Limite penal

É preciso levar os jurados brasileiros a sério

Autor

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

10 de abril de 2020, 8h00

Spacca
Imagine entrar em uma sala de aula após receber uma convocação oficial e ouvir as seguintes explicações do “professor” acerca de como funcionará o “curso”:

Vocês foram convocados para essa classe sem se inscreverem e têm o dever de participar. Este curso pode durar alguns dias ou semanas, não sabemos ao certo. Vocês terão vários “professores”, que lhes apresentarão diversos conceitos e informações – por vezes contraditórias. Cabe a vocês determinar qual professor disse a verdade. Vocês não podem fazer anotações. Também não podem fazer perguntas, por mais confusos que estiverem. Vocês não podem conversar. Estão incomunicáveis a partir de agora até o final do curso. Para a prova final, vocês não podem revisar os pontos importantes sobre os temas discutidos. No entanto, permitiremos a consulta a um extenso material que contém todas as informações sobre o assunto. Provavelmente vocês não compreenderão os termos técnicos utilizados. Ao final do curso eu lhes explicarei de forma breve as questões a serem respondidas no exame final, lembrando que as suas respostas determinarão o destino de uma pessoa que não conhecem e poderão causar prejuízos irreversíveis em sua vida caso forneçam uma resposta errada.

Boa sorte!

A metáfora em questão, que se funda na premissa de que uma das funções dos tribunais é a de educar os cidadãos chamados a atuar no júri sobre o funcionamento do sistema de justiça, foi representada no vídeo “Order in the classroom”, produzido pelo International Association of Defense Counsel, o qual satiriza os desafios vivenciados pelos jurados e os problemas inerentes aos sistemas de júri.

A preocupação com a qualidade e o acerto dos veredictos prolatados pelos jurados é bastante recorrente na literatura norte-americana recente, tendo ensejado uma considerável gama de estudos e pesquisas tanto empíricas quanto teóricas sobre como os jurados raciocinam e sobre quais bases formam suas convicções, além das técnicas e procedimentos hábeis a aprimorar essas habilidades. Esses esforços têm se mostrado bastante úteis para inspirar inovações nas práticas processuais vigentes no âmbito do júri, muitas das quais foram convertidas em princípios gerais1 e vêm sendo implementadas gradativamente pelas cortes da maioria dos estados norte-americanos.

Naquele contexto, a preocupação em educar os cidadãos quanto aos aspectos essenciais de um julgamento perante o júri é considerada uma das funções primordiais inerentes à própria lógica da participação popular na administração da justiça. Não é por acaso que a American Bar Association, ao estatuir os princípios gerais aplicáveis aos tribunais do júri com vistas a inspirar inovações em meio aos procedimentos considera ser tal escopo um dever dos tribunais, para cuja consecução pressupõe a implementação de uma série de medidas e práticas.2 Ainda, considera como princípio básico a ideia de que o juiz e as partes devem promover, vigorosamente, a compreensão do júri acerca dos fatos e do direito em questão. Daí se justificam todos os esforços dos tribunais no sentido de sistematizar por meio de manuais direcionados aos magistrados as principais instruções que devem ser apresentadas aos jurados nas diversas fases do procedimento. A natureza imotivada dos veredictos e a hipótese de que os jurados possam, ao final, não compreender ou não se orientar pelas instruções do juiz não são circunstâncias capazes de afastar a premissa de que é obrigação do sistema instrui-los.

No Brasil, a falta de conhecimentos jurídicos dos cidadãos também é encarada como uma fragilidade a ser superada, mas por meios diversos. Ao invés de se buscar aprimorar suas capacidades cognitivas por meio de instruções e mecanismos capazes de reduzir as complexidades do procedimento, aposta-se unicamente em um rigoroso controle judicial dos casos que lhes serão submetidos, com vistas a evitar que prováveis inocentes estejam sujeitos aos riscos e incertezas de um julgamento popular. Nesse sentido, a configuração bifásica do procedimento se orienta pela ideia de que o juiz irá exercer um controle prévio sobre o conteúdo da pretensão acusatória, de modo a filtrar os fatos a serem submetidos ao júri. O principal reflexo deste modelo é a renúncia do sistema em proporcionar ao júri uma cognição adequada, consagrando-se a ideia de que a essência da instrução tem lugar na primeira etapa do procedimento, perante o juiz togado. Aos jurados, reserva-se uma produção probatória abreviada para não se dizer figurativa em meio a uma dinâmica marcada pela teatralidade e pelos esforços persuasivos dos atores processuais. O sistema assume a premissa de que os cidadãos não são bons julgadores, isto é, não são capazes de raciocinar adequadamente a partir da prova com vistas à decisão dos fatos. Aposta-se, portanto, no esvaziamento de sua função cognitiva.

