Direito Civil Atual

Coronavírus, responsabilidade civil e honorários sucumbenciais

Autor

  • Carlos E. Elias de Oliveira

    é advogado parecerista professor de Direito Civil Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília (UnB) e em outras instituições consultor legislativo do Senado Federal em Direito Civil ex-advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.

10 de abril de 2020, 8h00

ConJur
Antes de tudo, agrademos à honra de contribuir para a prestigiosa Coluna de “Direito Civil Atual”, coordenada pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, que, nesse momento de turbulência nas relações privadas por conta da pandemia, tem enriquecido os debates jurídicos.

  1. Dúvida jurídica razoável como excludente ou atenuação da responsabilidade civil

Não se negam os impactos severos da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) nas relações de direito privado, ameaçando a base objetiva de vários contratos, impossibilitando o cumprimento de prestações, subtraindo a utilidade de prestações etc. O legislador brasileiro, seguindo tendência de outros países[1], está gestando uma lei emergencial. Trata-se do Projeto de Lei nº 1.179, de 2020 (de autoria do Senador Antonio Anatasia, relatado pela Senadora Simone Tebet), que cria o RJET[2] no Direito Privado. Esse projeto foi gestado com a participação de renomados juristas, tudo sob a liderança científica do Professor Livre-Docente da USP Otávio Luiz Rodrigues Júnior ao lado dos Ministros Dias Toffoli (STF) e Antonio Carlos Ferreira (STJ).

O presente artigo se limita a tratar de um problema prático nesse ambiente excepcional: há ou não dever de indenizar na hipótese de alguém que causa dano a outrem por meio de uma conduta cuja licitude, por conta dos transtornos causados pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19), sujeita-se a uma dúvida jurídica razoável? E quem deverá arcar com os honorários sucumbenciais em ações judiciais baseadas em dúvida jurídica razoável?

  1. Dúvida jurídica razoável como excludente ou atenuação da responsabilidade civil

Em mais de uma oportunidade[3], já tivemos a oportunidade de defender que a dúvida jurídica razoável pode ser considerada uma excludente responsabilidade civil ou, no mínimo, uma justificativa para a redução do valor da indenização.

Isso, porque, como a responsabilidade civil depende de um ato ilícito e a ilicitude depende de um descompasso de um ato com regras jurídicas prévias (princípio da legalidade), a dúvida jurídica razoável pode descaracterizar total ou parcialmente a ilicitude de um ato para efeito de censurar a produção de efeitos jurídicos desproporcionais.

Quando há dúvida jurídica razoável, é viável haver o que designamos de cindibilidade dos efeitos jurídicos de um ato: o juiz, com olhos no caso concreto e sob um juízo de razoabilidade, poderá permitir a produção de efeitos jurídicos menos drásticos e bloquear os efeitos jurídicos mais desproporcionais. Pode, por exemplo, diante de um mesmo ato, conceder um pedido de obrigação de não fazer, mas negar o dever de indenizar.

Pode haver, pois, necessidade de uma modulação dos efeitos, o que, conforme já expusemos em outros artigos, encontra fundamento em vários dispositivos (arts. 927, § 3º, e 942, § 2º, do CPC; arts. 26 da LINDB; art. 27 da Lei º 9.868/99; arts. 133, II, e 186 do CC).

Tudo isso decorre da inegável existência de certo grau de indeterminação da Ciência Jurídica. De fato, o Direito, por sua natureza, é uma matéria-prima plástica e dinâmica, de modo que diferentes soluções jurídicas podem ser obtidas de modo legítimo por meio da hermenêutica[4].

O problema da “indeterminação do Direito” expõe os juristas, há muitos séculos, desde a Noite dos Tempos, à condenação de Sísifo: os juristas tentam rolar a pedra do Direito para o topo do monte em busca da obtenção de uma “determinação unívoca do Direito”, mas, sempre, ao chegar perto do cume da montanha, a pedra implacavelmente retorna ao seu início de “indeterminação”[5].

Com efeito, a cindibilidade dos efeitos jurídicos nas hipóteses de dúvida jurídica razoável funciona como um critério de correção no sistema jurídico.

O STJ já vem admitindo esse raciocínio para afastar o dever de indenização diante de um cenário de dúvida jurídica razoável, a exemplo de casos de:

  1. negativa de cobertura médico-hospitalar por plano de saúde (REsp 1632752/PR, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, DJe 29/08/2017; AgRg no REsp 1457475/MG, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 24/09/2014);
  2. obstrução da entrada de menor em cinema quando havia dúvida jurídica razoável sobre a possibilidade de sua entrada em razão da classificação indicativa do filme (REsp 1072035/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 04/08/2009);
  3. frutos colhidos pelo viúvo durante período em que o direito real de habitação já estaria extinto (REsp 1617636/DF, 3ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 03/09/2019).
  1. Casos práticos em tempos de coronavírus

Terreno fértil há para enfrentarmos algumas situações hipotéticas que convidam a aplicação da cindibilidade dos efeitos jurídicos em razão da existência de dúvida jurídica razoável.

