Opinião

Restrição ao uso de praias é justificável

Autor

  • Marcos Meira

    é advogado procurador de Estado e presidente da Comissão Especial de Direito de Infraestrutura do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

9 de abril de 2020, 16h08

Com o aumento do número de casos confirmados de infectados pelo coronavírus (Covid-19), fez-se necessário que estados e alguns municípios passassem a, paulatinamente, recrudescer as medidas de distanciamento social, determinando restrições a diversas atividades consideradas não essenciais, com o objetivo de reduzir a velocidade de propagação do vírus.

Em Pernambuco, o governo do estado editou o Decreto nº 48.809, regulamentando as medidas temporárias de enfrentamento da Covid-19.

Em 19 de março, o governador do Estado de Pernambuco editou novo decreto (Decreto Estadual nº 48.832/2020), intensificando as medidas de combate ao novo coronavírus, determinando que a partir do dia 21 de março de 2020, as praias localizadas no Estado de Pernambuco apenas poderão ser frequentadas para a prática de atividades físicas individuais, tais como caminhadas e corridas, mantida a distância entre pessoas recomendada pela autoridade sanitária, sendo nelas vedado qualquer tipo de comércio. O objetivo era claro: evitar aglomeração de pessoas que pudessem promover uma maior propagação do coronavírus.

O que se viu, no entanto, conforme amplamente noticiado pelos meios de comunicação, foram grandes aglomerações de pessoas nas praias pernambucanas. Tal fato, aliado ao crescente número de casos confirmados no Estado, levou o Governo de Pernambuco a determinar a proibição de acesso às praias e ao calçadão das avenidas situadas nas faixas de beira-mar do Estado, para prática de qualquer atividade, primeiramente somente para os dias 4, 5 e 6 de abril (Decreto Estadual nº 48.881/2020) e, depois, até o dia 13 de abril de 2020 (Decreto Estadual nº 48.903/2020).

A partir dessa proibição, também adotada por outros estados, surgiram questionamentos sobre a legitimidade dessa medida e a competência do Governo Estadual de expedi-la. Alegam os críticos que a medida viola o direito fundamental da liberdade de locomoção, excepcionada apenas nos casos de decretação de estado de sítio, e de competência exclusiva da União, na medida em que as praias marítimas são bens da União.

Em primeiro lugar, importante ressaltar que não existem direitos fundamentais absolutos. Todo e qualquer direito fundamental pode ser objeto de limitações. Evidentemente, a limitação de um direito fundamental somente é admitida quando destinada “a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros”[1].

Na atual quadra da pandemia da Covid-19, com mais de 1,2 milhão de casos confirmados no mundo e mais de 68 mil mortes em razão da referida enfermidade, estamos diante de um aparente conflito entre direitos fundamentais: de um lado, a liberdade de locomoção das pessoas e, de outro, o direito à vida e à saúde, também assegurados como pela Constituição Federal como um direito de todos e dever do Estado, inclusive com a garantia de acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde (arts. 196 e 197, CF/88).

Esse conflito é meramente aparente porque a Constituição permite limitações de ordem jurídicas a liberdades individuais, destinadas a assegurar que nenhum direito seja exercido em detrimento da saúde pública ou de direitos fundamentais de terceiros. O novo coronavírus tem apresentado comportamento incomum, com alta transmissibilidade e letalidade, sendo uma ameaça real com aptidão de colapsar o sistema de saúde e acarretar, via de consequência, um aumento exponencial de óbitos. As chocantes imagens de uma longa fila de caminhões militares transportando corpos da sobrecarregada cidade de Bergamo, na Itália, para outras localidades servem como alerta para a gravidade da situação.

Daí porque medidas como a interdição de praias e praças públicas objetivando interromper ou ao menos reduzir a velocidade de transmissão do vírus se inserem como absolutamente legítimas, em prol da preservação de vidas humanas e da saúde pública, mostrando-se razoáveis e proporcionais no atual contexto.

