Senso Incomum

O desembargador, "os astronautas" e o "habitus dogmaticus"!

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9 de abril de 2020, 8h00

Spacca
Abstract: O poder do habitus dogmaticus.

Quando você vai à juízo, você:

  • (i) quer saber a opinião pessoal do juiz sobre o seu caso ou
  • (ii) deseja que ele faça um “fit” (ajuste), filtrando o que diz a linguagem pública – o Direito – sobre o caso concreto? ou
  • (iii) quer que ele decida e depois fundamente? ou
  • (iv) você quer que o judiciário escolha com base em critérios subjetivos ou
  • (v) quer que ele decida (porque sentença é decisão e não escolha) com base na coerência, na integridade e em uma estrutura jurídica forjada intersubjetiva e democraticamente?

Estas perguntas são fundamentais. Você só pode responder “sim” para as perguntas ii e v. Se responder “sim” para qualquer das perguntas i, iii e iv, você estará dependente de algo que pode ser tudo, menos “Direito”.

Pode até haver coincidência, por vezes, da resposta subjetiva ou teleológica com a resposta jurídica correta. Porém, será algo que ocorre sem fundamentação. Como um relógio parado, que acerta a hora duas vezes por dia.

Por isso, para um Direito aplicado democraticamente, vou de mãos dadas com Dworkin, quem disse: não importa o que os juízes pensam – pessoal e subjetivamente – sobre o Direito. O que importa, verdadeiramente, é o ajuste (fit) e a justificação (justification) da interpretação que os julgadores oferecem das práticas jurídicas em relação ao direito da comunidade política. Se o juiz não consegue suspender seus pré-juízos, causará um enorme prejuízo ao utente.

Estas são as premissas de uma apreciação democrática do Direito. Mas as hipóteses acima (i, iii e iv) podem ser verificadas cotidianamente. Podemos senti-las na pele. Duramente.

Vamos a alguns exemplos. Leio na bela matéria de Tiago Ângelo nesta Conjur que um desembargador do TJSP negou um pedido de prisão domiciliar feito pela defensoria púbica em favor de um detenta em regime semiaberto. O pleito estava baseado em recomendação do CNJ.

O desembargador negou monocraticamente o pedido, dizendo que "Dos cerca de 7.780.000.000 habitantes do Planeta Terra, apenas três: Andrew Morgan, Oleg Skripocka e Jessica Meier, ocupantes da estação espacial internacional, o primeiro há 256 dias e os outros dois há 189 dias, portanto há mais de seis meses, por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado coronavírus".

Segundo ele, a "questão relativa ao (sic) Covid-19 tem sido alegada de forma tão indiscriminada que sequer mereceria análise detalhada". E disse mais algumas coisas…

Bem, parece que a decisão não pegou bem, porque o CNJ mandou instaurar pedido de providências.

Vejam: não estou dizendo que a detenta deveria receber o benefício automaticamente. A recomendação do CNJ demanda análise detalhada de cada caso concreto.  Por isso, minha questão, aqui, é bem outra. Transcende.

Explico. O que mais importa desse imbróglio é o simbólico. E por quê? Porque a decisão representa uma parcela de um imaginário que se formou no seio de parte de quem acusa e de quem decide no Brasil: a fundamentação ad hoc, a fundamentação sem fundamento, a fundamentação anti-accountability. A decisão por opinião pessoal.

Face A do fenômeno — o solipsismo e a anti-accountability

Decisões como a "dos astronautas" apresentam, de um lado, a dura face do solipsismo jurídico. É o jusnarcisismo, pelo qual nada que vem do externo, da estrutura, enfim, da linguagem pública, é capaz de abalar "a convicção interior do intérprete".

Disso decorre que não é necessário fundamentar. Basta dizer "o que acha". Trata-se daquilo que MacIntyre denuncia como emotivismo (cf. After virtue). Ou seja: o desembargador de São Paulo não gostou da recomendação do CNJ e não concorda com prisão domiciliar nesses termos e, quem sabe, considera, pelo que se entende do arrazoado, que há leniência no trato da punição. E MacIntyre acerta de novo: um emotivismo com pretensão de objetividade. Baseado no que ele acha, o juiz reivindica a verdade. Ele pensa, ele faz, e ele está certo.

Logo, se pessoalmente pensa assim — afinal, essa é a sua opinião —, pouco importa, para ele, o que vem de fora. Não há constrangimento externo — limitações — (Begrenzte) que o convença. Alguém até dirá que ele decidiu assim porque tem livre convencimento. Ou decidiu conforme sua consciência. Outros dirão que o CNJ é a favor dos bandidos e por isso não tem de ser atenção a esse Órgão. Outros dirão que o desembargador está certo: tem de debochar mesmo, como é possível ver em comentários à matéria aqui mesmo na ConJur.

