é conduta que à administração impõe, direta e expressamente, o artigo 37, XXI, da Constituição Federal.

As medidas implementadas pela Lei nº 13.979/2020 visam a atender situação de emergência de saúde pública e pelo tempo necessário ao seu enfrentamento, sendo vedado ao gestor público utilizá-las em contratações com fins ou propósitos diversos.

Segundo o seu artigo 4º-B, inciso IV, a contratação direta deve limitar-se à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência. A mesma diretriz vale para as contratações decorrentes de procedimento licitatório. É defeso ao gestor público fazer uso do procedimento licitatório ou da contratação direta para aquisições que transcendam o objeto indispensável ao enfrentamento da emergência, ou seja, que ultrapasse a dimensão e os limites da preservação dos valores em risco. O objeto a ser contratado deve estar adstrito ao necessário para o atendimento da situação emergencial.

É bem verdade que a duração da emergência pode estender-se além do planejado. Isso, contudo, não afasta o dever de o gestor programar as contratações necessárias ao enfrentamento da situação fática e peculiar que se apresenta, com base em adequadas técnicas de estimação e, ainda, com parcimônia, a fim de não comprometer a política de austeridade que deve ser sempre perseguida pela administração pública, mesmo nos casos como o que se apresenta agora, em esfera mundial.

Dispõe a Lei nº 13.979/2020 acerca da possibilidade de contratação de bens e serviços por valores superiores aos obtidos por meio da pesquisa de preços realizada pela administração pública, desde que justificadas as oscilações decorrentes da variação de preços. Oscilações de preços decorrentes de naturais fatores de mercado, tais como natureza do objeto (bem ou serviço), sazonalidade, câmbio, logística e outros componentes de custos não se traduzem em "porta aberta" para que as contratações públicas destinadas ao enfrentamento da emergência efetivem-se, amplamente, com sobrepreços.

Nada obstante as simplificações e "liberalidades" conferidas à administração pública pela Lei nº 13.979/2020 para o efeito de enfrentamento da emergência, não pode o gestor, responsável pelas contratações públicas, eximir-se do dever de observar os princípios da igualdade, da impessoalidade, da eficiência, da razoabilidade e da economicidade, traduzido este no dever de adquirir bens e serviços no limite do indispensável ao enfrentamento da emergência e de justificar a aceitação de propostas de valores superiores à pesquisa realizada com base em comprovada oscilação de preços.

Sublinhe-se que se aplicam às contratações realizadas com fulcro na Lei nº 13.979/2020 o disposto no artigo 113 da Lei nº 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações), segundo o qual compete à administração pública a demonstração da legalidade e da regularidade da despesa e da execução do objeto contratado e, também, o disposto no §2º do artigo 25, o qual estabelece que na hipótese de dispensa de licitação, se comprovado superfaturamento, respondem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o agente público responsável.

No tocante à atuação do gestor público nos processos de contratação, ainda que decorrentes do enfrentamento da emergência de saúde pública, permanecem as responsabilidades: (a) penal, cujos tipos e correspondentes sanções encontram-se previstos nos artigos 89 a 99 da Lei nº 8.666/1993; (b) administrativa, com base nos artigos 82 e 84 deste último diploma (os agentes administrativos que praticarem atos em desacordo com os preceitos da Lei Geral de Licitações ou visando a frustrar os objetivos da licitação sujeitam-se às sanções nela previstas e nos regulamentos próprios); (c) por ato de improbidade administrativa, decorrente da aplicação da Lei nº 8.429/1992 (responderá o agente por qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que permita ou facilite a aquisição de bem ou serviço por preço superior ao de mercado, causando comprovada lesão ao erário, impondo-se o ressarcimento integral do dano e, ainda, responderá por ato de improbidade administrativa o agente que frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente); e (d) decorrentes da atuação dos Tribunais de Contas, no exercício do controle externo (o Tribunal de Contas da União, considerada a gravidade da infração cometida, poderá aplicar ao responsável a sanção de inabilitação, por um período que variará de cinco a oito anos, para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da administração pública, podendo ser cumulada com multa).

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