Opinião

A proibição de zoológicos em São Paulo e a conservação da biodiversidade

Autor

  • Letícia Yumi Marques

    é co-head de Direito Ambiental no escritório KLA Advogados mestranda em Sustentabilidade pela EACH-USP especialista em Direito Ambiental pelo Mackenzie e pós-graduada em Direitos Animais pela ESA-RS.

9 de abril de 2020, 6h04

Spacca
O Diário Oficial da Cidade de São Paulo do último dia 19 de março publicou a Lei Municipal n.º 17.321/2020, que dispõe sobre normas de funcionamento dos zoológicos e similares situados no âmbito do município. Quando esta lei chegou no ordenamento jurídico, a capital paulista já estava oficialmente sob quarentena, segundo as recomendações das autoridades de saúde para enfrentamento da Covid-19. Por isso, quase ninguém se deu conta que, desde 19 de março, estão proibidos novos zoológicos na cidade de São Paulo.

Além da proibição, a nova lei estabelece a diminuição paulatina dos animais em exposição, que deve ser acompanhada de estudos para o desenvolvimento de técnicas de realidade virtual, de forma que, no futuro, os animais expostos sejam hologramas de computadores, por exemplo.

Essas medidas, que já estão em vigor, só não são ainda mais radicais que os dispositivos originais do projeto de lei, que foram vetados pelo Executivo e que incluíam, por exemplo, a vedação da recepção de animais capturados na natureza e a sua reprodução em cativeiro, sob o argumento de que essas atividades causariam sofrimento aos animais. Se essas disposições tivessem prosperado, os animais resgatados do tráfico possivelmente não poderiam ser recepcionados pelos zoológicos para os procedimentos de tratamento, reabilitação e, quando possível, de soltura na natureza. Como é notória a dificuldade que os Centro de Triagem de Animais Silvestres – Cetas enfrentam para acolher todos esses animais, sem a opção de direcioná-los aos zoológicos, seu destino se torna ainda mais incerto. Além disso, importantes trabalhos de reprodução ex situ de espécies ameaçadas de extinção correriam o risco de interrupção.

Nesses pontos em específico, o que se percebe é que o radicalismo da proposta original seria uma forma desinteligente de resolver o problema das exposições excessivas e uso descabido de animais como matrizes reprodutivas, que de fato e sabidamente lhes causam sofrimento. Essas condutas podem ser classificadas como maus-tratos e por isso já estão vedadas pelo ordenamento jurídico– basta que haja fiscalização adequada. A justificação dos vetos, inclusive, esclarece que muitas das proibições propostas no projeto de lei original já eram reguladas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis — Ibama.

Além do mérito de vetar tais excessos, a justificação dos vetos do Executivo também ressalta a importância do papel dos zoológicos e similares na educação ambiental, determinando que, neles, sejam colocados avisos aos frequentadores sobre a senciência animal – ou seja, a sua capacidade de sentir dor, medo, angústia, felicidade e outras emoções.

As razões de veto apresentadas pelo Executivo, porém, soam contraditórias porque ao mesmo tempo em que reconhecem que os zoológicos têm importante papel na conservação da biodiversidade e na educação ambiental (há pesquisas da USP e da UFMT nesse sentido[1][2]), a proibição de instalação de novos deles foi mantida. Basta notar a super população de capivaras nas marginais Pinheiros e Tietê para se dar conta de que, talvez, o Município de São Paulo não possa prescindir de outros zoológicos e similares que possam auxiliar no manejo de fauna na cidade, por meio de convênios e parcerias que, inclusive, estão previstas no Código Estadual de Proteção aos Animais (Lei Estadual n.º 11.977/2005).

Em tese, as capivaras estão em maior parte localizadas em áreas sob gestão do Estado, como o Parque Ecológico do Tietê e a Empresa Metropolitana de Águas e Energia — Emae. Porém, a equipe da Divisão de Fauna da prefeitura passou a trabalhar também e com maior frequência com o resgate das capivaras – que, além de ser hospedeira do carrapato estrela, que pode transmitir a febre maculosa, podem causar acidentes quando transitam nas vias expressas.