Esse “conjunto da obra" representa um fato (e fatos existem) que mostram como é difícil pedir e lutar e escrever para que o "levemos o Direito a sério", como diria Dworkin.

O lado B — um hábito que vira habitus

A decisão desvela o habitus dogmaticus, expressão que cunhei há mais de 25 anos. No meu conceito, é um conjunto de crenças e práticas que compõem os pré-juízos do jurista, que tornam a sua atividade refém da cotidianidade e do imaginário solipsista, que dispensa fundamentações intersubjetivas.

Explico: Há tantas decisões desse tipo por aí, como, por exemplo, a de um desembargador que, em sede de HC, emitiu preventiva, de ofício; ou de uma magistrada que se jactou de nunca ter concedido uma liminar em sede de HC; ou de um Promotor que denunciou um patuleu por "furto de dois baldes de água". E o que dizer do Delegado de Polícia que arbitrou uma fiança de R$ 1.500 para um caso de furto de 1 cm (sim, um centímetro) de fio (sim, de fio)? Ou a decisão judicial que concedeu metade da herança para a amante? Ou a decisão que impediu uma avó de testar a sua metade disponível para um neto? E quem sabe a decisão do juiz federal de Brasília, que decidiu legislar, ainda nesta semana, passando o Fundo Eleitoral para o Ministério da Saúde? E agora descobrimos que o MPF participa das reuniões do BNDES, para auxiliar na "tomada de decisões políticas relevantes" (nas palavras do PGR). Não consta que isso esteja nas atribuições constitucionais do Ministério Público.

Todos os dias lemos e vemos coisas desse jaez. Passam-nos despercebidos esses gestos e atitudes, porque nos acostumamos. Tornamos isso tudo em um hábito. Não vou discutir aqui o conceito de habitus de Bourdieu. Inspirado nele, transformei, então, em habitus dogmaticus, para mostrar, já há mais de duas décadas, o modus operandi de certa cultura jurídica. Warat chamava a isso de senso comum teórico.  

Esse habitus (que chamei de "dogmaticus") é produto e produtor de um "deixar-se ficar", "deixar estar", "isso é assim mesmo", uma espécie de ode a um realismo retrô, do qual tantas vezes já falei aqui na ConJur. Redunda tudo em silêncio eloquente da comunidade jurídica, quando se depara com coisas desse tipo. Quando alguém escreve que Kelsen separou direito e moral, não há impacto. Quando um mesmo Tribunal é literalista e voluntarista ao mesmo tempo, o grau de constrangimento é próximo de zero, com exceção de pequena parte da doutrina não doutrinada. Eis o habitus.

Há vinte anos escrevi um artigo em homenagem a Warat usando o conceito de habitus dogmaticus. Poxa, foi há tantos anos. E o que mudou? Vejo uma juíza em Santa Catarina dizendo que, no meio da pandemia do Coronavírus, há direito líquido e certo de a Havan abrir seu comércio (enquanto o pequeno comércio está fechado, uma gigante pode abrir?). De todo modo, o que importa é saber de onde vem o direito líquido e certo e por que o periculum in mora seria por causa da economia e não advindo da saúde pública.  E o que a Doutora diria se uma escola entrasse em juízo? Havan pode, escola, não? Bom, um juiz não permitiu culto religioso não faz muito? A fé in periculum

Voltando "aos astronautas", trata-se de uma decisão que encontra guarida em um certo imaginário jurídico, que chamo de habitus.

No interior do habitus, o Direito é que o intérprete-aplicador diz que é. A profecia de Holmes se realiza. E eis tudo. Eis nada. Deixa estar.

Tudo isso e uma parábola:

Como sabem, sou antigo nesse ramo. Há 30 anos (ou mais) eu contava uma pequena estória, que denominei "Parábola das Lavadeiras". Bem curtinha. Duas lavadeiras faziam o seu ofício quando viram, ao longe, uma porção de gente brigando. Ferozmente. Disse uma a outra: "você está vendo?" E a outra: "Sim. Deixe estar. Que se matem. Não nos importa."  Pois o que elas viam era a batalha dos Guararapes. Que mudava a história do Brasil.

Ver, compreender… Não se deixar ficar. Protestemos contra o habitus dogmaticus. Ou, se quiserem, contra o senso comum teórico. Não se deixe-estar assim.

Para hoje, é só. Mas não deixemos assim.

Post scriptum 1: para evitar xingamentos e discussões estéreis, alerto: o mérito da decisão "dos astronautas" não está em discussão nesta Coluna. Nem a recomendação do CNJ. 

Post scriptum 2: publicamos, o desembargador Conrado Kurtz e eu, artigo sobre a interpretação do artigo 217-A do Código Penal, criticando a desproporcionalidade. Em tempos de excesso de textos, recoloco: https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/streck-kurtz-vagueza-vitamina-desproporcionalidade. É textão, vão dizer. Mas pode valer a pena.

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