Tal premissa, contudo, não parece se sustentar empiricamente. Tampouco é possível afirmar que eles sejam, em termos comparativos, piores que os próprios juízes.

A atividade probatória tem caráter multidisciplinar, o que pressupõe, no processo, o emprego de raciocínios não apenas jurídicos. Ao contrário, supõe a conjugação de múltiplas habilidades e diferentes aptidões, envolvendo conhecimentos de diversas áreas do saber. A formação acadêmica dos profissionais do direito, como destacou William Twining3, tampouco se preocupa em promover um adequado preparo para a análise das questões fáticas a partir dos métodos racionais de investigação. Sendo assim, os cidadãos leigos chamados a atuar nos sistemas de júri não estão desabilitados a decidir os fatos a partir de uma apreciação racional das provas. A falta de conhecimentos jurídicos, portanto, não seria capaz de lhes colocar em posição de desvantagem perante o juiz togado nesse aspecto específico.

Como indicam pesquisas na área da psicologia, os juízes profissionais podem ser tão suscetíveis quanto os jurados às influências indevidas de alguns tipos de prova. A partir desses estudos, Frederick Schauer destaca que a crença na inferioridade cognitiva dos jurados em relação aos magistrados é largamente um mito: ambos são igualmente propensos a sobre ou subavaliar certos tipos de informação. No entanto, os juízes tendem a superestimar suas próprias capacidades cognitivas, acreditando-se capazes de superar as deficiências do raciocínio inerente às pessoas comuns.4 Além disso, os vínculos comunitários característicos do júri se opõem ao perfil burocrático dos juízes profissionais, de modo que lhes seja permitido analisar a conduta do acusado dentro de seu próprio contexto — e não a partir de um distanciamento hierárquico próprio de onde se encontra o juiz.

As discussões ora apresentadas ganham especial relevância frente às recentes iniciativas do Conselho Nacional de Justiça voltadas para a otimização do julgamento das ações judiciais relacionadas aos crimes dolosos contra a vida e para a busca de medidas capazes de promover celeridade à sua tramitação. Dentre as ações já implementadas destaca-se, em primeiro lugar, a Recomendação do Conselho Nacional de Justiça de que é necessário ambientar os jurados convocados para as sessões de julgamento, o que deve ser feito pelos magistrados com atuação em processos do Tribunal do Júri por meio de exibição de vídeo institucional elaborado pelo órgão. O propósito dessa ambientação é a apresentação de algumas orientações básicas sobre o desenvolvimento dos trabalhos nas sessões em plenário e o papel dos atores processuais nesse contexto.

Apesar de sutil, a iniciativa abre caminho para uma mudança de comportamento do tribunal em relação aos jurados, deixando de lado a condição de total indiferença com seu caráter leigo, rumo à assunção de responsabilidade em lhes proporcionar uma compreensão adequada acerca de suas funções. Seria preciso mais. Seria preciso discutir e propor um conjunto de instruções mais substanciais a serem apresentadas ao júri, as quais contemplassem, dentre outras questões, noções sobre a garantia da presunção de inocência e da exigência de um standard de prova mais rigoroso para a condenação.

Por outro lado, mostra-se preocupante a proposta apresentada à Câmara dos Deputados de reforma parcial do procedimento do júri — também inserida entre as iniciativas do CNJ referidas acima. É de se ter cautela quanto se pretende promover alterações pontuais ao já tão heterogêneo Código de Processo Penal. Como destaca Jacinto Miranda Coutinho, “reformas parciais — com boas intenções ou não — tendem a destruir os sistemas, (ou quase) se eles não são levados em consideração.”