Quanto ao argumento de que as praias marítimas são bens da União (art. 20, IV, CF/88), recordamos que as regras de uso e ocupação da faixa litorânea, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica, são definidas pela Lei nº 7.661/88, que institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC), e pelo Decreto nº 5.300/2004, que a regulamenta, e pela Lei nº 13.240/2015, regulamentada pela Portaria SPU nº 113/2017 e Portaria SCGPU nº 44/2019, que autoriza a transferência de gestão das orlas e praias marítimas, estuarinas, lacustres e fluviais federais para os municípios, mediante um termo de adesão. Em Pernambuco, apenas os municípios do Recife e de Jaboatão dos Guararapes assinaram o termo de adesão à gestão das praias marítimas.

Assim, a princípio, poder-se-ia pensar que o Governo do Estado não poderia estabelecer medidas de restrição ao uso das praias pernambucanas, sendo competente apenas a União, para aquelas áreas ainda sob a sua gestão, e os Municípios que já aderiram ao Termo de Adesão à Gestão de Praias Marítimas (TAGP).

Nada obstante, as medidas estaduais de interdição de praias não podem ser tachadas de inconstitucional ou ilegais com base na alegada incompetência dos Governadores dos Estados, porque, mais que uma mera questão de gestão de praias brasileiras, estamos diante de uma demanda de saúde pública, cuja competência administrativa é comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, nos termos do art. 23, inciso II, da Constituição Federal. Também o art. 24, inciso XII, da Constituição inclui a proteção e a defesa da saúde no âmbito da competência legislativa concorrente dos entes federados. Numa interpretação sistemática do ordenamento jurídico-constitucional, também não se pode olvidar das competências locais e suplementares dos municípios (art. 30, I e II, CF/88).

Importante registrar que o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, em recentíssima decisão, ao apreciar pedido de liminar na ADI 6.341, ajuizada contra algumas disposições da MPV nº 926 que supostamente esvaziariam a autonomia dos entes da Federação sobre ações de vigilância sanitária e epidemiológica (implantação de barreiras sanitárias), entendeu que a referida medida provisória não contraria a Constituição, porque não impede a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, reforçando que esses entes subnacionais também podem adotar medidas contra a pandemia.

Assim, no caso, havendo omissão por parte da União sobre a matéria, os Estados podem regulamentar a questão de forma plena, cabendo a atuação suplementar dos Municípios, salvo nos casos em que o interesse for exclusivamente local, o que indica a prioridade da deliberação municipal. Como a questão da pandemia da Covid-19 obviamente extrapola o interesse local da municipalidade, não existe qualquer óbice para a interdição determinada pelos governos estaduais.

Na eventualidade de o governo federal editar determinada medida contrária à interdição das praias, ainda assim, poderiam os governos estaduais exercerem o direito de resistência, dado que tal providência seria manifestamente contrária às recomendações, orientações e evidências científicas internacionalmente referendadas.

Nessa linha de entendimento, foi a decisão do ministro Alexandre de Moraes proferida nesta dia 8, nos autos da ADPF 672, ajuizada pela CFOAB:

“(…) não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos, como por exemplo, os estudos realizados pelo Imperial College of London, a partir de modelos matemáticos (The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Suppression, vários autores; Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID19 mortality and healthcare demand, vários autores).”

Na última terça-feira (7/4), o Secretário Estadual de Saúde de Pernambuco, André Longo, afirmou que 80% dos 118 novos leitos de UTI montados no estado para receber pacientes do novo coronavírus já estão ocupados, e ainda estamos longe do pico de contaminação da pandemia, a demonstrar a necessidade da adoção dessas medidas restritivas pelos governos estaduais, com o objetivo de manter a capacidade do Sistema de Saúde local. Não se pode descartar, porém, que no futuro próximo seja preciso adotar medidas mais restritivas como o bloqueio geral (lockdown).

Assim, diante da indisponibilidade, até o momento, de medicamentos comprovados e vacinas específicas que combatam o novo coronavírus ou mesmo de número de leitos de UTI que possam atender a totalidade dos casos esperados em decorrência da Covid-19, a medida de restrição de acesso a praias adotada pelo governo de Pernambuco, além de ser tecnicamente adequada, razoável e proporcional, insere-se no poder discricionário do administrador público, podendo este fazer-se valer da prerrogativa do seu poder de polícia, restringindo o uso de bens como forma de reduzir a velocidade da transmissão do novo coronavírus.

A competência do Estado para adotar estas medidas, no trato das questões de saúde pública, portanto, encontra guarida na Constituição da República e na legislação.

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