    1. Síndico vs condôminos

Logo quando a sombria nuvem da pandemia passou a obscurecer a normalidade das cidades brasileiras com quarentenas e isolamentos, surgiu um problema jurídico nos condomínios: o síndico, unilateralmente e com o objetivo de reduzir os riscos de contaminação viral, poderia ou não restringir o uso das áreas comuns ou proibir a entrada de terceiros na edificação? Seria necessária deliberação prévia da assembleia?

O tema divide a doutrina[6]. É inegável haver um cenário de dúvida jurídica razoável, o que credencia o que designamos de “cindibilidade dos efeitos jurídicos” para afastar efeitos jurídicos desproporcionais[7].

Suponha que, antes da supracitada lei emergencial, em meio à situação emergencial, um síndico unilateralmente proíba a entrada de terceiros na edificação, o que acaba causando danos material e moral a um determinado condômino que não pôde receber o seu convidado. Há inúmeras situações de possíveis danos, como estas:

  1. Ex.1: o condômino perde um contrato pela proibição da entrada de um parceiro comercial;
  2. Ex.2: o condômino sofre constrangimentos pessoais com a proibição da entrada de um parente muito próximo que lhe iria fazer companhia;
  3. Ex.3: o condômino vê seu contrato de empreitada rescindido pelo fato de a equipe do empreiteiro ter sido barrada pelo síndico e se vê obrigado a indenizar as despesas havidas com materiais de construção que se deterioram.

Nesses casos, indaga-se: como deveria ser julgada uma ação por meio da qual o condômino prejudicado faz dois pedidos, o de obrigação de não fazer (para o síndico doravante abster-se de barrar o terceiro) e a indenização pelos danos sofridos?

Há dúvida jurídica razoável acerca da licitude da conduta do síndico. Não havia como o síndico ter certeza prévia das regras do jogo. Se ele consultasse diferentes advogados, obteria respostas antagônicas. Por isso, não é razoável que o síndico sofra sanções desproporcionais e seja punido pela vindoura decisão judicial que pacificará a questão, como se esse síndico fosse um “mártir hermenêutico” que sofreria para que os demais passassem a ter, doravante, clareza das regras do jogo.

Nesse sentido, caso o juiz entenda que a melhor interpretação é a de que o síndico podia atuar unilateralmente, cabe-lhe reconhecer que, antes de seu veredito, havia um cenário de dúvida jurídica razoável a atrair a cindibilidade dos efeitos jurídicos (que é uma espécie de modulação total ou parcial da decisão). E, por isso, sob um juízo de razoabilidade, temos que o primeiro pedido (o de obrigação de não fazer) deveria ser julgado procedente, ao contrário do segundo (o de indenização) em razão da desproporcionalidade deste último.

    1. Plano de saúde e tratamento de coronavírus dentro do período de carência

Planos de saúde costumam fornecer determinadas coberturas apenas depois de transcorrido um determinado prazo de carência, que é contado a partir da celebração do contrato. Por exemplo, para alguns tratamentos não urgentes, o prazo de carência é de 6 meses.

Em tempos de coronavírus, várias operadoras de plano de saúde têm negado a cobertura a pacientes potencialmente vítimas de coronavírus que não tenham preenchido esse semestre de carência.

Indaga-se: a postura do plano de saúde é ou não lícita?

Há dúvida jurídica razoável aí. Nenhum ato normativo da agência reguladora esclareceu essa situação.

Por isso, se um paciente que sofreu com a negativa formular judicialmente um pedido de obrigação de fazer (plano dá a cobertura) e outro de indenização, temos que, caso o juiz entenda pela ilegalidade da recusa do plano de saúde, só o primeiro deve ser deferido, tudo em respeito à necessidade de cindibilidade dos efeitos jurídicos em razão do cenário de dúvida jurídica razoável.

    1. Recusa de investidor em aportar dinheiro na data prevista no contrato

Suponha que, por força de um contrato firmado em 2019, um investidor, em troca da participação do lucro em uma nascente empresa de venda de sapatos, tenha se comprometido a, em 30 de março de 2020, transferir quinhentos mil reais para o parceiro-indústria, que haveria de iniciar a atividade empresarial em abril.

Com a turbulência causada pela pandemia do coronavírus, que, desde fevereiro de 2020, impactou severamente a rotina das cidades e ocasionou o fechamento de estabelecimentos comerciais, o investidor se recusou a transferir o dinheiro sob o argumento de que o projeto de parceria perdeu totalmente a utilidade, pois não haveria qualquer viabilidade de lucro no início de uma empresa de venda de sapatos naquele momento catastrófico.

Daí se indaga: o sócio-indústria poderia pleitear indenização por danos sofridos pelo investidor?

Não há dúvidas de que a conduta do investidor se insere em um cenário de dúvida jurídica razoável. Tamanha é a controvérsia jurídica sobre a licitude desse comportamento que, desde o início da turbulência da pandemia, a doutrina vem disparando uma quantidade incrível de artigos para tratar da possibilidade ou não de revisão ou resolução de contratos.

