Opinião

A supressão de direito de classe em tempo de pandemia da Covid-19

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7 de abril de 2020, 19h15

Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó
Portugal [Brasil], hoje és nevoeiro…”
(adaptação de versos finais de Mensagem,
 Fernando Pessoa, 1934)

Em meio à atual crise de saúde pública, é inquestionável que a interação interpessoal está severamente prejudicada. Apesar da tecnologia, a comunicação está aquém de um nível satisfatório que permita, com algum conforto, a tomada de decisões complexas em âmbito coletivo.  A suspensão dos prazos processuais na quase totalidade do Judiciário brasileiro é sintoma insofismável desse déficit.

Foi nesse cenário que, contrariando todos os prognósticos (de prazo e de contexto), o Ministro Gilmar Mendes resolveu pautar, em meio virtual, o julgamento do Agravo Regimental no 6.314 (ADI 6.314).

O julgamento teve início na última sexta-feira (3/4) e se encerra no próximo dia 14 se não houver pedido de vista. Nesse recurso, a Sociedade Rural Brasileira discute, nada menos, que o seu direito de ajuizar Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

Tal debate é apenas um capítulo da discussão principal da ADI-6.314. Nessa, a SRB questiona legislação estadual de Mato Grosso que cria meio de “arrecadação paralela”, o famigerado Fethab, que impõe obrigação tributária ao produtor mato-grossense por meio de chicana ao Sistema Tributário.

De forma monocrática e instantânea, o ministro relator fulminou a medida em sua origem. Decidiu não receber a ação por entender que a SRB não seria “entidade de classe” não estando, assim, habilitada a ajuizar a ADI.

É contra esta decisão que se volta o Agravo. Perder o recurso significará, para SRB, em analogia bruta ao ambiente desportivo, ser abatida num corredor escuro que conduz o lutador ao ringue.

O artigo 103 da Constituição da República dispõe que: "Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: […] IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.” (grifos nossos).

Diante da ausência de definição do que seria uma entidade de classe, a jurisprudência do STF procurou, ao longo dos anos, aproximar tal conceito do critério pretoriano de homogeneidade dos membros da entidade.

A homogeneidade é caracterizada, na visão da Suprema Corte, pela “vinculação entre os membros por objetivos comuns” (ministro Gilmar Mendes, ADI 3.787, DJ 9.10.2006); pela “presença de comunhão e identidade de valores capaz de identificar os associados como membros uma mesma classe ou categoria” (Min. Celso de Mello, ADI 108-6/DF, DJ 24.4.1992); ou ainda pelo “conjunto destacado de agentes com missão constitucional comum” (STF. ADI 3.787. Relatora minista Ellen Gracie. Dj. 3.10.2008).

A Sociedade Rural Brasileira é associação fundada em 1919, composta por mais de 5.000 associados em 16 Estados da Federação. Seu objeto social consiste em fomentar a agricultura, a pecuária e as demais atividades rurais, mediante atuação coordenada de seus agentes perante os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Apesar de distintas as atividades de um criador de gado e de um plantador de milho, aproxima-os o fato de serem, ambos, produtores rurais, o que permite aglutiná-los como classe. Indubitavelmente, o traço que os conecta — a exploração das atividades primárias da economia — supre o requisito de homogeneidade (do grego “omogenés” = da mesma raça ou família, da mesma espécie), que é a característica de coisas de mesma ou semelhante natureza, estrutura ou função, em relação a outra coisa.

O próprio Supremo Tribunal Federal, em quatro oportunidades, já reconheceu o caráter de “classe” da SRB: (i) ADI nº 4495, ministro Marco Aurélio: "Embora a Sociedade Rural Brasileira tenha filiados vinculados a categorias distintas, deve-se reconhecer a existência de homogeneidade na relação que os vincula a ela, qual seja, a defesa dos interesses dos agentes produtivos no setor primário da economia”, (ii) ADPF nº 342, ministro Marco Aurélio: admitindo a legitimidade ativa da Sociedade Rural Brasileira, o Relator determinou o processamento do feito, que atualmente segue em tramitação (doc.02), (iii) ADC nº 50, Min. LUIZ FUX: admitindo a legitimidade ativa da Sociedade Rural Brasileira, o Relator determinou o processamento do feito, que atualmente segue em tramitação e (iv) ADI nº 5.983, Min. RICARDO LEWANDOWSKI: admitindo a legitimidade ativa da Sociedade Rural Brasileira, o Relator determinou o processamento do feito, que atualmente segue em tramitação.

Em 1735 Carl von Linné organizou as categorias taxonômicas em reino > filo > classe > ordem > família > gênero > espécie. A classe é categoria abrangente que admite diferenciações. A categorização da classe não é última e não inviabiliza que, dentro desse universo, haja subdiferenciações.

O vocábulo “classe” não é utilizado por acaso no art. 103, inciso IX da Constituição de 1988. O constituinte claramente desejou atribuir poder a grupos que, apesar de terem afinidades, têm diferenças. Quisesse se valer de critério mais específico teria utilizado o gênero (e.g. pecuarista) ou a espécie (e.g. criador de búfalos) como critério.

A restrição do conceito de entidade de classe é, aliás, um contrassenso diante da abertura do rol de legitimados à propositura de ADIs pela Constituição de 1988. Nesse contexto, vale relembrar mais uma célebre frase do Min. Roberto Barroso, para quem “a missão precípua de uma suprema corte em matéria constitucional é a proteção de direitos fundamentais em larga escala” (STF. ADPF 527, Dj 31.7.2018).

Perseguir a eficiência da Corte em detrimento de tutelar direitos, ante intepretação restritiva do que seria uma entidade de classe, é aniquilar em grande medida os remédios constitucionais para vasto número de associações. Grupos de industriais, de importadores, de produtores de manufaturados de profissionais da saúde (os exemplos são infinitos) não poderão mais acessar a via das ações diretas, caso prevaleça o entendimento estreito proposto pelo relator da ADI-6314.

Como se observa, há inúmeros argumentos favoráveis à SRB no âmbito do Agravo. Basta ao Plenário do STF serenidade para, escutando os pleitos desta entidade pelos meios possíveis, de preferência de forma presencial, aplicar o conceito de entidade de classe idealizado na Carta de 1988.

Nesse ponto, a SRB formulou pedido de destaque para que o julgamento do Agravo fosse realizado em ambiente não-virtual, ou pelo menos retirado de pauta, em privilégio aos princípios da colegialidade e da ampla defesa. Tal pedido, embora previsto no art. 4º, da Resolução nº 642, de 14 de junho de 2019 (e alteração posterior), também foi de plano indeferido pelo Min. Gilmar Mendes.

Na era da tecnologia em nuvem, é inaceitável que o futuro das entidades de classe seja julgado em meio ao nevoeiro.

Amanda Pahim
Leonardo Loubet
Manuel Borges
Marcelo Guaritá
Marcelo Lemos
Pedro Souza
Ricardo Barretto
Advogados representantes da Sociedade Rural Brasileira na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.314.

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