As parcerias e convênios entre zoológicos e similares, inclusive com instituições privadas são relevantes para os municípios no contexto das obrigações que o Código Estadual de Proteção aos Animais lhes atribuiu para conservação da fauna local. O tema, inclusive, foi analisado em recente julgamento proferido pela 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no último dia 24 de março[3]. Afinal, se o município deve manter programas permanentes de acolhimento, tratamento, soltura e monitoramento de fauna silvestre e não possui recursos financeiros ou estrutura suficientes para mantê-lo sozinho, as parcerias e convênios são uma forma legítima de cumprir a obrigação.

A urgência na conservação da biodiversidade: os limites planetários
Os operadores do direito ambiental e animal não estão, ainda, tão familiarizados com a sustentabilidade e seus conceitos fundantes. Para além de significar apenas o tripé ambiental-social-econômico, a sustentabilidade já é reconhecida por diversas publicações científicas internacionais como uma ciência autônoma, colaborativa e multidisciplinar. Para Robert Kates, professor emérito da Universidade de Brown, a “(…) sustentabilidade é uma ciência diferente, inspirada principalmente nas ciências da saúde e agricultura, com relevantes conhecimentos fundamentais e de aplicação no sentido de mover esse conhecimento para a ação social(…)”[4].

Como ciência autônoma, a sustentabilidade tem seus próprios conceitos e terminologia. Uma delas é a expressão “limites planetários” ou “fronteiras planetárias”, que são níveis de perturbação antrópica no planeta Terra metodologicamente definidos. Os cientistas estabeleceram nove limites planetários, que devem – em tese – ser observados para garantia das condições de vida na Terra: mudanças climáticas, acidificação dos oceanos, ciclos do fósforo e nitrogênio, consumo de água doce, desmatamento e alterações de uso do solo, perda de biodiversidade, poluição atmosférica e poluição química. A perda da biodiversidade é um dos limites planetários que já foi ultrapassado pela humanidade, ao lado dos limites das mudanças climáticase ciclos do nitrogênio e fósforo[5].

Em uma analogia aproximada com o Direito, os limites planetários carregam consigo o mesmo senso de essencialidade do chamado mínimo existencial – a “cesta básica” de direitos que inclui direitos à saúde, à alimentação, à moradia, etc. (art. 6º, CF/88) e que, segundo Daniel SARMENTO, corresponde “à garantia das condições materiais básicas de vida”[6]

Os limites planetários não ditam, por si só, como o ser humano vai se comportar no planeta. O modo de vida da humanidade decorre de decisões políticas. O papel da sustentabilidade, enquanto ciência, e dos limites planetários é oferecer referências científicas para embasar a tomada de decisão consciente dos agentes políticos.

Nesse contexto, diante da necessidade cada vez mais urgente de proteger a biodiversidade, é que pesam ainda mais as decisões dos agentes políticos no sentido de incentivar espaços que se dediquem a sua proteção e preservação. Por isso, seja pela possibilidade de parcerias para auxiliar no manejo de fauna na cidade ou pelo papel intrínseco que desempenham na educação ambiental e na conservação da biodiversidade, não há justificativa aparente para a proibição de novos zoológicos na cidade de São Paulo, desde que, evidentemente, sejam observadas as regras de bem-estar animal e haja investimentos na conversão de espécies ex situ.

[1]NOMURA, HélenAkemi de Queiróz. A conservação da biodiversidade em exposições de zoológicos: diálogos entre públicos e instituição. 2015. 165 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

[2]SCRENCI-RIBEIRO, Rafaela; CASTRO, Edward Bertholine de. O zoológico da ufmt como ferramenta para o ensino da biodiversidade.REMEA – Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, [S.l.], v. 24, set. 2013. Disponível em: <doi:https://doi.org/10.14295/remea.v24i0.3893>. Acesso em: 25.03.2020.

[3]Apelaçãon.º 1001898-44.2018.8.26.0408.

[4]KATES, Robert W.What kind of science is sustainability science?PNAS, 2011. Disponível em <https://doi.org/10.1073/pnas.1116097108>. Acesso em 24.03.2020.

[5]ROCKSTRÖM, Johan et al. A safe operating space for humanity. Nature, v. 461, n. 7263, p. 472, 2009.

[6]A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. (Orgs.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 533-586.

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    é advogada especialista em direito ambiental, pós-graduada em direitos animais e pesquisadora de sustentabilidade da EACH-USP. É co-head de Direito Ambiental em KLA Advogados.

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