Não nos importa aqui definir se a conduta do investidor foi lícita ou não. O que nos importa é realçar que há uma dúvida jurídica razoável aí e que, portanto, há mais de uma interpretação viável.

Desse modo, entendemos que o dever de indenizar por parte do investidor deve ser afastado ou atenuado a depender do caso concreto em razão do cenário de dúvida jurídica razoável.

    1. Honorários advocatícios sucumbenciais nos casos de dúvida jurídica razoável

Quem deverá suportar os honorários sucumbenciais na hipótese de a ação judicial ter sido proposta com base em cenário de dúvida jurídica razoável?

À luz do princípio da causalidade, aplicável para a definição dos ônus sucumbenciais, só deve ser condenado a arcar com os honorários sucumbenciais aquele que deu causa a uma ação (art. 85, caput e § 10, CPC).

Entendemos que, se havia dúvida jurídica razoável, nenhuma das partes deu causa ao processo. Em tese, quem teria dado causa à demanda judicial teria sido o próprio Poder Público, que descumpriu o seu dever de dar clareza prévia das regras jurídicas, mas, no sistema brasileiro, não há espaço para a responsabilização do Estado por omissão normativa nesse caso.

Por isso, entendemos que, se havia dúvida jurídica razoável, não é cabível a condenação de nenhuma das partes ao pagamento de honorários sucumbenciais.

  1. Conclusão

A dúvida jurídica razoável não pode ser esquecida dos operadores do Direito ao enfrentar discussões envolvendo responsabilidade civil e honorários sucumbenciais, visto que ela autorizaria o emprego da chamada “cindibilidade dos efeitos jurídicos”.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ)

 


[1] A exemplo da Alemanha, conforme completíssimo artigo do Professor Otávio Luiz Rodrigues Júnior (https://www.conjur.com.br/2020-mar-25/direito-comparado-alemanha-prepara-legislacao-controlar-efeitos-covid-19). Reportamo-nos ainda ao certeiro artigo de Tiago Asfor Rocha Lima e Bruno Leonardo Câmara Carrá (https://www.conjur.com.br/2020-abr-03/direito-civil-atual-pl-117920-tempos-requerem-medidas-atipicas).

[2] Regime Jurídico Emergencial e Transitório.

[3] (1) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. A Segurança Hermenêutica nos vários Ramos do Direito e nos Cartórios Extrajudiciais: repercussões da LINDB após a Lei nº 13.655/2018. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, junho/2018. Disponível em www.senado.leg.br/estudos. Publicado em março de 2018-A; (2) _________________________________. Competência para fiscalizar atividade jurídica de membros da advocacia pública federal: TCU ou órgão correcional próprio. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24056. Acesso em 31 de maio de 2018; (3) A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos (Texto para Discussão nº 245). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 5 de março de 2018. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, março, 2018-B. (3) A Lei da Liberdade Econômica: diretrizes interpretativas da nova Lei e Análise detalhada das mudanças no Direito Civil e no Registros Públicos. Disponível em: www.flaviotartuce.adv.br/artigos_convidados. Elaborado em 21 de setembro de 2019; (4) Dúvida jurídica razoável como excludente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa e de outros remédios contra ilícitos civis: comentários a um julgado do STJ. In: Revista IBERC, v. 3, n. 1, pp. 1-19, 2020-A.

[4]     Emprega-se aqui o vocábulo “hermenêutica” em sentido amplo, abrangendo ao que, na Academia, designa-se de “Argumentação Jurídica”.

[5]     A propósito da indeterminação do Direito, reportamo-nos aos escritos de Inocêncio Mártires Coelho (COELHO, Inocêncio Mártires. Indeterminação do direito, discricionariedade judicial e segurança jurídica. Disponível em: https://www.uniceub.br/media/491563/Anexo9.pdf. Acesso em 24 de maio de 2018). Ademais, chegamos a apontar essa natureza incerta do Direito sob o enfoque de Miguel Reale, de Recaséns Siches e Eros Roberto Grau em outros textos (Oliveira, 2018, op. cit.).

[6] Os professores Rodrigo Toscano Brito e Alexandre Junqueira Gomide defendem, como regra, a necessidade de prévia autorização da assembleia (BRITO, Rodrigo Toscano de; GOMIDE, Alexandre Junqueira. O impacto do coronavírus nos condomínios edilícios: Assembleias e limitações ao direito de uso à propriedade. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/322683/o-impacto-do-coronavirus-nos-condominios-edilicios-assembleias-e-limitacoes-ao-direito-de-uso-a-propriedade. Acesso em 26 de março de 2020).

[7] Esse cenário de dúvida jurídica razoável acabará com o nascimento da Lei do RJET, que outorga poderes ao síndico para agir unilateralmente na forma do Projeto de Lei nº 1.179, de 2020.

Autores

  • é advogado, professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de Registro, consultor legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário e doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Ex-membro da AGU e ex-assessor de ministro STJ.

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