Em verdade, as propostas buscam promover celeridade às sessões de julgamento ao custo de insistir na premissa – equivocada – de que a verdadeira instrução probatória no júri deve ter lugar na primeira fase do procedimento. Nesse sentido, propõe-se a criação de “rito diverso” — leia-se, abreviado — para a fase do procedimento que tem lugar em plenário nos casos considerados menos complexos. Nada foi previsto, por outro lado, com vistas a sumarizar o juízo de pronúncia e a instrução probatória que tem lugar na primeira etapa5. Tais questões foram consideradas polêmicas por promoverem uma abreviação radical do procedimento — o que parece contraditório, tendo em vista os escopos que motivaram o projeto.

O ponto chave da questão situa-se, portanto, em definir o que se espera dos jurados no desempenho desta função constitucional. No Brasil, a noção de íntima convicção fora incorporada de forma plena, passando a ser atrelada ao próprio princípio constitucional da soberania dos veredictos — o que revestiu a consciência do jurado com uma profunda aura de intangibilidade e convergiu para a imposição ao juiz de um dever de autocontenção em relação ao júri, sob pena de que qualquer atitude possa ser interpretada como influência indevida no convencimento dos cidadãos. Ao contrário, no sistema anglo-americano há quem sustente, inclusive, que a garantia do acusado ao julgamento pelos pares compreende o direito a que o juiz instrua adequadamente os cidadãos sobre os critérios legais que devem ser atendidos para que o veredicto seja alcançado6.

É preciso aceitar que os cidadãos são, por opção constitucional, os juízes do fato nos crimes dolosos contra a vida, e buscar implementar, a partir daí, as medidas necessárias para que exerçam a função com qualidade. Ademais, tanto na escola, como na vida, práticas como fazer anotações, solicitar esclarecimentos com vistas a sanar eventuais dúvidas e dirigir perguntas a quem está a lhe transmitir determinada informação são extremamente naturais e intuitivas. Não são vedadas aos juízes profissionais e não há motivos para que não sejam encorajadas quando o julgamento está a cargo dos jurados. O mesmo se diga da interação potencialmente proveitosa que se verifica em meio a debates entre alunos de uma sala de aula e entre julgadores profissionais com assento em um órgão colegiado. Cabe refletir sobre as razões para não se aplicar a mesma lógica em meio ao sistema de júri brasileiro.

Não é difícil concluir, com base nessas reflexões, que a metáfora da sala de aula referida no início do texto é injusta em relação ao sistema norte-americano, mas, por outro lado, nunca fez tanto sentido para representar a essência do modelo de júri por nós adotado.


Para uma visão mais aprofundada sobre o tema, ver: NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A Prova no Tribunal do Júri. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.


1 Destaca-se a publicação pela American Bar Association dos princípios gerais a nortear os procedimentos e práticas a serem implementados nos tribunais de júri.

2 Dentre as quais, destaca-se a necessidade de se prestar aos cidadãos convocados os esclarecimentos necessários sobre o sistema de justiça, a dinâmica do procedimento além das instruções a serem apresentadas durante o curso do julgamento, de modo a que compreendam o seu papel como jurado, a natureza da prova e os parâmetros racionais que devem orientar sua avaliação, os elementos do delito e os fatos que devem ser objeto de prova, além de outras questões de direito relevantes ao caso. American Bar Association. Principles for Juries and Jury Trial.

3 TWINING, William. Taking Facts Seriously. In: _____. Rethinking Evidence: exploratory essays. 2ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2006

4 SCHAUER, Frederick. On the supposed jury-dependence of evidence law. University of Pennsylvania Law Review. vol. 155, 2006, p. 187-189.

5 Como também defende Aury Lopes Jr. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 852.

6 PÉREZ CABADERA. María-Ángeles. Las instrucciones al jurado. 2001. 688 f. Tese (Doutorado em Direito) – Facultad de Ciencias Jurídicas y Económicas, Universidad Jaume I de Castellón. Castellón de la Plana, 2001.

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